AuthierRevuz parte da irrefutabilidade do caráter heterogêneo do discurso para realizar um estudo detalhado das formas pelas quais essa heterogeneidade se manifesta e pode ser linguisticamente apreensível no corpo dos enunciados. Como ponto de partida para o desenvolvimento da sua teoria, a autora considera a existência, em todo discurso, de dois
níveis distintos de heterogeneidade, aos quais ela dá os nomes de heterogeneidade constitutiva e heteregoneidade mostrada.
A heterogeneidade constitutiva diz respeito à alteridade intrínseca ao discurso, a qual pode ser percebida fazendo uso de construtos teóricos exteriores à lingüística, quais sejam o dialogismo bakhtiniano e a visão psicanalítica lacaniana do sujeito. Já a heterogeneidade mostrada corresponde, nas palavras da autora, a formas de “negociação” do sujeito falante com a heterogeneidade constitutiva do discurso, detectável na linguagem e passível de uma análise lingüística. Assim, essas formas de heterogeneidade correspondem a duas diferentes dimensões, solidárias entre si, ambas presentes no interior das práticas discursivas.
Questionando se a descrição propriamente lingüística das formas manifestas da presença do outro não estariam desgastadas em relação à constatação de que o outro é sempre onipresente no discurso e ali está em toda parte, AuthierRevuz conclui que a questão da heterogeneidade constitutiva, instaurando um outro que atravessa constitutivamente o um, não pode prescindir de uma ancoragem no exterior do puramente lingüístico, razão pela qual ela faz uso de duas abordagens nãolingüísticas (o dialogismo do Círculo de Bakhtin e a psicanálise a partir de uma leitura de Freud marcada pelas reflexões de Lacan), para indicar as linhas diretrizes de uma articulação entre a heterogeneidade constitutiva da palavra e a heterogeneidade mostrada que depende da descrição lingüística.
Ressaltando o fato de que a psicanálise demonstre – na interpretação lacaniana de Freud – que sob nossas palavras “outras palavras” sempre são ditas, AuthierRevuz (2004a: 69) considera que a teoria da heterogeneidade só pode ser pensada a partir de uma teoria do descentramento do sujeito 14 .
14
Segundo a teoria do “descentramento do sujeito”, como explica Helena Magamine Brandão (1995, p. 5556): (1) O sujeito é dividido, clivado, cindido: ele não é uma entidade homogênea, mas o resultado de uma estrutura complexa que não se reduz à dualidade especular do sujeito com seu outro, mas se constitui também pela interação com um terceiro elemento: o inconsciente freudiano; (2) o sujeito é descentrado: o “eu”
Tal posicionamento teórico remete à teoria do sujeito contemplada na ADF, cujas raízes remontam à categoria do assujeitamento, de Althusser. Mas, diferentemente da ênfase dada por aquele autor à questão da sobredeterminação ideológica como elemento estruturador do fantasma da “ilusão de um centro”, AuthierRevuz destaca a “necessidade”, normal e permanente, da criação desse “centro” 15 , o que se dá através de um constante processo de negociação com um conjunto de nãocoincidências nem sempre detectadas ou conscientemente reconhecidas pelo sujeitoenunciador.
Essas nãocoincidências podem ser distribuídas, segundo AuthierRevuz, em quatro diferentes campos: o da nãocoincidência interlocutiva, o da nãocoincidência entre as palavras e as coisas, o da nãocoincidência das palavras com elas próprias, e o da não coincidência do discurso consigo mesmo, cada um desses campos implicando um conjunto de formas específicas – ainda que não exaustivamente inventoriáveis – de enunciação.
A nãocoincidência interlocutiva dá forma ao irrepresentável da distância estrutural, irredutível, que afeta a comunicação entre dois sujeitos criando um “mal entendido” constitutivo. A nãocoincidência do discurso consigo mesmo é associada pela autora ao que designa no discurso as palavras do outro, criando uma espécie de geografia “interior” (palavras próprias) versus “exterior” (palavras alheias), geografia esta que, tentando reafirmar as fronteiras de um discurso próprio, atesta, entretanto, que cada palavra recebida de “fora” é saturada de um jádito, que a nutre e a despossui. A não coincidência entre as palavras e as coisas vinculase às figuras de (in)adequação da nominação – confirmada, questionada ou rejeitada – assumindo a feição de uma distância local, acidental que surge no
assume a função de manter a ilusão de um centro; e (3) osujeito é efeito da linguagem: ele é visto como uma representação que depende das formas da linguagem que ele enuncia e que na realidade o enunciam.
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AuthierRevuz (2004a, p. 6569) cita Roudinesco (1977), para ressaltar que se o sujeito é descentrado, dividido (e não “desdobrado”), nem por isso ele desaparece. Ele enuncia, permanecendo no fantasma sob a forma do “Moi”. É justamente a descoberta do inconsciente que permite mostrar que a ilusão do centro permanece e que ela é inerente à constituição do sujieto. A partir dessa constatação, a autora propõe que o imaginário seja “posto em seu devido lugar”, ou seja, como instância subjetiva encarregada de assegurar a necessária ilusão do UM.
dizer. A não coincidência das palavras com elas mesmas equivale ao espaço das figuras do equívoco, rejeitando ou acolhendo a palavra (o sentido) “a mais” da polissemia ou da homonímia.
Às formas de heterogeneidade mostrada a autora dá o nome de “boucles énonciatives”, ressaltando assim o fato de que, de modo semelhante à forma circular de um aro ou de um anel, esses pontos de nãocoincidência operam um retorno sobre si mesmos, em um trabalho reflexivo acerca do dizer. Nesses casos, como explica a autora, o signo se impõe como objeto, sendo colocado diante da cena como “personagem” ao qual o dizer faz referência.
Considerando as formas localizáveis de heterogeneidade mostrada não um reflexo fiel, uma manifestação direta da heterogeneidade constitutiva do discurso, mas como afirma AuthierRevuz (2004a, p. 70), “elementos de representação – fantasmática – que o locutor (se) dá de sua enunciação”, a autora trabalha com as formas do discurso reportado e da modalização autonímica para realizar uma dupla abordagem do fenômeno discursivo a partir das representações ali existentes do “discurso outro” (o discurso acerca do qual se fala) e do “outro do discurso” (o discurso a partir do qual se fala).
Assim, segundo AuthierRevuz (2004a, p. 12), a heterogeneidade mostrada pode ser localizada: (a) na inscrição de outros discursos no interior da enunciação de um locutor único, caso em que um certo número de formas lingüisticamente detectáveis inscrevem, em sua linearidade, o outro (o outro do discurso relatado); (b) quando o locutor é usuário e observador das palavras que utiliza, ou seja, ele menciona fazendo uso e faz uso mencionando (dando origem, assim, a diferentes formas de conotação autonímica).
Ao longo de seu trabalho de pesquisa, AuthierRevuz vai substituir o termo conotação autonímica, proposto por ReyDebove (1978), por aquele de modalização autonímica (MA). Para ReyDebove, como explica a autora, há conotação autonímica quando
o enunciador faz uso de uma menção. Dito em outras palavras, enquanto a autonímia simples caracterizase pela presença explícita de uma menção, na conotação autonímica as palavras não são apenas mencionadas, mas são também usadas conotativamente pelo locutor. A nova abordagem proposta por AuthierRevuz, a partir da concepção de modalização autonímica permite inserir a questão no campo da discursividade propriamente dita, ressaltando a sua dimensão enunciativa enquanto forma de comentário reflexivo que “opacifica” um ponto do dizer e o modaliza.
Em minha pesquisa, a categoria da modalização autonímica revelouse produtiva, sobretudo no que diz respeito à questão da orientação dialógica em direção ao objeto do discurso. A presença de uma constante “duplicação” do objeto de discurso, isto é, a sua colocação em par (couplage), em um processo de justaposição metaenunciativa, equivale, no caso, a uma forma peculiar de modalização autonímica. Isto porque, diferentemente, do modelo clássico de MA, não existe, nesse tipo de construção, um elemento autonímico ou metalingüístico unívoco. Quando muito, se pode registrar a presença de um marcador de reformulação (gramatical – tal como isto é, quer dizer, ou melhor – ou tipográfico – itálico, aspas, sinais de pontuação). Mas muitas vezes esse próprio marcador se faz ausente e, nesses casos, é o segundo termo do par que opacificando o dizer, tem função autonímica.
A localização da presença da MA resulta, portanto, mais de um trabalho interpretativo da relação interposta entre os termos do par (X e Y), implicando o reconhecimento ali de dois dizeres, de dois diferentes pontos de vista sobre um mesmo objeto, calcados em uma relação implícita de identidade referencial.
AuthierRevuz se refere ao fenômeno da multinominação – presente em cada um dos quatro campos de nãocoincidência elencados – para explicar o uso enunciativo de duas palavras para uma mesma coisa, fazendo com que uma dessas palavras opere um retorno sobre a outra. Para AuthierRevuz (2000), a forma visível de um “dois” sob o espaço de uma
mesma nominação realiza o encontro de dois territórios discursivos postos em contato na cadeia significante sob a forma teatral de um diálogo a duas vozes.
As bases teóricas por mim escolhidas privilegiam, em síntese, os aspectos dialógicos dos processos enunciativos, a primazia do interdiscurso sobre o discurso, e a alteridade inerente à própria constituição de um sujeito permanentemente atravessado pela heterogeneidade em seu dizer. Esses princípios basilares, apresentados como categorias isoladas, vão naturalmente superporse no trabalho de análise realizado, demonstrando, na prática, os pontos de contato entre eles existentes.
A concepção dialógica de Bakhtin, contemplando diferentes níveis, diferentes formas, e diferentes graus de dialogismo, conduz, inevitavelmente, a uma reflexão sobre o fenômeno da interdiscursividade como ponto nodal para a compreensão do continuum da interação verbal, onde um enunciado é visto como elo integrante de uma complexa cadeia de enunciados, e remete, conseqüentemente, à multiplicidade das vozes ali presentes, pondo em relevo a questão da heterogeneidade enunciativa.
Os lugares de emergência das múltiplas vozes em confronto nos textos estudados são vistos, desta forma, como espaços dinâmicos, inacabados, cada texto escolhido complementando ou respondendo, de certa forma, a outro. O que significa dizer, com Maingueneau (1984), que, nesse caso, a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos na construção do corpus de trabalho.