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Capítulo 2 – Trajetória e constituição do Céu da Mantiqueira como um “centro de cura”

2. A “história” do Céu da Mantiqueira

O Céu da Mantiqueira fica na serra da Mantiqueira, no sul do estado de Minas Gerais, na área rural de Camanducaia, a cerca de quatro quilômetros da cidade. Foi fundado em 1998, tendo antes funcionado como “ponto” desde 199368. O grupo é dirigido por um casal, padrinho Chico e madrinha Udi, em conjunto com outros participantes da igreja que formam um “conselho”, responsável por tomar as decisões e pela administração. Este conselho é formado por alguns dos participantes mais antigos do Céu da Mantiqueira; por alguns participantes relativamente recentes que adquiriram rapidamente uma posição influente na comunidade; e pelas pessoas que tem um vínculo institucional com a igreja, ocupando cargos como os de secretario e tesoureiro69.

Padrinho Chico e madrinha Udi se mudaram de Rondonópolis no Mato Grosso para um sítio na área rural de Camanducaia em 1989, pois, segundo suas narrativas, tinham vontade de se distanciar da vida urbana e “viver da terra”. Na época de sua mudança, o casal alugava uma parte do sítio. De acordo com os participantes do Céu da Mantiqueira, o segundo grupo que alugou este espaço era composto por participantes do Santo Daime ligados ao “Céu de Midam”70. Foi através deste grupo que a Udi e o Chico tiveram contato

com o Santo Daime. Assim, quando perguntei a eles como conheceram a doutrina, eles responderam dizendo que “o daime veio bater na nossa porta”. Esta forma de narrar o acontecimento é importante, pois tem uma conotação simbólica, representa um “chamado” para seguir na “linha” do Santo Daime. Esta idéia de “receber um chamado” é um dos elementos que pode confirmar o pertencimento ao “povo do daime”, que seria formado pelas pessoas “escolhidas” para fazer parte da doutrina.

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Os participantes do Santo Daime referem-se aos lugares onde são realizados os seus rituais como “ponto” ou “igreja”. Um “ponto” é uma unidade geralmente menor, mais recente e mais informal. Já a “igreja” é uma unidade mais consolidada dentro da estrutura institucional do CEFLURIS.

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O conselho do Céu da Mantiqueira se reúne periodicamente para tomar decisões relativas à administração e organização da igreja. Decidem, por exemplo, as datas dos trabalhos espirituais e de atividades como os feitios. Também discutem questões relativas à administração dos recursos financeiros.

Depois disso, Chico e Udi passaram a freqüentar o Céu de Midam, fardando-se posteriormente nesta igreja. A partir de então, o Céu da Mantiqueira começou a se constituir enquanto “ponto” do Santo Daime, sendo dada a autorização pelo padrinho Jonas, dirigente do Céu de Midam naquela época, para serem realizadas Concentrações e, posteriormente, Trabalhos de Cura no local.

Foto 3: vista da igreja do Céu da Mantiqueira

Paralelamente à chegada do Santo Daime no lugar que futuramente seria conhecido como Céu da Mantiqueira e ao “chamado” para Chico e Udi participarem da doutrina, acontece outro evento que é destacado nas narrativas como sendo importante. Conta-se que já nos primeiros rituais com o daime lá realizados, os “guias” e “mentores espirituais” dos médiuns que se encontravam presentes manifestaram-se afirmando que ali era um “centro de cura” e pedindo para que fossem realizados regularmente rituais naquele lugar. Estes “guias” teriam ainda pedido para que os rituais fossem realizados de acordo com as normas da doutrina daimista.

Este acontecimento é importante, pois denota a importância que o tema da “cura” tem para o grupo. Também aponta para a construção de uma identidade coletiva como “centro

de cura”, sendo que esta identidade encontra-se ancorada na construção e reconstrução da história do grupo em interação com a práxis de seus participantes (Sahlins, 1990).

Nas narrativas sobre o início do Céu da Mantiqueira, encontramos ainda outro acontecimento que aponta para a importância da temática da cura neste grupo: trata-se da “cura” do próprio padrinho Chico. Conta-se que na época que o Santo Daime “chegou” no lugar, o padrinho era alcoólatra, bebia todos os dias, e que após tomar o daime por alguns meses parou de beber completamente. Esta “cura”, além de chamar a atenção da madrinha Udi e do padrinho Chico para as potencialidades terapêuticas da bebida, incentivando-os a ingressarem na doutrina, teria contribuído para motivá-los a auxiliar na cura de outras pessoas.

Conta-se também que, nos primeiros anos, o Céu da Mantiqueira teria recebido um grande número de pessoas alcoólatras, dependentes químicas e portadoras de problemas emocionais. Muitas dessas pessoas teriam encontrado a sua “cura” no Santo Daime, tendo “se firmado”71 no Céu da Mantiqueira e constituindo atualmente uma parte de seus participantes mais antigos. Estas pessoas que teriam “se curado” através do daime e da doutrina, também teriam trazido outras pessoas “para a doutrina”, seus familiares e amigos, contribuindo para o crescimento da comunidade. Não foram apenas os participantes antigos do Céu da Mantiqueira que tiveram um histórico de alcoolismo, dependência química, e desequilíbrios emocionais. Atualmente também a comunidade continua recebendo pessoas com estas características, sendo que algumas destas pessoas optam pela participação no Céu da Mantiqueira como uma via para buscar sua “cura”.

Além disso, durante cerca de dois anos, o Céu da Mantiqueira ficou aberto para receber pessoas para residirem lá durante um período. Estas pessoas tinham a oportunidade de, além de participar dos rituais com o daime, levar uma vida comunitária e fazer trabalhos no dia a dia em atividades como culinária, limpeza, hortas e plantas medicinais. Este trabalho experimental começou a ser desenvolvido de maneira informal, a partir de pedidos de pessoas que estavam participando da igreja e passavam por dificuldades. Assim, uma parte dos atuais participantes do Céu da Mantiqueira chegou a residir lá durante um tempo.

Tive a oportunidade de acompanhar o desenvolvimento deste trabalho enquanto fiz pesquisa de campo para a minha monografia de conclusão do curso de graduação, em

2001 e 2002. No início de 2002 este trabalho foi desativado, com a proposta de futuramente voltar a funcionar contando com uma estrutura melhor. Em parte esta desativação ocorreu porque o conselho do Céu da Mantiqueira decidiu que naquele momento era necessário privilegiar outros projetos, como a construção da igreja.

Como vimos, vários acontecimentos contribuíram para que ao longo do tempo o Céu da Mantiqueira fosse construindo e consolidando sua identidade como um “centro de cura”. Também foi importante a realização constante de dois rituais dirigidos especificamente para a cura: o Trabalho de Cura e o trabalho de Mesa Branca, como veremos a seguir. Atualmente estes rituais têm um papel muito importante na dinâmica da comunidade e também atraem muitas pessoas, tanto participantes eventuais quanto pessoas ligadas a outras igrejas do Santo Daime.