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Capítulo 4: O “sistema de cuidados da saúde” do Céu da Mantiqueira

1. Corpo e experiência, natureza e cultura

É no contexto de uma mudança de perspectiva na antropologia, relacionada a um deslocamento da ênfase em estruturas e sistemas para processos e práticas (Ortner, 19994) que o corpo torna-se uma preocupação central na disciplina. O corpo deixa, então, de ser visto como uma “tabula rasa” e passa a ser encarado como um “corpo vivido” (Rabelo e Alves, 2004:175), fonte de agência e intencionalidade (Csordas, 2000), produtor

de sentido e “lócus em que se articulam formas de conhecimento e intervenção sobre o mundo” (Rabelo e Alves, 2004:175). A partir desta perspectiva, passam a ser questionadas dualidades conceituais tais como natureza/cultura, sujeito/objeto, mente/corpo.

Segundo Miriam Cristina Rabelo, Paulo César Alves e Iara Maria Souza, o conceito de experiência “expressa uma preocupação em compreender como os indivíduos vivem seu mundo” (1999:11). Desta maneira, este conceito tem relação com as idéias de consciência e subjetividade e, especialmente, de intersubjetividade e de ação social. De acordo com estes autores, “em uma perspectiva fenomenológica, a experiência não se reduz ao modelo dicotômico que contrapõe sujeito e objeto” (1999:12), ela está inserida no domínio da prática que “se define essencialmente por um engajamento ou imersão na situação” (idem). Eles afirmam também que “a idéia de experiência enquanto modo de estar no mundo nos remete diretamente ao corpo, como fundamento de nossa inserção no mundo” (1999:12). Assim, os seres humanos são vistos como “seres em situação” e o corpo é considerado como sendo “perpassado por uma dimensão simbólica, de sentido” (idem).

A obra de Merleau-Ponty constitui uma referência para se pensar a experiência a partir de uma reflexão sobre o embodiment (Csordas, 1997, 2000; Rabelo e Alves, 2004). De acordo com Rabelo e Alves, Merleau-Ponty critica as teorias que igualam o sujeito da experiência à consciência e “relegam o corpo a simples instrumento a serviço desta” (2004:181). Assim, para Merleau-Ponty, o corpo constitui o fundamento de nossa experiência no mundo, “constitui o ponto de vista pelo qual nos inserimos no mundo. É a partir da perspectiva que o corpo nos fornece que nos orientamos no espaço” (Rabelo e Alves, 2004:182).

A partir da discussão sobre corpo e experiência, Rabelo e Alves fazem uma reflexão sobre as noções de sociabilidade e subjetividade e sobre a definição de cultura como sistema de representações. Para eles, a imbricação entre corpo e consciência proposta por Merleau-Ponty implica na redefinição dos dois termos. Assim, quando o corpo passa a ser encarado como um “corpo vivido”, a subjetividade deixa de ser vista como interioridade. Desta maneira, a definição do sujeito como “consciência encarnada” (2004:182) implica num deslocamento do foco da análise “das atividades cognitivas dos indivíduos para os modos de atenção e envolvimento que solicitam e engajam o corpo” (2004:183).

As obras de Bourdieu são utilizadas para situar o embodiment no discurso antropológico da prática (Csordas, 2000), estabelecendo uma conexão “entre o domínio da prática e o da existência corporal” (Rabelo e Alves, 2004:184). Assim, a partir do conceito de habitus95 de Bourdieu, chama-se a atenção para o fato de que o corpo é socialmente informado (Bourdieu, 1977 citado em Csordas, 1997); é “resultado de uma história coletiva que se inscreve nas posturas, nos movimentos, nos gostos, que educa os sentidos e marca distinções” (Bourdieu, 1987; 1996, citados em Rabelo e Alves, 2004:183).

Bourdieu (1994) critica abordagens objetivistas ou estruturalistas que vêem as práticas como fatos acabados e as tratam como fatos simbólicos a serem decifrados. No lugar, ele sugere que se leve em conta as relações dialéticas entre as estruturas “e as disposições estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzir” (1994:47). Além de chamar a atenção para a relação dialética entre a estrutura e a prática, Bourdieu coloca uma grande ênfase na interação entre as pessoas, considerando esta interação como um elemento fundamental na produção do habitus e, conseqüentemente, das práticas. Assim, para Bourdieu, o habitus está relacionado às condições políticas e sociais nas quais se encontram inseridos os atores sociais.

Segundo Rabelo e Alves, a discussão sobre o corpo e a experiência traz embutida uma crítica à “noção de sujeito racional presente na teoria da ação” e à “idéia de que a relação do indivíduo com o mundo é mediada por representações acerca do mundo” (2004:186). Para eles, a idéia de hábito aponta para uma forma de compreender o mundo distinta da “apreensão intelectual que produz representações” (2004:186-7). Desta maneira, de acordo com estes autores, a retomada crítica do corpo na teoria social “está ligada a um descentramento do sujeito, definido como interioridade autocontida que se relaciona com o mundo por meio de representações e que desenvolve e exercita, no meio social, uma capacidade de controle sobre os objetos, sobre o próprio corpo e sobre o outro” (2004:187). Eles afirmam também que “esse descentramento tem como contrapartida uma ênfase na sociabilidade” (idem), um resgate do outro (Taylor, 2000:187 citado em Rabelo e Alves, 2004:188). Assim, com a recuperação da noção de corpo vivido, a referência ao outro passa a ser constitutiva do “ser-no-mundo”.

Henrieta Moore (2000) também trata desta relação do corpo com a representação, mostrando como ela transcende a representação textual. Para Moore, a relação do corpo

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Bourdieu (1994) define o habitus como um sistema de disposições duradouras, que constitui o princípio inconsciente e coletivamente inculcado para a geração e estruturação tanto das práticas

com a representação e a linguagem se dá não apenas em formas verbais, mas também em formas que excedem e não podem ser reduzidas às palavras. Esta autora nos lembra que o corpo é uma das formas de construir a identidade. Neste sentido, Moore traça paralelos entre a relação entre corpo e representação e o elo entre corpo e auto- identidade. De acordo com ela, o corpo humano não pode tomar nenhuma forma sem estar sujeito à representação. Desta maneira, este corpo nunca é um corpo natural: sempre tem dimensões imaginárias e simbólicas.

Segundo Moore (2000), este corpo simbolizado é necessário não apenas para a produção de um sentido do self, mas também para as relações de uma pessoa com seu próprio self e com os selves dos outros. Para ela, é o simbolismo que nos faz ser, e é daí que deriva a necessidade de que os corpos sejam colocados em relação com a representação e com a linguagem. Moore afirma que “this is not just another way to say that bodies are socially constructed, but is rather to say that the very experience of embodiment entails a confrontation with the imaginary and the symbolic” (2000:163). Para a autora, os corpos marcam a intersecção entre o social e o simbólico; a relação de cada sujeito com o seu corpo é ao mesmo tempo material e simbólica.

Rabelo e Alves (2004) relacionam o aumento da preocupação com o corpo nas ciências sociais a uma tentativa de superar oposições cartesianas, tais como a de natureza e cultura. De acordo com eles, “o conceito de experiência visa justamente superar a cisão entre sensação e sentido, percepção e cognição, natureza e cultura, apontando para uma cumplicidade com os outros que é a condição para que algo possa ser posteriormente representado” (2004:192). Rabelo e Alves consideram que é o corpo que “fornece a chave para unificarmos esses campos” (idem). Segundo eles, a existência corpórea imbrica tanto a natureza quanto a cultura; o corpo não é “nem exclusivamente natural nem exclusivamente cultural”, mas sim “ao mesmo tempo, totalmente natural e totalmente cultural” (2004:195).

José Carlos Rodrigues (2003) elabora um argumento que vai nesta mesma direção. Segundo este autor, somente a dimensão biológica é insuficiente para explicar a vida humana, pois os seres humanos “são dotados de corpos destinados a variar de cultura para cultura, de corpos constituídos para diferir” (2003:29). Rodrigues considera que, para uma constituição plena da antropologia do corpo, é preciso compreender que, muito mais do que criarem seus próprios ambientes, os seres humanos “criam” na realidade os seus próprios corpos. Assim, no estudo da experiência humana não se pode separar natureza

e cultura, pois esta experiência é ao mesmo tempo simbólica e biológica. Também para Rodrigues, a questão do corpo vai além da representação. As representações do corpo não se limitam a ser apenas acontecimentos intelectuais, elas “ecoam e reverberam na carne” (2003:31). Para ele, precisamos lembrar que biológico e cultural são apenas conceitos. “O corpo humano não tem dois lados – um físico e biológico, outro variável e cultural – mas apenas um. Conseqüentemente, a cada cultura corresponde uma corporeidade própria” (2003:31-2).