3 ITINERÁRIO – TURISMO E GUIAS TURÍSTICOS
3.3 GUIAS TURÍSTICOS IMPRESSOS – A TRAJETÓRIA DE UM GÊNERO
Se o turismo se constitui para esta pesquisa em uma variável fundamental a
ser levada em conta no processo de compreensão da ascensão e consolidação das
comidas regionais como atrativo desde a década de 1970 até o ano de 2000, a
ferramenta essencial nesta análise é um guia de turismo impresso – o guia de maior
circulação nacional, que é também a publicação que, no Brasil, se manteve estável
em todo o recorte temporal desta análise.
Portanto, é preciso situar o leitor quanto a esta fonte – ou instrumento de
análise. O que é um guia de turismo impresso? Qual é a sua função? O que suas
páginas trazem? Quais as transformações que um guia de turismo impresso
incorporou ao longo das últimas décadas? São algumas das questões que se
pretende abordar neste tópico dedicado à localização histórica dos guias impressos
de turismo. Mas a questão principal que norteou toda a construção deste tópico diz
respeito à necessidade de se apontar o potencial desta ferramenta nas análises
históricas sobre determinados temas, bem como, nesta mesma direção, indicar suas
limitações – o que a fonte permite e o que não permite dizer.
A opção pela investigação da temática pretendida através deste tipo de fonte,
se deve, por um lado, à percepção de que através do percurso pelas páginas de um
guia turístico no formato do Guia Quatro Rodas Brasil, ao longo dos anos, seria
possível observar a relevância das culinárias regionais e suas variações periódicas e
que esta observação, em conjunto com as demais fontes de pesquisa e articulada
com alguns pressupostos teórico-metodológicos, poderiam contribuir para o
entendimento do processo através do qual estas comidas passaram a ser vistas
como produto turístico – como cultura passível de ser consumida pelos visitantes de
uma localidade.
Mas a escolha desta fonte específica como eixo da análise se deu também
pela percepção de seu caráter inovador enquanto fonte de pesquisa histórica e
social. Diversos autores atestam a falta de importância dada pela Academia ao
fenômeno turístico e, embora nos últimos anos esta tendência venha se revertendo,
geralmente se atribui esta situação ao fato de que a temática é considerada como
um tema menor para as ciências. É possível que da mesma maneira, como um
produto editorial vinculado à atividade turística, os guias impressos sejam vistos
como uma literatura funcional, de maneira bastante simplificada, voltados
unicamente para a indicação de lugares e serviços turísticos. No entanto, como já se
colocou aqui, se é possível fazer uma aproximação do turismo com a noção de fato
social total, entende-se que os guias impressos podem revelar a rede de variáveis
implícitas na dinâmica da atividade; as suas diversas configurações ao longo da
história e suas relações com os contornos mais gerais dos grupos sociais. Assim,
sustenta-se que os guias impressos de turismo trazem a possibilidade de se abrir
novas linhas de investigação sobre temáticas variadas.
Neste ponto é necessário sublinhar de que maneira o guia turístico é
incorporado por este estudo específico. Não se trata de tomá-lo como objeto de
análise, o que demandaria um trabalho de dissecação de suas formas e conteúdos
ao longo do período focalizado. Aqui ele se constitui em fonte, ou seja, acredita-se
que ele pode indicar caminhos para responder aos questionamentos sobre o
processo através do qual foi possível transformar as comidas regionais em produto
turístico. Portanto, um panorama dos guias turísticos como gênero, bem como a
contextualização da fonte específica – o Guia Quatro Rodas Brasil – tem apenas o
intuito de justificar sua utilização e demonstrar sua pertinência para o objetivo aqui
proposto.
Concordando com Ana Cardoso de Matos e Maria Luísa F. N. dos Santos,
percebe-se que tais guias trazem uma complexidade que pode passar
desapercebida em uma leitura superficial:
Inserindo-se numa literatura utilitária, os guias de viagem são um reflexo das alterações económicas, sociais, culturais e tecnológicas que ao longo do tempo foram sendo introduzidas nas viagens culturais ou de veraneio, que gradualmente passaram a ser realizadas por grupos sociais cada vez mais latos. A análise dos vários guias de turismo permite assim fazer uma abordagem a temas diversos. Se por um lado, os guias de viagem se podem ligar à história de arte e definem para cada momento histórico a noção de património, por outro ligam-se com a história económica ao estabelecerem interligações com os vários meios de transporte ou novas indústrias, que o desenvolvimento tecnológico e industrial foi colocando à disposição dos viajantes/turistas. Os guias foram também formas de apreensão do espaço, que contribuíram para a divulgação de novos lugares como as termas ou as praias e para a "construção" de imagens sobre as cidades ou o campo. (MATOS; SANTOS, 2004, s.p.).
Neste trecho as autoras deixam claro que o gênero do qual fazem parte os
guias turísticos impressos, carrega uma complexidade que ultrapassa, em muito,
orientações de rotas e serviços para turistas. Nesta perspectiva, ressalta-se que os
guias impressos participam da construção histórica de uma série de indícios, como,
por exemplo, sua utilidade, os recursos que devem representar e os valores que
veiculam – e esta construção, como o adjetivo histórica indica, diz respeito a um
tempo e a um lugar; a uma percepção de mundo. Em suma, os próprios guias são o
resultado de uma construção histórica.
A produção de estudos acadêmicos cujo objeto ou temática de pesquisa são
os guias turísticos impressos, ainda que restrita, já conta com algumas
contribuições, entre as quais é fundamental citar a publicação dos artigos
apresentados no colóquio Guides imprimés du XVIe siècle. Villes, paysages,
voyages, realizado na universidade Paris VII-Denis Diderot em 1998. Trata-se de
uma obra fundamental ao pesquisador que intencione compreender o lugar, o papel
e os significados dos guias impressos.
Organizado em nove partes, das quais as duas últimas se referem a
sugestões de pesquisa e à compilação dos debates realizados durante o colóquio,
nas mesas redondas, a publicação reuniu reflexões sobre as formas e produção dos
primeiros guias, além das inter-relações entre o gênero dos guias e outros gêneros
literários. Também tiveram lugar estudos mais específicos que trataram do lugar do
turismo e da saúde nos guias. A ideia do espaço-guiado através do guia também foi
discutida numa das partes da obra, que também tratou da invenção do espaço
através dos guias turísticos. O lugar do regional como espaço turístico e as questões
da identidade nacional e da imagem do outro são outros temas abarcados por esta
obra que contou com 703 páginas, uma vez que todos os artigos foram publicados
integralmente.
Esta publicação, além de indicar a pertinência da utilização destas fontes para
a pesquisa histórica, traz à tona, também, o crescente interesse pelos pesquisadores
por este novo instrumento de pesquisa e, além disso, o sumário da obra indica,
como o parágrafo anterior esboça, a variedade de enfoques possíveis. Nesse
sentido, fica claro o grande potencial oferecido pelos guias turísticos impressos para
a análise histórica, social e cultural e suas limitações dizem respeito ao fato de que
qualquer fonte de pesquisa não explica, por si, a realidade estudada, e a
compreensão de qualquer objeto de estudo requer a articulação das fontes com um
arcabouço teórico-metodológico pertinente à temática.
O fio condutor do colóquio que deu origem à obra de mesmo nome – Guides
imprimés du XVIe siècle. Villes, paysages, voyages – reside no fato de que os guias
ostentam o título de um espaço, de uma área geográfica, mas é preciso considerar
que eles também constroem e inventam os espaços.
A complexidade das análises possíveis através dos guias impressos reside na
própria diversidade destes guias:
[...] diversidade pelo objeto (saúde, turismo), pelos autores, pelo lugar ocupado pelas imagens e pelo conteúdo. Os guias de viagem fazem parte da história cultural e da história das representações [...], mas também da história econômica [...] e social [...] (CHABAUD; COHEN; COQUERY; PENEZ, 2000, p. 6).
Os autores em geral apontam para o século XIX para se referir ao nascimento
do guia turístico impresso com o caráter que ainda hoje tem este tipo de
publicação
121. Mas é possível localizar na literatura de viagem características que
irão influenciar fundamentalmente a forma e o conteúdo dos guias chamados de
turísticos. Os primeiros viajantes a escrever sobre tal experiência, ao descrever os
locais visitados e indicar o que encontraram, as dificuldades encontradas, a
alimentação e formas de hospedagem disponibilizadas durante o percurso, já
realizavam, de certa maneira, a tarefa de guiar aqueles que se aventurassem pelos
espaços – ainda que suas obras não tivessem esse objetivo.
Segundo Justin Stagl, no fim da Idade Média e início do século XVI, surgiram
numerosos textos com reflexões sobre as viagens e suas melhores formas. Essas
reflexões tinham como meta tranquilizar o viajante face ao desconhecido,
ressaltando o que merecia ser visto e conhecido e ensinar- lhe como aproveitar
todas as novas experiências. Stagl (2000, p.37) chama ainda atenção para a
novidade destes textos: tudo o que eles disseram não era novo; novo era o seu
caráter público e sua pretensão de regulação dos percursos.
É esta faceta dos guias de viagens que é trazida à tona também por Matos e
Santos, e que interessa em uma aproximação com os guias turísticos impressos.
Estas autoras sublinham ainda que esta função pedagógica também justifica a
inserção de informações históricas sobre os locais:
Os guias de viagens inserem-se numa literatura utilitária e pedagógica que visa dar àqueles a quem se dirigem uma série de indicações sobre as viagens a empreender e sobre os espaços a visitar. Assim, nos vários guias de viagens que foram surgindo ao longo dos tempos as informações sobre a forma de viajar e os lugares a visitar correm a par com as informações de carácter histórico sobre os vários lugares ou monumentos. (MATOS; SANTOS, 2004, s.p.).
O caráter orientador dos guias de viagem, juntamente com suas aspirações à
padronização e acúmulo de conhecimento dizem respeito ao contexto em que se
inserem: o Humanismo, que atingiu seu ápice no século XVI, gerando uma tendência
121
Cf. MATOS, Ana Cardoso; SANTOS, Maria Luísa F. N.Os guias de turismo e a emergência do turismo contemporâneo em Portugal (dos finais de século XIX às primeiras décadas do século XX). In: Scripta Nova – revista eletrónica de geografía y ciencias sociales. Universidad de Barcelona. Vol. VIII, n. 167, jun.2004. CHABAUD, Gilles; COHEN, Évelyne; COQUERY, Natacha; PENEZ, Jérôme (orgs.). Les guides imprimés du XVIe au XXe siècle: villes, paysages, voyages. Paris: Éditions Belin, 2000. CSERGO, Julia. A emergência das cozinhas regionais. In: Flandrin, J.L.; Montanari, M. História da alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 806-824.
geral ao controle e planificação da vida e das coisas. É neste contexto que, de
acordo com Stagl:
A partir da segunda metade do século, surgiu um número sem precedentes de tratados impressos, que puderam fornecer um método acerca de diferentes aspectos da vida – até a melhor maneira de morrer. As viagens fariam uma exceção? As tendências em reformar a prática das viagens se manifestou, primeiramente, na aparição de dois gêneros literários: a) os guias de viagem [...]; b) as coleções de saber empírico sobre o mundo exterior – coleções temáticas [...] (STAGL, 2000, p. 39, tradução nossa).
É assim que, quando se pode falar em guia turístico impresso, a partir do
século XIX, esta característica de guiar se reproduz e se exacerba. Como chama a
atenção Julia Csergo (1998) tais guias, aos poucos, codificam a percepção das
localidades que retratam. Matos e Santos ressaltam este aspecto dos guias já no
momento de sua gênese:
Os guias, tal como os conhecemos hoje, parecem ter nascido nas primeiras décadas do séc. XIX, ligados com o desenvolvimento dos caminhos de ferro. O carácter utilitário dos guias turísticos determinou que o seu texto se fosse tornando gradualmente mais impessoal, sistemático e completo, aliando-se à descrição dos lugares um conjunto de informações de ordem prática. (MATOS; SANTOS, 2004, s.p.).
Para Guilcher (2000), é justamente a presença destas informações práticas
que distingue o guia turístico impresso de outros produtos literários, além de definir
também seu caráter efêmero:
Quanto mais um guia é preciso, mais tem o risco de expirar rapidamente, mas é esta mesma precisão que o faz útil. Os autores de guias e mais tarde os diretores de coleções de guias devem lidar com as dificuldades e oferecer ao leitor a impressão de que dispõe de uma obra “up-to-date” sobre o país que pretende visitar ou descobrir. (GUILCHER, 2000, p.81, tradução nossa).
O fato de que o guia é um produto voltado para o turismo que, por sua vez,
está inserido na sociedade de consumo e que, portanto, acompanha as
transformações desta, faz com que sua forma e seu conteúdo sigam as tendências
mais atuais. E como foi ressaltado acima, por Guilcher, é necessário que pareça
trazer informações “up-to-date”. Esta necessidade de uma sensação de atualidade
revela, por si mesma, que se trata de um produto inserido num contexto global de
transformações a um ritmo alucinado. O acompanhamento destas transformações
(que na verdade refletem uma necessidade da sociedade de consumo de mais e
mais novos produtos para se consumir) se inscreve nas páginas destes guias, como
se verá ao percorrer as páginas do Guia Quatro Rodas Brasil ao longo dos 34 anos
observados nesta pesquisa.
A partir desta breve contextualização dos guias de turismo impressos, é
preciso destacar em que medida o Guia Quatro Rodas Brasil, compreendido como
parte deste tipo de literatura tida como utilitária, é capaz de lançar luz sobre o objeto
investigado – a emergência da culinária regional como atrativo turístico. Destaca-se
que três aspectos definidores dos guias impressos como um gênero específico
dialogam de perto com os objetivos desta reflexão.
Primeiramente, a função desempenhada pelos guias de conduzir o olhar e o
caminhar do turista
122. O guia direciona a descoberta da cidade pelo visitante e esta
intenção de conduzir “[...] constitui uma função – guiar – que dá forma e sentido às
informações, descrições ou prescrições transmitidas a propósito de um espaço de
condução e de descoberta que pode ser de natureza e dimensões muito variáveis.”
(CHABAUD; COHEN; COQUERY; PENEZ, 2000, p. 9, tradução nossa). Esta função
é inerente aos guias. Como chama a atenção Lucien Karpic (2000, p. 370, tradução
nossa), “todos os guias são dispositivos de conhecimento, todos reivindicam uma
forma de autoridade sem a qual seriam desprovidos de qualquer influência.”
Assim, o espaço presente nos guias turísticos se torna um espaço guiado e,
na medida em que isto se repete ano a ano com o surgimento das séries de guias, e
também pelo fato de que este espaço guiado é necessariamente um espaço
simplificado que elege alguns elementos em detrimento de outros, criam-se
estereótipos. E este é o segundo aspecto que gostaria de ressaltar: os espaços são
inventados e reinventados neste processo de condução do turista.
Classificações grosseiras ou escolha de rotas, enumeração de informações ou descrições detalhadas, simples ferramentas de localização ou instrumentos sofisticados, os guias impressos estão constantemente se referindo ao espaço e representando espaços. Sua função mesmo se justifica pela tensão que buscam diminuir, pelo leitor, entre a diversidade tópica de seu objeto e a unidade que atribuem e recompõem, o espaço de Conduta e de descoberta que articulam as diferentes dimensões geográficas, históricas, políticas, institucionais, sociais e econômicas.
122
Esta condução se dá tanto nos serviços e localidades indicados, quanto em algo mais explícito: as rotas ou roteiros turísticos que, no Guia Brasil Quatro Rodas são inseridos desde sua primeira edição, em 1966.
(CHABAUD; COHEN; COQUERY; PENEZ, 2000, p. 10, tradução nossa).
É interessante notar, a este respeito, que estes estereótipos acabam por fazer
parte de uma certa definição de identidade, seja regional, seja nacional, e este ponto
é essencial na análise realizada aqui: o Guia Quatro Rodas Brasil, ao divulgar a
partir de uma determinada época imagens e representações sobre a culinária
regional, além de vincular tais informações a certas localidades, contribui para uma
percepção do que seria a identidade regional. Sem discutir noções como culinária
verdadeira ou autêntica, é importante colocar que neste processo de invenção e
reinvenção as cozinhas regionais se inserem no âmbito da história cultural e da
história das representações.
Sobre este aspecto, Csergo (1998 e 2000) e Boyer (2000) sublinharam a
relação entre a construção de estereótipos pelos guias e a definição de identidades.
Boyer (2000) observa esta construção identitária através do estudo de séries de
guias impressos portáteis, na França, nos séculos XIX e XX. Csergo (1998), por sua
vez, aproxima-se ainda mais do objeto focalizado aqui, ao perceber esta mesma
relação para a culinária regional:
[...] são eles [os guias turísticos] que, confinando de forma duradoura a particularidade culinária em representações estereotipadas, acabam por impô-la – relacionando-a com a noção de ponto de interesse – como parte integrante do patrimônio, no mesmo nível do mirante, da arquitetura ou das personagens que, daí em diante, pontuam as paisagens e as histórias locais. (CSERGO, 1998, p. 817).
Por fim, o terceiro aspecto que torna tão eloquente a utilização de um guia
turístico de viagem como fonte para esta pesquisa reside em sua qualidade de
produto historicamente localizado. Os autores e editores destes guias estão
localizados em um tempo e um espaço que determinam ou influenciam suas
percepções de mundo. Cada época, em cada lugar tem questões que se
sobressaem e configurações específicas que interferem em todas as esferas da vida
social e isto deve ser considerado ao se analisar um guia turístico, como qualquer
outra fonte de pesquisa. Além disso, e por isso mesmo:
Toda apresentação de um objeto por um autor ao seu público, implica seleção e interpretação, que a comunicação passa pela palavra escrita ou a imagem. E o espaço urbano entregue ao leitor / espectador é de alguma
forma reinventada. A escolha entre os elementos dados para ler ou ver é uma primeira indicação para se lembrar. (PETITFRÈRE, 2000, p. 49).