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Interesses de classe versus identidade de grupo: mudanças de paradigmas

2. Redistribuição, reconhecimento e representação como dimensões do sistema educacional no Brasil.

2.1. Interesses de classe versus identidade de grupo: mudanças de paradigmas

Em 1997, Fraser lança Justice Interruptus. Critical reflections on the “Postsocialist”

Condition, um conjunto de artigos que busca apresentar um diagnóstico amplo e complexo de

um período marcado pelo que a autora denomina a “condição pós-socialista”. Definida como um “estado de espírito cético”, ou como a “estrutura de um sentimento que marca o estado pós-1989 da esquerda” (Fraser, 1997: 01), essa condição é caracterizada a partir de três aspectos constitutivos. São eles: a ausência de uma alternativa progressista à ordem vigente; uma mudança na gramática das demandas sociais; e um ressurgimento do liberalismo econômico (Fraser, 1997).

As dimensões da redistribuição e do reconhecimento são apresentadas por Fraser nesse contexto, como elementos das mudanças na gramática das demandas sociais, assim como na emergência e na visibilidade de novos atores sociais que começam a enfatizar as identidades de grupo em lugar dos interesses de classe (Fraser, 1997).

Ao desfazer-se a polarização que definia as agendas política, econômica e ideológica no mundo, abre-se espaço para as demandas de natureza identitária, que já ganhavam força e organização na Europa Ocidental e nos EUA desde o final dos anos 1960, quando se fortaleciam os movimentos negro e de mulheres especialmente.

Neste contexto, o conceito de dominação cultural, e não mais o de exploração econômica, assume a centralidade da cena política. Movimentos, associações e organizações passam a se orientar por uma nova ideologia, fazendo com que as demandas por

reconhecimento comecem a ganhar força e, ao mesmo tempo, a se opor às demandas por redistribuição (correspondentes, nessa nova lógica, ao modelo anterior).

A pauta da identidade no contexto das demandas políticas reconfigura o cenário dos movimentos sociais, abrindo espaço para o que se convencionou chamar de “novos movimentos sociais”, em oposição aos “velhos movimentos”. Enquanto estes últimos são associados a um paradigma caracterizado por uma identidade inscrita na estrutura de classes sociais, por conflitos de interesses sintetizados nas lutas de classe e por uma perspectiva materialista-histórica das relações de poder e das disputas, os novos movimentos sociais “têm sido caracterizados por uma crescente politização da vida social” (Laclau, 1983: 02) que instaura novas formas de organização social baseadas na identidade de grupo, cria novos espaços para o fazer político e reorienta a agenda das demandas sociais em direção às chamadas “políticas culturais”5.

Para Laclau (1983: 06), os novos movimentos sociais surgem em um momento em que,

“A multiplicação de pontos de ruptura que tem acompanhado a crescente burocratização da vida social e a ‘comodificação’ das sociedades industriais avançadas têm acarretado uma proliferação de antagonismos, mas cada um deles tende a criar seu próprio espaço e a politizar uma área específica de relações sociais”.

Há, portanto, com a nova dinâmica instaurada pelos novos movimentos sociais, caracterizados por suas demandas identitárias, um deslocamento dos espaços políticos de uma arena mais fortemente demarcada pelos limites e fronteiras das formas de associativismo relacionadas à luta de classes (sindicatos em negociação e disputa com o Estado – sociedade civil versus sociedade política), para espaços plurais de atuação política – as redes regionais, internacionais e globais que hoje conectam movimentos sociais das mais diversas partes do mundo e se consolidam como atores nos processos de formulação e debate político de âmbito internacional são exemplos desse processo. De acordo com Alvarez, Dagnino e Escobar

5 Sonia E. Alvarez, Evelina Dagnino e Arturo Escobar (2000: 24), assim definem política cultural: “interpretamos política cultural como o processo posto em ação quando conjuntos de atores sociais moldados por e encarnando diferentes significados e práticas culturais entram em conflito uns com os outros”.

(2000: 26), “as políticas culturais dos movimentos sociais tentam amiúde desafiar ou desestabilizar as culturas políticas dominantes” e se constituem, segundo Scherer (2006: 113), “em torno de uma identidade ou identificação, da definição de adversários ou opositores e de um projeto ou utopia, num contínuo processo em construção”.

As “políticas culturais” inauguradas com os chamados novos movimentos se inserem, portanto, no que Fraser definiu como a dimensão do reconhecimento, a qual “enfatizou a necessidade de reconhecer a diferença” (Fraser, 2007: 296). Enquanto as lutas por redistribuição, associadas aos velhos movimentos, concentravam-se na busca por equidade social a partir de um novo modelo de distribuição econômica, as lutas por reconhecimento se afastaram das demandas de caráter econômico para focarem seus esforços em mudanças em padrões de comportamentos e em hierarquias culturais.

As demandas culturais desses novos grupos identitários, no entanto, produziram, segundo Fraser, um deslocamento não só dos espaços possíveis de exercício político, como também da própria agenda política de demandas sociais. A ênfase exclusiva na dimensão da redistribuição é substituída, em grande medida, pelas demandas por reconhecimento, sem que, no entanto, o problema da má distribuição estivesse resolvido. Para Fraser (2007: 297), portanto,

“No contexto do fin-de-siécle, a virada em direção ao reconhecimento acomodou-se confortavelmente ao neo-liberalismo hegemônico que nada mais queria que reprimir a memória do igualitarismo social. O resultado foi uma ironia histórica. Ao invés de chegar a um paradigma maior e mais rico que incluísse tanto a redistribuição quanto o reconhecimento, nós efetivamente trocamos um paradigma truncado por outro – um economicismo truncado por um culturalismo truncado”.

A idéia de Fraser de que as demandas por reconhecimento de alguma maneira suplantam as demandas por redistribuição no contexto do pós-socialismo definido pela autora e a separação das demandas econômicas das demandas culturais foram criticadas por Iris Young (1997), que defende que o cultural é econômico e acusa Fraser da elaboração de um

modelo dicotômico que não dá conta da multiplicidade de dimensões presentes no fenômeno da opressão. Para Young (1997: 154), um modelo teórico mais interessante para a tensão entre demandas por redistribuição e demandas por reconhecimento seria um modelo plural que “conceptualize questões de justiça envolvendo reconhecimento e identidade como possuidoras de inevitáveis fontes e conseqüências materiais econômicas, sem ser reduzíveis às dinâmicas de mercado ou a exploração e privação econômicas”.

Fraser (1997a) responde à crítica de Young afirmando que seu modelo na verdade não propõe uma dicotomia que separa o universo cultural do universo econômico, mas sim, e para fins analíticos, uma perspectiva dual na qual as dimensões se comunicam e se interpenetram.

No contexto dos movimentos sociais brasileiros e latino-americanos, um fenômeno interessante é o da formação de redes que, segundo Scherer (2006: 115), “vêm permitindo aos movimentos sociais passarem da defesa de um sujeito identitário único à defesa de um sujeito plural”. A pesquisadora sugere que o espaço das redes tem propiciado a assimilação de umas dimensões por outras, tornando cada vez menos dissociadas não apenas as múltiplas dimensões identitárias, como também as dimensões econômicas da distribuição6.

Na Educação

No campo da educação, podemos localizar esse momento de mudança de paradigma no pensamento de autores como Giroux & McLaren (1997) e Bruner (2001) e nas teorias feministas que se acercaram à ou que foram aproximadas da educação por alguns dos autores mencionados. Os estudos culturais críticos, como passaram a ser chamados, surgiram como uma alternativa às teorias reprodutivistas da educação (Bourdieu7, Bernstein8), que tendiam a pautar sua análise crítica pela leitura ainda marcadamente marxista das desigualdades sócio- econômicas da sociedade. Da ênfase na reprodução da estrutura social de classes, passa-se à análise da produção/reprodução cultural – em seus diversos aspectos – inerente ao processo de escolarização.

6 Este seria um tema para pesquisa e reflexão mais elaboradas, o que não cabe neste trabalho. No

entanto, como a linha teórica adotada neste trabalho segue o pensamento de uma norte-americana bastante vinculada a seu contexto nacional, vale o comentário para marcar uma possível especificidade do contexto brasileiro no que se refere à comunicação entre as demandas de naturezas diferentes.

7 Apud Nogueira & Nogueira, 2004. 8 2003.

As chamadas teorias reprodutivistas foram as que, pela primeira vez, examinaram a educação a partir de uma perspectiva histórica da sociedade, que identificava nas instituições de ensino, instrumentos de reprodução da cultura e da estrutura de classes (Freitag, 2005). Essa visão se opunha àquela fundada por Durkheim (1978), que via a educação como um laboratório de transformação dos indivíduos de seres egoístas em seres coletivistas, capazes de viver em sociedade. Não há, em Durkheim, uma reflexão crítica a respeito do papel das instituições educacionais na manutenção da estrutura e da ordem sociais. Durkheim vê na educação o espaço de formação da sociedade coesa que formula. Não há conflitos nem tensões presentes no processo educativo na visão deste pensador.

Visão que se opõe também à concepção da educação como agente democratizante da sociedade formulada por Mannheim e Dewey (Freitag, 2005). Estes dois autores chegaram a identificar, de maneira mais explícita, a educação com a ideologia do Estado, mas terminaram vinculando-a a um projeto de democracia meritocrático que também não reconhecia no processo educativo o espaço político e de relações de poder que Bourdieu (Nogueira e Nogueira, 2004) e Bernstein (2003), entre outros, localizaram.

A teoria crítica irá trazer ao debate contribuições dos pensamentos pós-estruturalista e pós-moderno, dialogando também com a teoria feminista, e apresentando uma abordagem da educação que leva em consideração a dominação e as relações de poder instauradas nas práticas pedagógicas e, essencialmente, na linguagem. Segundo Giroux e McLaren (1997), a teoria crítica radical propõe a interseção entre linguagem e subjetividade, poder e história. Os autores localizam na teoria reprodutivista “um modo de análise reativo, que repetidamente supersimplifica a complexidade da vida cultural e social” (Giroux e McLaren, 1997: 27).

Associo, para fins deste estudo, a crítica de perspectiva marxista da educação (a teoria reprodutivista e também a perspectiva althusseriana, que define a escola como um aparelho ideológico do Estado) à dimensão da redistribuição; e a perspectiva da teoria crítica, à dimensão do reconhecimento. O paralelo que podemos traçar entre as duas perspectivas de um lado, e as dimensões da justiça de Fraser de outro, permite-nos inserir esse debate sociológico- pedagógico sobre o sentido e a função da educação num contexto histórico mais amplo, que abarcou não só uma série de transformações no âmbito político das demandas sociais, como também mudanças de paradigma nas ciências sociais e nas teorias sobre a educação.

No caso brasileiro, o pensamento crítico no campo da educação concentrou-se nas correntes marxistas e, portanto, enfatizou a dimensão da redistribuição em detrimento da dimensão do reconhecimento9. De fato, os estudos culturais críticos (ou o multiculturalismo crítico, conforme formulado por McLaren10) parecem não ter adquirido tanta força nas pesquisas e na formulação do pensamento da sociologia da educação e da pedagogia no Brasil. Talvez porque as desigualdades sociais de classe ainda sejam o alvo principal das demandas sociais no país, ou talvez porque o multiculturalismo no Brasil se manifeste de uma maneira distinta aos países europeus, onde a teoria foi originalmente formulada.