• Nenhum resultado encontrado

Alguns aspectos do processo de medicalização no Céu da Mantiqueira

Capítulo 4: O “sistema de cuidados da saúde” do Céu da Mantiqueira

3. Os principais procedimentos terapêuticos utilizados pelos participantes do Céu da

3.6 Alguns aspectos do processo de medicalização no Céu da Mantiqueira

Mencionei anteriormente que o processo de terapeutização da comunidade do Céu da Mantiqueira inclui também a medicalização. Vamos examinar mais detalhadamente como é este processo medicalização no Céu da Mantiqueira. Os médicos que participam desta comunidade destacam dois aspectos. O primeiro destes aspectos diz respeito aos casos em que não é indicado que a pessoa tome daime e o segundo está ligado ao uso da medicação alopática

3.6.1 Casos nos quais não é indicado tomar daime

Segundo as narrativas das pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde ligadas ao Céu da Mantiqueira, existem alguns casos nos quais não é indicado tomar daime. Tratam-se de casos de pessoas diagnosticadas como psicóticas, esquizofrênicas ou que estejam tomando determinado tipo de medicação antidepressiva com base na fluoxetina. De acordo com eles, além dos casos em que a pessoa não deve ou não pode tomar daime, existem também casos de pessoas que tem “alterações psíquicas” que podem tomar pouco daime ou que só podem tomar daime com supervisão médica.

No Céu da Mantiqueira, para evitar que pessoas tomem daime sem ter a devida orientação, é realizada antes dos rituais uma entrevista e uma anamnése com os “iniciantes”103. Pessoas que tiverem dúvida sobre a compatibilidade de medicamentos com a bebida também podem se orientar com os médicos que participam do Céu da Mantiqueira. Estes afirmam que os únicos medicamentos incompatíveis com o daime são os inibidores de recaptação de serotonina baseados na fluoxetina. De acordo com eles, outros medicamentos podem ser utilizados sem contra-indicações. Além disso, as pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde podem observar os participantes durante os rituais e, se perceberem algum quadro que acham que condiz com uma “alteração clínica”, podem conversar com a pessoa, sugerir que procure um apoio terapêutico e indicar que tome menos daime.

Estes tipos de cuidado e de supervisão são direcionados para evitar os riscos do que em termos êmicos é chamado de “rodar” e equivale à perda do controle da experiência por parte da pessoa. Nas entrevistas que eu fiz com as pessoas que trabalham

103

profissionalmente na área da saúde, tentei compreender qual a explicação dada para os casos das pessoas que “rodam”. Os profissionais da área da saúde que participam do Céu da Mantiqueira relacionam estes casos com a existência de um quadro ou uma predisposição prévios. Nestas circunstâncias, o daime poderia servir como um “gatilho” ou desencadeador de um quadro mais grave. Estes profissionais enfatizam, porém, que não se pode colocar a responsabilidade no daime. De acordo com eles, como trata-se de pessoas que já apresentavam um quadro anterior ou uma predisposição para desenvolve- lo, qualquer outra situação também poderia servir como desencadeador de um quadro mais grave.

Estas questões remetem a uma discussão sobre o que é considerado como “normal” ou como “loucura”. Stanislav Grof (1994) faz uma reflexão interessante sobre os comportamentos que costumam ser classificados como doenças ou psicoses pelo modelo biomédico oficial. Para Grof, estes estados podem ser considerados como uma emergência espiritual. Ele define emergência espiritual como “estágios críticos e experimentalmente difíceis de uma transformação psicológica profunda, que envolve todo o ser da pessoa. Tomam a forma de estados incomuns de consciência e envolvem emoções intensas, visões e outras alterações sensoriais, pensamentos incomuns, assim como várias manifestações físicas” (1994:39).

Grof vê a emergência espiritual como um fator importante para o despertar progressivo da dimensão espiritual e considera que estes estados, se forem adequadamente entendidos e tratados como fases difíceis num processo natural de desenvolvimento, “podem resultar em cura emocional e psicossomática, em profundas mudanças positivas na personalidade e na solução de muitos problemas da vida” (1994:45). Para este autor, o que faz com que estas experiências pareçam patológicas não é sua natureza, mas sim o contexto no qual elas tem lugar. Assim, na sociedade moderna, a emergência espiritual teria se tornado conhecida como uma doença.

No Céu da Mantiqueira, os casos nos quais o daime não seria indicado apontam para uma espécie de controle do acesso à bebida. Este controle poderia constituir um indicador de um incipiente processo de medicalização do próprio daime. É importante ressaltar, porém, que trata-se de casos raros. Uma das psiquiatras que eu entrevistei descreveu alguns casos de pessoas que “rodaram”, nos quais foi necessária a “suspensão” do daime, mas durante minha pesquisa de campo não cheguei a acompanhar nenhum caso deste tipo.

3.6.2 Uso de medicação alopática

O segundo aspecto destacado pelas pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde que eu entrevistei é a utilização da medicação alopática, quando necessário. O uso de medicação alopática e a ingestão do daime não são vistos como antagônicos, pelo contrário, nas narrativas das pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde entrevistadas há uma recorrência da noção de que, dependendo do caso, a medicação é necessária e mesmo indispensável. Penso que a mesma lógica que coloca os procedimentos terapêuticos e os próprios profissionais da saúde como “auxiliares” do daime também faz com que os medicamentos sejam vistos como “auxiliares” em potencial, em casos de necessidade. Novamente aqui, os valores englobantes que orientam esta lógica vem da doutrina daimista: o daime é considerado como o “grande remédio”, e as outras “ferramentas” que podem ser utilizadas são vistas como estando subordinadas a ele.

Todos os profissionais da área da saúde afirmaram que atendem tanto participantes do Santo Daime quanto pessoas que não participam da doutrina e todos afirmaram também que percebem grandes diferenças entre o processo terapêutico dos dois tipos de pacientes. Com relação à questão do uso da medicação alopática, uma das psiquiatras que eu entrevistei afirmou que percebe uma diferença entre os pacientes que ela medica que tomam daime e os que não tomam. De acordo com ela, muitas vezes os que não tomam o daime não conseguem mais ficar sem a medicação, enquanto os que participam da doutrina precisam da medicação apenas por um período para ajudar em momentos mais difíceis, conseguindo prosseguir depois sem precisar dela.

O papel que as pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde tem de a) diagnosticar as pessoas que não podem tomar daime; b) orientar os participantes dos rituais sobre a compatibilidade entre medicamentos e a bebida; c) observar os participantes dos rituais, podendo conversar com eles quando acham que há necessidade; e d) receitar medicação alopática ou outros tipos de tratamento, nos fornecem importantes pistas sobre qual é o status destes profissionais no Céu da Mantiqueira. Vemos que eles se tornam uma importante referência dentro da comunidade. Como mencionei anteriormente, considero que a presença destes profissionais no Céu da Mantiqueira contribui para conferir legitimidade à identidade coletiva enquanto “centro de cura” desta comunidade perante um contexto mais amplo.

É importante lembrar que estas pessoas são representantes do “setor profissional” do “sistema de cuidados da saúde” (Kleinman, 1980). A ênfase que a sociedade ocidental

contemporânea coloca neste setor pode ter uma influência na posição que elas tem numa comunidade que procura construir uma identidade como um “centro de cura”. Também é importante considerar que, em muitos casos, eles podem ter funções de controle.