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5.3 O MEMORIAL COMO DISPOSITIVO DE FORMAÇÃO

5.4.1 O trajeto e o projeto de si

De acordo com a noção bakhtiniana que vem norteando nossos estudos, segundo a qual os gêneros do discurso evoluem e se complexificam à medida que mudam suas esferas comunicativas de circulação, observamos, com o memorial de Magda Soares, que o gênero e o ial ap ese tou uda ças su sta iais a pa ti da d ada de , ua do a oz do sujeito voltou a emergir no discurso acadêmico. Sua diversificação e disseminação no contexto universitário refletiram em aspectos relativos à sua concepção e estruturação, revelando a preocupação e o interesse da academia por aperfeiçoar o memorial como dispositivo de avaliação.

Nesse sentido é que pudemos observar, ao longo desses oitenta anos, várias faces desse sujeito, que é: revelado pela narração de sua vida científica; ocultado pelas listagens de títulos e publicações científicas; desvelado pelo seu eu-ator de sua história acadêmico- científico-profissional. A explicitação dos fatos memoráveis da vida intelectual e profissional do professor buscavam, especialmente na década de 1930, reconstituir seu trajeto no memorial. Neste período de diversificação, o que observamos é a evidenciação das propostas em curso, as quais constituem seu projeto, em resposta à demanda institucional então vigente.

Assim, ao traçar um paralelo entre as exigências institucionais que remontam às origens do memorial, e as exigências recentes, constatamos que a grande mudança na concepção do gênero memorial diz respeito a esse aspecto. Desse modo, a análise da legislação que normatiza os memoriais permitiu-nos estabelecer pontes e abstrair sentidos dessas escritas de si reguladas pela injunção institucional, situadas num espaço-tempo específico da tradição universitária brasileira.

Mais uma vez fazemos menção à legislação de 1935. O Capítulo I, Seção I do Decreto nº 7.204 dispõe sobre os professores catedráticos e compõe-se dos artigos 100 a 182, tratando sequencialmente da nomeação, privatividade de cadeiras, concurso, editais de inscrição, cadeiras em concurso, atribuições da comissão de concurso, das provas, de títulos, julgamento e direitos dos catedráticos. Partiremos aqui do primeiro ponto, nomeação de professor catedrático, a qual é prevista em duas situações: por transferência de professor de disciplina e mediante concurso de títulos e provas. Na primeira situação, os artigos 103 e 104

exigem do candidato a apresentação de requerimento específico, o qual deverá ser instruído com um memorial, contendo indicação pormenorizada de sua educação secundária e do curso superior; relatório pormenorizado de sua atividade no magistério; relatório de toda sua atividade científica; relação de trabalhos científicos e outros que tenha divulgado; relação minuciosa de todas as funções públicas ou particulares, de exclusivo interesse profissional; relação minuciosa de todos os títulos científicos ou honoríficos que tenha conseguido. Já no caso da exigência do memorial em concursos de títulos e provas, este também é exigido como parte da inscrição, devendo explicitar aspectos que se relacionem com a formação intelectual do candidato e com sua vida e atividades profissionais ou científicas, conforme o art. 115, o que envolve os pontos já descritos na primeira situação, exceto dois: a descrição de sua atividade no magistério e a relação de títulos científicos ou honoríficos. O que isso nos diz a respeito do perfil desse professor, exigido em cada situação?

Tal diferenciação entre os dois perfis profissionais evidencia o interesse da Instituição em um profissional melhor preparado (quanto à experiência docente e seu reconhecimento por meio dos títulos científicos e honoríficos que tenha conseguido) para assumir a disciplina em caso de transferência. Mas, como explicar a ausência desses requisitos em caso de concurso para provimento da vaga de catedrático, se o exercício do magistério constitui aspecto central na carreira docente? Seria uma visão específica da área da Saúde ou das demais faculdades criadas naquele período, ou a crença de que a inserção e a experiência construída na profissão seriam suficientes para subsidiar a boa atuação desse professor? Seria, ainda, uma forma de favorecer o profissional recém-formado, cuja pouca idade não lhe tenha permitido viver a experiência da docência? Possivelmente, não encontremos respostas para essas questões, entretanto, elas ultrapassam o desejo de obter respostas, uma vez que nos oferecem a possibilidade de reconstituir pelo menos duas imagens do professor que interessava à academia na composição de seu quadro docente. Tanto uma quanto outra imagem focalizam e se revelam o interesse da academia.

Setenta anos depois, as exigências para a elaboração do memorial retomam e ampliam aspectos presentes no decreto analisado. O memorial de Vera Lucia Xavier Pinto (2005) apoia-se na Resolução nº 006/05-CONSEPE/UFRN, de 19 de abril de 2005, a qual aprova normas para concurso público de provas e títulos para o cargo de Professor de 3º grau nas classes Auxiliar, Assistente e Adjunto. O Capítulo V do Título IV, artigos 21 ao 24,

trata do memorial, indicando que este deverá conter, de forma discursiva e circunstanciada descrição e análise das atividades de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidas, incluindo sua produção científica; descrição de outras atividades, individuais ou em equipe, relacionadas à área de conhecimento em exame; e plano de atuação profissional na área do concurso.

Nessa legislação, a expressão de fo a dis u si a e i u sta iada , e o o a pala a a lise i di a aquele momento vigente uma preocupação da academia não si ples e te o a ap ese taç o da t ajet ia do a didato po eio de elat ios e elaç es ol , mas sim com uma reflexão crítica e problematizadora do seu percurso de formação acadêmica e profissional. Nesse sentido, a realização dessa prova em forma de defesa em sessão pública reforça o interesse da Instituição quanto ao grau de conhecimento e envolvimento do professor em relação à disciplina para a qual concorre, assim como seu comprometimento com a (sua) verdade perante si mesmo e os outros. O que parece estar em jogo agora é algo que ultrapassa a capacidade intelectual do professor e suas experiências profissionais bem sucedidas: as suas formas de interagir consigo mesmo, com o(s) outro(s), com o mundo que o envolve e o modifica. O memorial, assim concebido, vem desenvolvendo uma nova cultura no ensino superior brasileiro, e, desse modo, dando forma a novas imagens e|ou perfis docentes.

Essa sucinta exploração da legislação que ancora a escrita do memorial, nesses dois extremos temporais, objetiva atestar as novas exigências da universidade em relação a seus (futuros) professores. Hoje, recaem novas e diversas demandas sobre a universidade, principalmente no tocante à produtividade acadêmica no âmbito da pesquisa e da extensão. Nesse sentido, a elaboração do projeto de atuação profissional objetiva levar o candidato|a a idealizar seu pertencimento à instituição, assim como conceber-se como o próprio projeto, uma vez que esse futuro é o que ele almeja para si, para a sua vida profissional.

Vemos ao longo do período focalizado, por meio da legislação, o memorial ganhar futu o , ou seja, o i te esse da a ade ia dei a de ser puramente retrospectivo e passa a ser também projetivo. Como podemos constatar na legislação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o professor-candidato às classes de auxiliar, assistente e adjunto tem que escrever e apresentar, juntamente com o memorial, o projeto de atuação profissional e prestar contas ao seu tutor, que o avaliará ao final dos três anos que compreendem o seu estágio probatório.