• Nenhum resultado encontrado

As três dimensões da justiça: Redistribuição, Reconhecimento e Representação

2. Redistribuição, reconhecimento e representação como dimensões do sistema educacional no Brasil.

2.2. As três dimensões da justiça: Redistribuição, Reconhecimento e Representação

“... o significado mais geral de justiça é a paridade de participação. De acordo com essa interpretação democrática-radical do princípio da igualdade do valor moral, a justiça exige arranjos sociais que permitam a participação de todos e todas como pares na vida social. Superar injustiças significa desmantelar obstáculos institucionalizados que impedem a participação de algumas pessoas em pé de igualdade com outras, como parceiros integrais na interação social”11 (Fraser, 2005: 05).

A teoria da justiça inicialmente proposta por Fraser (1997), conforme já mencionado, apresenta apenas duas dimensões: a redistribuição e o reconhecimento. É na tensão e na relação entre essas duas dimensões que a autora localiza, em princípio, sua teoria de justiça. Em publicações mais recentes, no entanto, Fraser (2003, 2005) revisa seu posicionamento inicial e, atualizando o contexto no qual insere sua teoria, apresenta a terceira dimensão da justiça: a representação.

9 É importante ressaltar que a dimensão da representação conforme proposta por Fraser (ou qualquer formulação semelhante), até onde pude apurar, não é incorporada por nenhuma corrente teórica nem da sociologia da educação, nem da pedagogia.

10 1997.

A partir de um marco geral de justiça, definida em linhas gerais como “paridade na participação”, a autora amplia sua abordagem inicial, desenvolvendo e complexificando as três dimensões apontadas.

A primeira, a redistribuição, corresponde, como já mencionado anteriormente, à dimensão econômica do modelo teórico. O conceito da redistribuição se sustenta na noção de que a participação pode ser impedida por situações de privação econômica. A má distribuição faz com que as pessoas sejam “impedidas de participar plenamente por estruturas econômicas que negam os recursos necessários a elas para interagir com outras como pares” (Fraser, 2005: 05). No modelo de Fraser, a situação de injustiça produzida nessa dimensão exige como medida corretora a redistribuição dos recursos e das riquezas.

O reconhecimento, por sua vez, corresponde, no sistema de Fraser, à dimensão cultural da justiça. Refere-se ao que a autora chama de “status order” e parte do princípio de que “as pessoas também podem ser impedidas de interagir em condições de paridade por hierarquias de valor cultural institucionalizadas, as quais lhes negam os requisitos definidos como necessários” (Fraser, 2005: 05) para o estabelecimento de relações sociais igualitárias.

Finalmente, a dimensão da representação surge da percepção da autora de que a justiça não pode ser plenamente democrática se não abre espaços à participação de todas e todos também aos processos de formulação dos marcos definidores de um determinado sistema. Ou seja, se um segmento da população está excluído do processo de definição de marcos legais e legislativos; se o sistema de regras e leis que orienta uma sociedade não é pensado e formulado de maneira participativa e igualitária, ele não poderá resultar em um marco igualitário e participativo, capaz de contemplar a todos e todas.

O mais interessante do modelo tridimensional de Fraser é que, ao mesmo tempo em que ele delimita e caracteriza cada dimensão em particular, ele nos permite um olhar sobre as desigualdades que, além de identificar cada dimensão, é capaz de abarcar e associar as interconexões das múltiplas representações de desigualdades. Num contexto social como o brasileiro, em que desigualdades de classe, raça, etnia e gênero se combinam na conformação de uma estrutura de injustiça e exclusão social profundas e definidoras das relações e hierarquias que organizam a sociedade como um todo, somente um modelo capaz de abarcar

essa complexidade pode servir para diagnosticar a realidade e para apresentar alternativas de transformação da mesma.

Associar a dimensão da redistribuição à dimensão do reconhecimento, e vice-versa, é entender que as desigualdades de classe, de caráter econômico, são reforçadas pelas desigualdades de gênero e de raça/etnia, na mesma medida em que as desigualdades de raça/etnia e de gênero se vêem intensificadas em contextos de desigualdades de classe. Pensar, por exemplo, em políticas de transferência de renda no Brasil sem levar em conta que a pobreza no país está intrinsecamente associada à condição racial/étnica e ao sexo associado a papéis de gênero é atacar apenas parte de um problema e arriscar não resolvê-lo inteiramente. De maneira análoga, formular uma política educacional de ampliação de acesso ao ensino médio que não considere as desigualdades de raça e de gênero implicadas na dinâmica de abandono da escola é investir numa fração de problema, e não num problema inteiro.

A terceira dimensão da justiça, a de representação, é formulada por Fraser a partir da observação das dinâmicas de organização e funcionamento de alguns movimentos transnacionais, como a diversidade dos movimentos feminista e de mulheres, os quais passaram a exercer uma real influência na definição de políticas e na revisão de legislações a partir de uma inserção ampliada e fortalecida no cenário internacional, em especial nos espaços internacionais de tomada de decisão. “Sobre o guarda-chuva do slogan ‘os direitos das mulheres são direitos humanos’, feministas de todo o mundo estão conectando lutas contra práticas patriarcais locais, com campanhas por reformas do direito internacional” (Fraser, 2005: 03).

Trata-se da dimensão política do modelo de Fraser (2005: 06), e se fundamenta na crítica aos modelos de pertencimento social que orientam nossas sociedades.

“Ao estabelecer os critérios de pertencimento social e, portanto, ao definir quem conta como um membro, a dimensão política da justiça torna mais específico o alcance das outras duas dimensões: ela nos diz quem está incluído e quem está excluído do círculo daqueles que têm direito a uma justa distribuição e a um reconhecimento recíproco”.

A falta de representação (misrepresentation) se expressa em três níveis: a falta de representação política ordinária (ordinary-political misrepresentation), a falta de enquadramento (misframing), e a falta de representação meta-política (meta-political

misrepresentation).

O primeiro nível, o da falta de representação política ordinária, se refere a quando “regras de decisão política negam a alguns dos incluídos a oportunidade de participação integral” (Fraser, 2005: 08) no sistema político de representação. Neste nível, está incluída, por exemplo, a falta de representação política de mulheres e afro-descendentes nos espaços de tomada de decisão e de debate político. Nesse sentido, é interessante notar que a falta de representação não se dá, via de regra, por uma impossibilidade explícita e categórica, mas sim por uma estrutura social patriarcal e racista e que, combinando restrições políticas e econômicas com uma hierarquia desigual de valores culturais, produz e mantêm uma sociedade fundada em desigualdades e exclusões.

O segundo nível da falta de representação é a chamada falta de enquadramento, que se refere, de acordo com a autora, à ausência de representação de alguns setores e grupos sociais nos processos e espaços de definição de parâmetros e limites dentro do campo político.

“Aqui a injustiça surge quando os limites de uma dada comunidade são definidos de maneira tal a excluir erroneamente algumas pessoas de qualquer possibilidade de participação nos espaços autorizados de demanda por justiça”(Fraser: 2005, 08).

Esse nível de falta de representação é, segundo Fraser, o mais sutil deles, pois não se trata apenas da não-representação em espaços de tomada de decisão. Trata-se da não- participação nos processos que criam estes espaços. Em última instância, o que se questiona aqui é o sistema mesmo; as sutilezas de estruturas de poder, controle e domínio que, ainda que aparentemente abertas, permanecem dentro de um sistema criado e perpetuado por uns poucos. Daí decorre um ponto de tensão importante: como solucionar as injustiças e desigualdades oriundas desse sistema? Joga-se com as regras já definidas ou busca-se a ruptura com o modelo? Participar dos processos de criação dos parâmetros que conduzem os sistemas de

regulação social é uma forma de subversão e ruptura desse sistema, ou simplesmente uma forma de entrar no jogo?

O que se questiona é, enfim, a possibilidade de incidência mais profunda e de real transformação. A margem, os excluídos e excluídas, a estrutura desigual do sistema educacional não são sua expressão desvirtuada, mas sim partes constitutivas do mesmo. A demanda por representação, portanto, é tanto uma estratégia de transformação e de ruptura, como uma tentativa de exercício de participação por aquelas e aqueles historicamente excluídos desse processo. Que diferentes sejam iguais perante o sistema de direitos. Philips (2001) defende a idéia de que a demanda por representação não deve estar traduzida simplesmente no que ela chama de uma política de presença (materializada através das cotas e da representação física de diferentes grupos nos espaços de tomada de decisão), mas também numa política de idéias, capaz de tornar presentes as demandas de todos os grupos, ainda que a totalidade deles não esteja representada paritariamente.

O problema aqui é que o sistema que temos atualmente (capitalista, de economia neo- liberal e política conservadora) não está, na prática, fundado nem sobre as bases da paridade de representação (presença), nem sobre as bases da multiplicidade de demandas representadas nos espaços de tomada de decisão (idéias).

Fraser, no entanto, tem em mente um universo político de fronteiras cada vez menos definidas, que permitiria a abertura de novos espaços políticos possíveis para as respostas às demandas por redistribuição, reconhecimento e representação. “Como podemos integrar lutas contra a má distribuição, a falta de reconhecimento e a falta de representação dentro de um marco pós-Vestfália?” 12, a autora pergunta (Fraser, 2005: 11). Como incorporar princípios de igualdade e de justiça a um modelo de Estado que parece ter seus contornos de soberania nacional cada vez menos definidos?

Para responder a essa pergunta e numa tentativa de determinar o sujeito de justiça (the

‘who’of justice), Fraser apresenta o conceito de políticas de enquadramento (politics of framing), que compreende “esforços para estabelecer e consolidar, para contestar e revisar a

divisão autoritária do espaço político” (Fraser, 2005: 11). As políticas de enquadramento,

12 O marco pós-Vestfália mencionado por Fraser se refere a um novo marco para a organização do sistema internacional definido pela existência de um poder supra-nacional e pela dissolução dos contornos territoriais dos Estados soberanos.

segundo Fraser, podem assumir duas formas distintas: a forma afirmativa, e a forma transformadora. A primeira aceita a ordem tradicional instituída pela Paz de Westfalia e opera dentro dela, a partir da gramática desta. E isso significa, na perspectiva apresentada pela autora neste artigo, aceitar o princípio territorial definidor dos Estados como marco organizador dos espaços de demandas.

A segunda, por outro lado, não aceita o princípio territorial demarcado por Estados como definidor dos sujeitos de justiça. Fraser (2005: 12) enfatiza que não se rejeita inteiramente o princípio – reconhece-se sua existência como marco orientador das instituições e processos, mas argumenta que:

“a gramática deste marco não está em sincronia com as causas estruturais de várias injustiças do mundo globalizado que não têm um caráter territorial. (...). Nestes assuntos, tão fundamentais ao bem-estar humano, as forças produtoras de injustiça pertencem não a um ‘espaço de lugares’, mas a um ‘espaço de fluxos’ [espace of flows]13”.

A discussão sobre as políticas de enquadramento guardam, na verdade, um questionamento mais profundo a respeito da definição dos princípios de um modelo pós- Westfálico ainda em construção. E, nesse sentido, o debate se orienta então para as possibilidades de participação não só nos processos de imitação dos sujeitos de justiça, mas também nos processos mesmos – os modelos e as instituições reguladoras do sistema de justiça, dentro do modelo territorializado de Estado com o qual contamos. O foco passa, então, ao “como” da justiça (the ‘how’ of justice). É o nível da meta-política, segundo Fraser, o espaço da formulação do político: dos mecanismos e instrumentos do político.

E daí surge o terceiro e último nível da falta de representação: a falta de representação meta-política (meta-political misrepresentation), que consiste na

“falência da institucionalização da paridade de participação no nível meta-político, em deliberações e decisões referentes ao sujeito da

justiça. (...). A falta de representação meta- política surge quando Estados e elites transnacionais monopolizam a atividade de definição de parâmetros, negando voz àqueles que possam ser prejudicados no processo, e bloqueando a criação de arenas democráticas onde as demandas dos últimos possam ser vetadas e reelaboradas” (Fraser, 2005: 16).

Assim, a teoria da justiça proposta por Fraser, baseada nas dimensões de redistribuição, reconhecimento e representação, termina por ressaltar a necessária aproximação entre justiça e democracia como resultado das lutas contra a falta de enquadramento. As demandas surgidas dessas lutas chamam a atenção para a necessidade de se criar instituições capazes de abrigar, em um nível extra-nacional, as representações de todos os sujeitos de justiça, o que não deixa de sinalizar, também, para a necessidade de ampliação das possibilidades de representação no nível nacional também.