• Nenhum resultado encontrado

Bases Legais do sistema educacional brasileiro

PRELAC – Declaração

4. O Estado Brasileiro, a educação e igualdade de gênero

4.3. Bases Legais do sistema educacional brasileiro

Considero como documentos normativos do sistema educacional brasileiro aqueles produzidos pelo Estado Nacional com valor de lei; aqueles que impõem a obrigatoriedade de seu cumprimento por todas as demais instâncias envolvidas no processo educacional. No Estado Brasileiro, estes documentos correspondem aos seguintes:

 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996.  Plano Nacional de Educação (PNE), de 2001.

 Legislações para todos os níveis de ensino e Diretrizes emitidas pelo CNE.

Entendo que esses documentos definem as prioridades, os princípios e os objetivos últimos da educação nacional. Cabe a eles determinar em que se fundamenta e a quem se destina a construção da cidadania no e pelo Estado Brasileiro. Aí reside sua importância para o mapeamento da agenda de gênero na educação nacional. Garantir a incorporação da temática (e de uma determinada perspectiva, em detrimento de outras) nesses documentos obviamente não garante as mudanças que se pretende promover. No entanto, a sua não incorporação implica na reiterada negação da importância e da relevância do reconhecimento das e a resposta às desigualdades de gênero, assim como das desigualdades de raça, etnia e classe, em suas diferentes dimensões, para a construção de um sistema educacional igualitário e justo.

Quando o movimento negro no Brasil, em 10 de janeiro de 2003, conquista a sanção, pelo Presidente da República, da lei 10.639, que institui como obrigatório o ensino da História e da Cultura Afro-Brasileiras nas instituições de ensino fundamental e médio, alterando a LDB de 1996, inaugura-se um marco legal sem precedentes na história da educação nacional e um marco simbólico de alta relevância no processo de reconhecimento do racismo estruturante em nossa sociedade.

Não há dúvidas de que a lei, por si só, não garantirá sua própria implementação, nem mesmo sua efetividade. Será necessário, para isso, um esforço constante e permanente para a formulação de políticas educacionais que concretizem o que nela está expresso e que viabilizem as transformações almejadas no sentido da desconstrução das desigualdades raciais no país. No entanto, há que se reconhecer que o valor simbólico, para além do valor legal, de

semelhante lei representa um passo considerável no longo e lento processo de mudança da mentalidade institucional do Estado Brasileiro.

É a partir desse entendimento e dessa interpretação, que me proponho a buscar a agenda de gênero presente nesses documentos. Esta agenda não corresponde àquela outra esboçada nas seções acima. Ela, ao contrário, parece retardar e limitar o desenvolvimento e a implementação da primeira.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e o Plano Nacional de Educação (2001)

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, introduz alguns marcos importantes no panorama educacional brasileiro. Amplia a educação básica, passando a incluir o ensino médio e a educação infantil, e ratifica a obrigatoriedade do ensino fundamental; reinstituiu o Conselho Nacional de Educação (CNE); e reafirma a gratuidade do ensino básico obrigatório.

A LDB de 1996 institui também a descentralização administrativa e financeira da educação. Aos municípios cabe a responsabilidade pela oferta da educação infantil e do ensino fundamental (com prioridade neste último); aos estados, pela oferta do ensino fundamental e do ensino médio (prioridade no último); e à União, a responsabilidade pelo ensino superior, além da oferta de outras modalidades de ensino ainda que sem prioridade. À União cabe também prestar apoio técnico e financeiro aos estados e municípios, além de coordenar a articulação esses três níveis do sistema. Segundo a LDB, os entes federativos do Estado devem trabalhar em regime de colaboração, o que, segundo Haddad (2008: 98-99), não tem acontecido na prática:

“é preciso um pacto entre eles [governo federal, estados e municípios], para que aconteça o que está na Lei de Diretrizes e Bases, que é o regime de colaboração. Com isso, nós não temos um sistema nacional de educação, e sim mais de 5,5 mil regimes nos municípios, mais 27 nos governos estaduais, cada um agindo do jeito que quer”.

A LDB define também, em seu artigo 1o, parágrafo 2o, que “a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social” e afirma como princípios básicos da educação nacional (artigo 2o), a liberdade e a solidariedade. Define como finalidade da educação “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

A ênfase na qualificação para o trabalho, em paralelo com a ênfase em valores de liberdade e solidariedade dialogam com os princípios definidos pelos documentos internacionais analisados anteriormente e reflete a incorporação da lógica da economia da educação, por um lado, e do desenvolvimento humano como liberdade, por outro.

No que se refere à promoção da igualdade de gênero, a LDB não apresenta nenhuma referência. O tema simplesmente não aparece no texto da lei, aliás, todo ele escrito sem nenhuma preocupação com a linguagem. Fala-se em “o educando” e “o docente” ao longo de todo o documento.

A LDB institui a Década da Educação e apresenta o PNE como definidor das metas e diretrizes para essa década. Afirma ainda que o plano se formula tendo como referência a Declaração Mundial sobre Educação para Todos (Jomtien, 1990).

Tanto a LDB de 1996, quanto o PNE de 2001 foram amplamente discutidos com a sociedade brasileira (associações e sindicatos de profissionais da educação e intelectuais da área. Movimentos sociais, até onde pude apurar, não participaram do processo). No entanto, em ambos casos, as versões finais sancionadas incorporaram não as demandas e sugestões da sociedade, mas as formulações apresentadas pelo Ministério da Educação (Vianna e Unbehaum, 2004). Valente e Romano (2002: 98) afirmam que:

“As duas propostas do PNE materializavam mais do que a existência de dois projetos de escola, ou duas perspectivas opostas de política educacional. Elas traduziam dois projetos conflitantes de país. De um lado, tínhamos o projeto democrático popular, expresso na proposta da sociedade. De outro, enfrentávamos um plano que expressava a política do capital financeiro internacional e a ideologia das classes dominantes, devidamente refletido nas diretrizes e metas do governo”.

Com respeito à ausência da perspectiva de gênero no documento, Vianna e Unbehaum (2004: 87), citando Valente e Romano (2002), afirmam que a proposta da sociedade brasileira fazia “menção à diversidade, às diferenças”, citando trecho da introdução em que se enfatiza a importância de considerar “grupos tidos como minoritários – negros, índios e homossexuais” (Vianna e Unbehaum, 2004: 88). Na verdade, fica claro que nem a proposta da sociedade, nem a proposta do MEC contemplam as desigualdades de gênero como um tema do sistema educacional brasileiro, sendo as menções feitas ao assunto ilustrativas e inócuas, quando não equivocadas.

O PNE, além de também ser elaborado sem sensibilidade de gênero no que se refere à linguagem, não apresenta dados desagregados por sexo, raça e etnia. Quando fala das exclusões sociais na educação, menciona o analfabetismo e apresenta dados do ensino fundamental, médio e superior, mas relaciona-os sempre à exclusão pela pobreza, não chegando a problematizar as desigualdades de gênero, raça e etnia, também estruturantes do quadro geral de desigualdades no Brasil.

O Plano também define a educação como essencial para o exercício da cidadania, definindo-a como a “possibilidade de acesso real, e juridicamente exigível, ao exercício efetivo dos direitos básicos, comuns a todos os integrantes da Nação e ao cumprimento dos deveres correspondentes”. Na seqüência, afirma que “a cidadania significa também o exercício do direito ao trabalho. Uma parte da cidadania de um chefe de família é ter um emprego, um salário e o poder de atender às suas necessidades e às dos seus” (pp. 11).

Daí se depreende, primeiro, que a cidadania sobre a qual a educação é definida como responsável, reduz-se ao exercício de direitos básicos. Segundo, fica claramente determinado quem é considerado cidadão para esse Estado, garante da educação escolar básica: os homens, chefes de família.

Afora as menções implícitas e o conteúdo genericamente marcado, três referências, em todo o Plano, são feitas com respeito à igualdade de gênero. A primeira, no diagnóstico da educação infantil, quando se afirma que “a distribuição das matrículas, quanto ao gênero, está equilibrada: feminino, 49,5% e masculino, 50,5%. Esse equilíbrio é uniforme em todas as regiões do país. Diferentemente de outros países e até de preocupações internacionais, em nosso país essa questão não requer correções” (pp. 37).

Menção ao tema volta a ser feita no Plano, ao se tratar da formação de professores de magistério. Define-se como princípio dos cursos de formação de professores de magistério, a “inclusão das questões relativas à educação dos alunos com necessidades especiais e das questões de gênero e de etnia nos programas de formação” (pp. 113).

A temática de gênero, portanto, está restrita ao âmbito da educação infantil – onde não é um problema e onde não necessita de “correções” – e à formação de professores (mantenho a grafia no masculino para reforçar o uso adotado pelo PNE) de magistério apenas.

No caso da afirmação feita para a educação infantil, podemos observar a referência à agenda internacional de gênero e educação de maneira explícita. Como a ênfase desta agenda está na paridade nos índices de acesso, o Estado Brasileiro conclui que as desigualdades de gênero não são um problema em seu sistema educacional.

Finalmente, no item Objetivos e Metas para o Ensino Fundamental, o PNE recomenda “a adequada abordagem das questões de gênero e etnia e a eliminação de textos discriminatórios ou que reproduzam estereótipos acerca do papel da mulher, do negro e do índio” (p. 54). A esse item, agrega-se a seguinte ressalva: “a iniciativa para cumprimento deste Objetivo/Meta depende da iniciativa da União” (p. 53), o que nos dá um referencial importante sobre as responsabilidades pela promoção da igualdade de gênero e pela produção de conteúdos para o ensino fundamental, considerando-se os diferentes níveis da federação.

Vianna e Unbehaum (2004) apontam, como características do tratamento do tema de gênero nos documentos oficiais da educação formal por elas analisados51: a linguagem, os direitos e o gênero propriamente dito. Com respeito à dimensão da linguagem, apontam para o uso de linguagem sexista, marcada pelo masculino genérico e supostamente universal utilizado ao longo de todo o texto.

No que se refere à dimensão dos direitos, as autoras chamam a atenção para a “ausência do gênero nas premissas que discutem os direitos e a organização do sistema educacional brasileiro” (Vianna e Unbehaum, 2004: 91).

A última dimensão explorada pelas pesquisadoras é a do “gênero desvelado”, a partir da qual procuram encontrar menções explícitas e específicas à igualdade de gênero nos

51 As autoras analisam, neste artigo, a Constituição Federal de 1988, a LDB de 1996 e o Plano Nacional de Educação de 2001.

documentos considerados. Encontram, como na presente pesquisa, três menções no PNE e nenhuma na LDB.

Cabe ressaltar que, com o início do Governo Lula, em 2003, o PNE parece ter sido deixado de lado. Não chegou a ser revogado – continua em vigor até 2011 – nem revisado. Saviani (2007) sugere que ele tenha sido, na prática, suplantado pelo PDE, embora este último não se constitua de fato como um plano para a educação, mas sim como um plano de metas52.

Esses dois documentos, em conjunto com as demais leis e resoluções emitidas pelo CNE para os diferentes níveis de ensino do sistema educacional nacional, constituem a legislação educacional brasileira. São estes os documentos que definem a educação nacional: seus princípios, métodos e conteúdos fundamentais; sua estrutura e sua política de financiamento. Da maneira como estão formulados, são insatisfatórios do ponto de vista do reconhecimento de desigualdades e direitos não apenas de gênero, como também de raça, etnia e classe. Listo abaixo o que considero serem as principais lacunas destes documentos:

1. Ausência de um diagnóstico do sistema educacional capaz de abarcar os diferentes eixos de desigualdades que estruturam a nossa sociedade e, consequentemente, o nosso sistema educacional. São eles: (a) o eixo das desigualdades de gênero, que se configura na ordem de gênero marcada por padrões culturais sexistas e por uma estrutura social ainda fundada no patriarcado; (b) o eixo das desigualdades de raça e etnia expressas numa estrutura social profundamente marcada pelo racismo, que ainda considera como “grupo minoritário” uma população que corresponde à metade da população brasileira; (c) o eixo das desigualdades de classe, que se reproduz no sistema educacional também de maneira perversa através das tendências privatistas da educação nacional, que tornam a educação cada vez menos um instrumento de mobilidade social.

2. Ausência de uma proposta de educação que incorpore como princípio a formulação de uma educação não-sexista, não-racista, de qualidade e acessível para todos e todas.

3. A ausência de objetivos e metas que materializem esses princípios, instituindo políticas educacionais que abarquem as dimensões da redistribuição, do reconhecimento e da representação.

4. A ausência da definição de uma nova estrutura educacional capaz de dar conta desse novo projeto educacional.

5. A ausência da definição de um orçamento que garanta a implementação dessa legislação e desse sistema.

6. A não-instituição de uma instância permanente de monitoramento e formulação na qual estejam representados/as os diferentes grupos e setores da sociedade e a qual exerça o controle social das políticas educacionais de responsabilidade do Estado.