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PRELAC – Declaração

3.3. Algumas questões importantes desse debate

De acordo com as considerações e análises tecidas até aqui, considero que os documentos que compõem a agenda internacional de educação e gênero possuem em comum alguns princípios e alguns objetivos e metas. Apresento abaixo, de maneira condensada, os princípios que me parecem mais representativos dessa agenda:

1. O desenvolvimento social e econômico de um país está irremediavelmente atrelado à educação e esta deverá ser moldada segundo os interesses e as prioridades daquele.

2. Educar meninas e mulheres é educar a sociedade. As mulheres são as responsáveis pela educação e pela saúde da família e são, portanto, atrizes-chave para se alcançar o desenvolvimento.

3. A gestão da educação deve concentrar-se pragmática e eficientemente na definição de conteúdos que garantam a formação de cidadãs/ãos moldados de acordo com os princípios do desenvolvimento.

Os documentos têm em comum, também, a ênfase na dimensão da redistribuição, a mais escassa elaboração sobre a dimensão do reconhecimento e a praticamente ausente dimensão da representação. Os documentos de gênero definem objetivos mais consistentes com respeito à dimensão de reconhecimento e chegam a observar, ainda que muito incidentalmente, a dimensão da representação. Os documentos de educação, no entanto, restringem seu olhar sobre o binômio gênero e educação à dimensão da redistribuição, começando agora, conforme indicam os mais recentes relatórios dos ODM e do projeto EPT, a sugerir uma ênfase maior nas expressões do reconhecimento.

O contexto histórico, social e político de formulação desses documentos também os identifica, relacionando-os com um momento de maior interferência das agendas internacionais nos processos nacionais de formulação de políticas e planos de desenvolvimento. Por outro lado, esse mesmo contexto é o que permitiu um espaço maior de participação a grupos identitários com dificuldades de incidir na definição de prioridades e na formulação de políticas no nível nacional.

Algumas questões importantes emergem desse cenário. Uma delas se refere precisamente à dinâmica da formulação de agendas sociais constituída a partir do percurso internacional – nacional. O ponto, neste caso, passa a ser como sair do espaço nacional de disputas e demandas em direção aos espaços internacionais aparentemente mais abertos e permeáveis, para logo voltar à esfera nacional, onde, longe da retórica dos/as líderes, as políticas e as iniciativas de fato se concretizam? Como estabelecer pontes de diálogo e canais de incidência real entre os espaços internacionais e nacionais?

Esta questão é fundamental na medida em que sua resposta é o que irá garantir, no nível nacional, o sentido (ou a ausência dele) das formulações e demandas forjadas no nível internacional. No campo da educação, essa é uma preocupação extremamente relevante, pois se refere à pertinência do que hoje tem sido definido como prioridade e como medida num processo de contínuas reformas, que pouco tem respondido às demandas de igualdade de gênero nos espaços da educação formal.

Acredito que as estratégias e prioridades definidas pelos documentos internacionais de educação no que se refere à igualdade de gênero não são suficientes para dar conta da realidade educacional brasileira. Há que se refletir sobre a coerência entre os indicadores e as metas definidas, e a realidade educacional do país. De nada nos serve restringir a definição de indicadores de igualdade de gênero na educação à paridade no acesso, no desempenho e na permanência, se não é aí que se encontram expressas as desigualdades de gênero no nosso sistema educacional. Como afirma Carmem Barroso35,

“O Brasil precisa ir muito além destas metas, no que se refere a educação das meninas. Há duas coisas importantes neste sentido: a primeira é melhorar a qualidade da educação que é muito baixa, como pode se ver em qualquer comparação internacional. Não adianta haver igualdade se este nivelamento se faz por baixo: meninos e meninas brasileiras não estão em condições de competir no mercado globalizado devido à qualidade da educação que recebem. Em segundo lugar, é necessário introduzir no currículo elementos de crítica à cultura machista que prevalece em nossa sociedade e que reforça uma profunda desigualdade na cabeça das pessoas, em suas atitudes, em suas relações cotidianas e em seu comportamento mais íntimo. Não há igualdade entre os sexos se homens e mulheres continuam a repetir preconceitos e discriminações, que vão desde as mais sutis até as mais grosseiras. A escola deveria ter um papel importante para desmantelar idéias arcaicas que permanecem profundamente enraizadas”.

Por outro lado, a agenda internacional de gênero e educação expressa nos documentos internacionais de promoção dos direitos das mulheres, apesar de apresentar um rol de problemas mais coerentes com uma problematização da educação como produtora/reprodutora de conteúdos e práticas sexistas e discriminatórias, não encontra tanto espaço de incidência na formulação da educação como política pública e de políticas educacionais uma vez aterrissadas em território nacional.

O que se apresenta, na verdade, a partir da revisão desses dois conjuntos de documentos, são duas agendas de gênero diferentes, produzidas em contextos diferentes e por grupos diferentes. A primeira, aquela formulada no âmbito das conferências internacionais de educação, restringe a igualdade de gênero na educação à paridade no acesso e na matrícula. Seu contexto de elaboração e os atores envolvidos no processo nos remete ao espaço político dos Estados Nacionais. A segunda, formulada no âmbito das conferências internacionais das mulheres, apresenta uma leitura política e mais problematizada do tema, propondo um leque de soluções mais complexo e compreensivo. Seu contexto de elaboração são espaços internacionais abertos pelos movimentos feministas e de mulheres, e aceitos pelos Estados Nacionais, membros das Nações Unidas. As atrizes envolvidas nesse processo possuem seguramente um olhar sobre a realidade e uma posição no espaço político de tomada de decisões bastante diferente daqueles através dos quais falam e decidem os atores do outro grupo.

Nesse sentido, e considerando todas as tensões e complexidades envolvidas nesse processo, a questão que se coloca é: qual, afinal, é o tratamento dado pelo Estado Brasileiro e por suas instituições responsáveis pela educação e pela promoção da igualdade de gênero aos objetivos e metas definidos por essas agendas internacionais. Como o Estado se apropria delas para definir a sua própria? Como as aproveita e em que medida as critica e atualiza? Qual delas privilegia e como traduz seus conteúdos em políticas educacionais concretas? Estas questões serão o fio condutor do capítulo seguinte, que se debruça sobre o espaço nacional da formulação de políticas em educação e gênero.