• Nenhum resultado encontrado

Da relação entre as diversas etapas de uma pesquisa

Capítulo 1: Reflexões metodológicas

2. Da relação entre as diversas etapas de uma pesquisa

Podemos pensar nas relações entre as diversas etapas envolvidas na realização de uma pesquisa – elaboração do projeto, trabalho de campo, análise dos dados e redação – como relações espirais (Gonçalves da Silva, 2000), onde todas estas etapas se influenciam e intercomunicam mutuamente. Há assim uma “circularidade” entre a abordagem teórica e a experiência de campo (Gonçalves da Silva, 2000) Também é importante lembrar que “as sociedades e culturas que constituem o objeto da investigação antropológica influenciam, de modos variados e decisivos, as teorias sobre a sociedade e a cultura formuladas a partir desta investigação” (Viveiros de Castro, 1999:153) e influenciam todas as outras etapas de produção do conhecimento antropológico.

Concordo com os autores que afirmam que é necessário ter tanto uma bagagem teórica quanto um planejamento prévios ao campo. Gostaria, porém, de chamar a atenção para alguns aspectos que considero importantes tanto para o trabalho de campo quanto

para a própria produção do conhecimento: trata-se dos chamados “imponderáveis da vida real” (Malinowski, 1976) que, sem dúvida, também encontram-se presentes nestas experiências. Desta maneira, mesmo mediante todo planejamento prévio o fluir dos acontecimentos e as sincronias (aqueles acasos que invariavelmente acontecem) sempre nos reservam surpresas, e é assim que nos deparamos com questões e situações que nunca imaginaríamos encontrar e que passam a ser fundamentais para nossa análise.

Durante a análise dos dados e redação da dissertação, percebi o quanto o enfoque escolhido, a proposta de buscar uma relação de diálogo com as pessoas que participaram da pesquisa e a abordagem teórica utilizada – que desde o início eu procurei manter estreitamente ligada com a metodologia – contribuíram para que eu pudesse compreender questões fundamentais para os participantes do grupo onde realizei meu trabalho de campo. Inversamente, elementos importantes da visão de mundo do grupo me ajudaram a compreender e refletir a respeito da abordagem teórica que fundamenta esta pesquisa, me levando a notar que existe uma coerência entre a abordagem teórica centrada na expressão da experiência e alguns aspectos da visão de mundo dos participantes do Céu da Mantiqueira.

A visão de mundo daimista é marcada por uma interação entre duas dimensões fundamentais da vida: a “dimensão material” e a “dimensão espiritual”. A primeira diz respeito aos fenômenos empíricos da vida cotidiana, o mundo visível, enquanto a segunda está relacionada principalmente ao mundo implícito ou invisível e às experiências de estados modificados de consciência vivenciadas durante os rituais. Mais do que dois mundos distintos e separados a existência destas duas dimensões corresponde a duas formas de perceber o todo (Groisman, 1991). Os fenômenos relativos à “dimensão espiritual” são concebidos como sendo de grande importância e acredita-se que tenham influência sobre a realidade empírica. Por outro lado, a “dimensão material” também é considerada importante, pois está estreitamente relacionada à “vida espiritual” do indivíduo. Assim, o que é fundamentalmente enfatizado é a necessidade de manter-se um equilíbrio entre estas duas dimensões da realidade. Como veremos adiante, não é simples colocar na prática este ideal do equilíbrio entre o material e o espiritual, o que pode gerar tensões tanto a nível individual quanto a nível grupal.

Paralelamente à esta visão mais geral, é recorrente entre os participantes do Céu da Mantiqueira, em diferentes níveis de percepção e expressão, a noção de que o ser humano seria constituído por vários corpos, entre os quais destacam-se: o “corpo físico”,

o “corpo mental”, o “corpo emocional” e o “corpo etérico” ou “espiritual”47. Esta noção

parece estar relacionada a uma influência da Fraternidade Branca48 que pode ser fortemente sentida no grupo. O que é importante ressaltar aqui é que, da mesma maneira que é enfatizada a necessidade de manter um equilíbrio entre as dimensões material e espiritual da realidade, acredita-se que deve haver um equilíbrio entre todos os corpos que constituem o ser humano.

Foram estes dois importantes aspectos da visão de mundo grupal que me levaram a refletir a respeito da abordagem teórica centrada nas múltiplas dimensões da experiência. A coerência que identifiquei entre a visão de mundo do grupo e esta abordagem está relacionada ao fato de que, enquanto os antropólogos abordados afirmam que as várias dimensões da experiência devem ser integradas na análise (Csordas, 1997, 2000; Turner, 1981; Winkelman, 1996), os participantes do Céu da Mantiqueira também enfatizam esta integração ao afirmar que as dimensões material e espiritual e que os corpos que constituem o ser humano – e aqui é possível pensar numa analogia entre estes corpos e as várias dimensões da experiência – devem estar em equilíbrio.

Além disso, a noção dos vários corpos me levou a refletir a respeito do conceito de embodiment proposto por Csordas (1997, 2000). Penso que no caso do presente estudo, para poder compreender as expressões da experiência dos participantes do Céu da Mantiqueira, quando se pensa no conceito de embodiment, é necessário levar em conta os vários corpos que os participantes do Céu da Mantiqueira afirmam existir. Como veremos mais à frente, a noção de que existem vários corpos fundamenta tanto os rituais daimistas quanto os procedimentos terapêuticos neste grupo, e tanto rituais quanto procedimentos terapêuticos são concebidos como tendo efeitos em um, vários ou todos os corpos citados.

47 Esta discussão sobre a concepção dos vários corpos e sua influência para os procedimentos rituais e terapêuticos será aprofundada no capítulo 4.

48 A Fraternidade Branca é um grupo fundado em 1931 nos EUA por espiritualistas e ocultistas. De acordo com Amaral (1998, citado em Labate, 2000), esta é uma importante referência no universo Nova Era. Existe na “casinha das ervas”, um altar dos mestres ascencionados da Fraternidade Branca. Neste altar da Fraternidade Branca, estão representados através de imagens sete mestres e sete raios, correspondentes aos sete dias da semana. Cotidianamente são realizadas invocações para o mestre e o raio do dia. Os moradores das redondezas, os hospedes da comunidade e os visitantes são convidados a participar dessa prática, de forma que estas informações vão se difundindo entre os participantes do grupo.