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ALTERIDADE E HETEROGENEIDADE: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

Um dos fundamentos da linguagem é a possibilidade da comunicação, processo que implica a presença do outro. Seja ele concreto, imaginário ou apenas possível, é quem nos orienta ao falar ou escrever. Aí reside o aspecto fundamental e inquestionável das relações de alteridade (ou discurso do outro) como ponto de partida para a assunção dos nossos posicionamentos em contextos de comunicação específicos. Como em qualquer outro gênero textual, o processo de escrita do memorial implica a presença/presunção de outro(s), com o(s) qual(is) o autor dialoga. As interações vividas por cada pessoa, ao longo de sua história, possibilitam-lhe aprendizagens diversas e recíprocas. Cada ato enunciativo constitui-se, simultaneamente, como resultado de um processo histórico e dá início a uma nova fase da história. Bakhtin, ao descrever o papel da palavra na relação entre os interlocutores durante a interação verbal, assim resume:

Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim

e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia- se sobre o meu interlocutor (BAKHTIN, 1995, p. 113, grifos do autor).

Nessa perspectiva, consideramos os memoriais como um ato enunciativo dos sujeitos; como u dis u so ue, dia te da pala a do outro, assume pelo menos três posicionamentos: 1) a reproduz e com ela mantém uma relação de aceitação ou de refutação – as citações como discurso de formação|autoridade; 2) a ressignifica e com ela mantém uma relação de subordinação ou de emancipação – a legislação, a banca examinadora, a instituição como discursos de injunção; 3) a reinventa e com ela mantém uma relação de reafirmação ou de redescoberta – o si mesmo como discurso de reinvenção de si. E isso é o que possibilita a re-constituição, enquanto ser-na-profissão, do professor- candidato: sua palavra e a do outro configuradas como duas fases simultâneas de um mesmo processo interativo que permite novas e permanentes interações.

No campo da Linguística, recorrendo à última fase da corrente teórica Análise do Discurso (AD)6, a ual P heu e o he e a hete oge eidade dis u si a o o u a heterogeneidade que é constitutiva do discurso e que é produzida pelas várias posições assu idas pelo sujeito BRANDÃO, , p. , o te tualiza os o surgimento de outras vertentes diante da flexibilização da noção de assujeitamento do sujeito face às formações discursivas7, assim como a introdução de questões da alteridade e da heterogeneidade discursiva. É nesse momento de renovação teórica que se destaca, entre outras, as contribuições de Jacqueline Authier-Revuz que, embasada na concepção dialógica de Bakhtin e adotando uma perspectiva exterior à Linguística, entra no campo da Psicanálise e busca entender o sujeito como um efeito de sentido dentro da diversidade de uma fala

6A análise do discurso (AD) e a teoria da enunciação contribuem para o nosso estudo ao tratar de questões em torno da relação sujeito e linguagem. A título de contextualização, segue uma breve descrição da trajetória da AD, ao longo do seu desenvolvimento, focalizando as concepções de sujeito em suas diferentes fases. Na p i ei a fo ulaç o, o sujeito o e ido o o u se o do dis u so, u a vez que sua subjetividade está assujeitada às coerções da formação discursiva e da formação ideológica. Na segunda formulação, embora a noção de interdiscurso – ue ad ite u a pe et aç o do out o a ui a de p oduç o dis u si a – já integre as discussões da AD, ainda assim, o sujeito continua assujeitado ao dispositivo da formação discursiva a que pertence. Por fim, na sua terceira formulação, a AD focaliza a noção de heterogeneidade discursiva enquanto constitutiva do discurso e produzida pelas várias posições assumidas pelo sujeito. (BRANDÃO, 1998, p. 42).

7 Formação discursiva (FD) – o eito de Fou ault : No aso e ue se pude des e e , e t e u e to número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade [...] diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva [...] (FOUCAULT, 2000, p. 43).

heterogênea: decorrência de um sujeito dividido entre o consciente e o inconsciente (BRANDÃO, 1998).

Apoiando-nos em Possenti (1993), não nos parece cabível entender o sujeito como uma estrutura, como um suporte do seu discurso ou como aquele que apenas repete o já dito, configurando-se o o es a o do isso ue fala . Lo ge de u a posiç o adi al, e te de os ue o sujeito o total e te assujeitado e total e te li e. Concordamos com Brandão, quando faz uma retrospectiva crítica acerca da concepção de sujeito nas três fases da AD:

Não se trata, portanto, de negar o sujeito ou destruí-lo, mas de reconhecê- lo a sua o ple a ultipli idade: e total e te assujeitado e totalmente livre. Trata-se antes de rejeitar qualquer identidade imobilista e cristalizadora do sujeito e igualmente de eliminar qualquer identificação fixa e homogeneizadora do sentido (BRANDÃO, 1998, p. 45).

Como aceitar um sujeito inteiramente condicionado diante da instabilidade dos sistemas, provocada pela ação desse mesmo sujeito? (POSSENTI, 1993). Como conceber esse sujeito o o depe de te ou o o ui a do i ada pelo siste a, se ele o segue se constituir na e pela linguagem? O sujeito, portanto, longe de possuir uma identidade imobilista e cristalizada, está presente no seu discurso e a renova a cada interação realizada. As interações verbais dos sujeitos interligam passado e presente e a marca da subjetividade de cada um fica impressa no interminável processo sócio-discursivo em que vivemos. É nesse sentido que Bakhtin (2003a) afirma que nossa fala são elos constitutivos da cadeia verbal formada nas e pelas interações humanas, através das quais nos tornamos sujeitos do nosso próprio dizer.

Segundo Benveniste (1989), o ato individual de colocar a língua em funcionamento constitui o processo de enunciação. O autor considera para o estudo da enunciação o próprio ato enunciativo, as situações em que ele se realiza e os instrumentos de sua realização. Nesse sentido, a realização do ato de enunciação implica a existência do locutor, um dos primeiros elementos para o estabelecimento da situação enunciativa. Assim, a língua só passa a ser fala pelo ato complexo de enunciação no qual se efetiva como discurso que atinge o outro, este por sua vez retorna a palavra através de uma outra enunciação. Para Benveniste, sendo a enunciação uma realização individual, ele a define como a apropriação

da língua pelo locutor (eu), que interage com seu interlocutor (você). Ao manipulá-la como instrumento, o locutor realiza um trabalho sobre a língua, de acordo com suas intenções. Esse interlocutor, real ou virtual, só é definido a partir da enunciação, que tem como referência o mundo tal como ela é estabelecida pelo locutor. Em suma, o que caracteriza a e u iaç o a acentuação da relação discursiva com o parceiro, seja este real ou i agi io, i di idual ou oleti o BENVENISTE, , p. . Isso o figu a o ue o auto ha a de uad o figu ati o da e u iaç o , e ue a e u iaç o o t duas figu as necessárias: a origem (o eu) e o fim (o outro), as quais compõem a estrutura do diálogo, em que os interlocutores alternam-se como protagonistas do processo enunciativo.

Bakhtin (1995), por sua vez, ao estudar a interação verbal, evidencia o lugar central ocupado pela linguagem na organização social. Do seu ponto de vista, a enunciação não pode ser concebida como um ato individual de utilização da língua pelo sujeito, mas como ato social cuja realização depende da interação entre dois sujeitos historicamente situados: A e u iaç o o p oduto da i te aç o de dois i di duos so ial e te o ga izados (BAKHTIN, 1995, p. 112). Na perspectiva bakhtiniana, a enunciação é caracterizada pela dialogia. O discurso dos outros ou de outrem perpassa todo ato de enunciação, pela enunciação. Ao retomá-lo em nossa fala (exterior ou interior), ou tomá-lo como referente, somos obrigados a nos posicionar diante dele. É nesse sentido que podemos dizer que nos construímos e construímos irremediavelmente a nossa percepção da realidade, na interação verbal, em estreita relação com um interlocutor ideal (representativo, padrão), que se interpõe entre nós e o mundo, a partir de situações de comunicação, realizadas dentro de um grupo socialmente organizado.

Nos memoriais, esses discursos são elementos de (auto)constituição dos professores, pois eles se posicionam diante deles a partir de situações de apropriação, de ressignificação ou de reinvenção. Tomam-lhos como orientadores da escrita de sua autobiografia profissional, num processo mental que persegue a figura ideal de professor.

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O trilhar da investigação sobre os memoriais

Não nos enganemos: não se trata de pleitear a

utilização exclusiva das narrativas de vida, mas de

propor sua articulação com outras formas de

observação e outras fontes documentais.

Nesta seção, apresentamos o percurso metodológico realizado, explicitando o processo de constituição das fontes autobiográficas e os critérios de seleção utilizados. O percurso realizado para o acesso a essas fontes está entremeado de nossas primeiras aproximações de análise do corpus da pesquisa.