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Relações sociais e categorias culturais importantes para os participantes do Céu

Capítulo 3 – O continuum espiritual-terapêutico

5. Relações sociais

5.1 Relações sociais e categorias culturais importantes para os participantes do Céu

Narrado este conflito, podemos agora passar à análise das categorias culturais importantes que ele evidencia. Em primeiro lugar, temos as interpretações dadas ao acidente sofrido pelo padrinho e ao “balanço” atravessado pela comunidade devido ao afastamento periódico de um grupo considerável de pessoas. Como vimos, as causas destes dois acontecimentos são relacionadas à ação de “espíritos obsessores”.

Para podermos compreender esta explicação, é necessário considerarmos alguns aspectos da visão de mundo daimista. De acordo esta visão de mundo, os seres humanos vivem uma grande batalha entre as forças “da luz” e as forças “das trevas”, sendo que estas forças estariam organizadas em “falanges” de seres espirituais. Desta maneira, infortúnios como doenças ou como os acontecimentos em questão podem ser explicados com referência à atuação de falanges de “entidades obsessoras” ou malignas. Seguindo inspiração do kardecismo, estes espíritos ou entidades podem utilizar as pessoas como um veículo para sua manifestação, ou seja, podem “atuar” através de uma pessoa, modificando seu comportamento (Groisman, 1991). Os rituais ou “trabalhos espirituais” constituem um momento privilegiado para o desenrolar dessa “batalha do astral”, porém ela se estende também aos eventos da vida cotidiana, de maneira que se recomenda que as pessoas estejam sempre atentas a suas ações (Groisman, 1991).

Este tipo de explicação dada pelos participantes do Santo Daime aos infortúnios suscita uma discussão a respeito da causalidade dos infortúnios. Em seu clássico trabalho sobre a bruxaria Azande, E.E. Evans Pritchard (1978) faz uma reflexão sobre este tema. De acordo com Evans Pritchard, os Azande reconhecem uma pluralidade de causalidades possíveis para os infortúnios: existe a “causalidade natural” ou instrumental e a “causalidade mística”, ou seja, as explicações que atribuem os infortúnios à bruxaria. O autor nos mostra que as explicações que atribuem a causa dos infortúnios à bruxaria não implicam no desconhecimento da “causa natural”, pelo contrário, elas são relevantes e explicam aspectos que não são abrangidos pela causalidade natural do acontecimento.

Assim, enquanto a “causa natural” procura descrever como determinado acontecimento ocorreu, a “causa mística” está relacionada à explicação de por que ele aconteceu.

Dominique Buchillet (1991) retoma esta reflexão fazendo uma discussão sobre os diferentes diagnósticos de doenças e as conseqüentes escolhas por determinados métodos terapêuticos. Partindo de Sindzigre & Zempléni (1981, citados em Buchillet, 1991), ela propõe três níveis de causalidade como um modelo para a explicação dos infortúnios: a “causa instrumental” que “traduz o meio ou mecanismo de produção da doença”; a “causa eficaz” que “é o agente responsável pela doença” e a “causa última” que “procura reconstituir a origem da doença” (1991:28). Ela também elabora uma distinção entre o “registro das causas” e o “registro dos efeitos” (1991:29). O primeiro seria característico dos procedimentos terapêuticos que, como a biomedicina, visam fundamentalmente o tratamento dos sintomas das doenças, procurando responder como a doença aconteceu e resolver o problema neste nível; já o segundo registro estaria relacionado a uma visão mais ampla, abrangendo dimensões ignoradas pela biomedicina e permitindo preencher outras funções além da propriamente terapêutica. Este registro visaria responder a perguntas que transcendem o domínio dos sintomas, separando muitas vezes estes e as causas das doenças.

Penso que esta distinção estabelecida por Buchillet entre os diversos níveis de causalidade dos infortúnios e entre os diferentes “registros” das causas pode ser estendida às explicações daimistas sobre as doenças e também sobre outros infortúnios, como é o caso dos acontecimentos que estamos analisando e que foram explicados com relação à atuação de “entidades obsessoras”. Esta explicação estaria relacionada à “causa última” destes acontecimentos, procurando dar conta de por que eles ocorreram em um sentido mais amplo, relacionado com a visão de mundo daimista.

Segundo Groisman e Sell (1996), o paradigma terapêutico dominante na doutrina daimista não é alopático, ou seja, não está centrado na remissão dos sintomas das doenças. Eles afirmam que os participantes do Santo Daime vêem a doença como um evento complexo e contextual, onde os aspectos sociais e simbólicos são fundamentais para o sistema de cura. De acordo com Groisman e Sell, para os participantes do Santo Daime, a doença é vista como o resultado de um desequilíbrio no relacionamento do indivíduo com o mundo. Ela também é considerada como uma oportunidade para realizar um “trabalho interior” para descobrir suas causas. Neste sentido, a doença constitui uma manifestação do mundo espiritual. Além disso, é vista como uma “disciplina”, pois requer

que a pessoa modifique erros pessoais que são considerados como suas principais causas.

Estes autores afirmam que os elementos centrais da cultura daimista não podem ser considerados isoladamente, pois eles agem combinados no campo simbólico, criando uma situação favorável para que os indivíduos reavaliem seus hábitos e padrões de comportamento e reflitam sobre sua vida e suas experiências. Para Groisman e Sell (1996), o conceito daimista de cura deve ser considerado como um evento mais complexo do que apenas um evento orgânico, pois envolve o ser humano como um todo e inclui tanto as relações com outros seres vivos quanto as relações cósmicas.

Como vimos, os participantes do Santo Daime costumam explicar as doenças com referência a transgressões em relação as leis cósmicas; transgressões sociais; maus fluídos, maus espíritos ou outras formas de energias negativas; transgressões realizadas em vidas passadas (Groisman,1991; Groisman e Sell, 1996; Monteiro da Silva, 1983; Peláez, 1996). Se pensarmos em termos de um “sistema de cuidados da saúde” do Céu da Mantiqueira, conforme definição de Kleinman (1980), esta forma de explicar os infortúnios nos ajuda a compreender os valores que orientam os procedimentos espirituais e terapêuticos. Neste caso o conceito de “cura” é mais amplo que o biomédico, referindo- se também a outras dimensões que vão além do “corpo físico”. Como vimos, a “cura” pode estar relacionada tanto à dimensão física quanto à dimensão espiritual e abrange também os corpos: físico, mental, emocional e espiritual.

É colocada uma grande ênfase no que Buchillet denominou de “registro das causas” das doenças, procurando-se compreender quais são as causas mais profundas dos infortúnios. É esta compreensão do porque da doença, que é considerada como um “trabalho interior”, que pode gerar uma mudança nos hábitos e comportamentos, conferindo às pessoas a oportunidade de ter novas perspectivas sobre a vida (Groisman e Sell, 1996). É neste sentido que podemos pensar na importância da “cura espiritual” (Peláez, 1996). A doutrina daimista pode ser vista como um meio ou um “caminho” para se obter esta “cura espiritual” (Peláez, 1996), sendo que os procedimentos terapêuticos disponíveis aos seus participantes são vistos fundamentalmente como ferramentas que podem auxiliar nesta busca.

Levando em conta estes aspectos, poderemos passar agora a uma análise mais aprofundada das principais categorias culturais envolvidas na experiência dos processos de saúde, doença e cura para os participantes do Céu da Mantiqueira, procurando compreender estas categorias em sua relação com os procedimentos terapêuticos e

identificar os modelos que motivam e sustentam estas categorias culturais e procedimentos terapêuticos. Aprofundaremos também a análise a respeito de qual é o papel que as pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde tem no Céu da Mantiqueira. A partir daí, será possível refletirmos a respeito do que o processo de terapeutização da espiritualidade e espiritualização da terapia que observamos no Céu da Mantiqueira tem a nos dizer sobre as noções de espiritualidade e terapia que estão sendo construídas na contemporaneidade.

Capítulo 4: O “sistema de cuidados da saúde” do Céu da