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II – MODELO METODOLÓGICO 

1.2  TEMAS E OBJ ETOS DE DISCURSO 

No âmbito jornalístico, a noção de tema remete à idéia de “cobertura de um fato”.  Mas  a  idéia  de  que  notícias  sejam  “puros  registros  de  fatos”  obscurece,  segundo  Abramo  (citado  por  MORAES,  2004),  a  questão  de  que  não  é  possível  revelar  fatos  em  si.  É  nessa  mesma perspectiva que Verón afirma: 

Os  acontecimentos  não  são,  em  si  mesmo,  faits  divers,  não  pertencem  tampouco, por si sós, à ordem do político, do econômico etc. É o tratamento  discursivo  que  os  constrói  como  tais.  De  acontecimentos  “por  si  sós”  não  sabemos nada. (VERÓN, citado por HAMMES RODRIGUES, 2001:136). 

Adotando ponto de vista semelhante, de que os fatos não “falam por si”, eles são  por  mim  vistos  como  “acontecimentos  discursivos”  em  torno  dos  quais  se  organiza  um  arquivo  (tudo  o  que  se  passa  a  dizer  –  ou  que  se  pode  recuperar  de  datas  anteriores  em  revistas, jornais, simpósios, livros, entrevistas etc., como explica Sírio Possenti (2004)). Nessa  mesma  perspectiva,  Hammes  Rodrigues  ressalta  que  os  eventos  motivadores  da  emergência  do artigo (termo aqui ampliado para toda e qualquer matéria jornalística) são acontecimentos  discursivizados,  ou  seja,  são  fatos  ou  conjuntos  de  fatos  que,  por  sua  atualidade  e  interesse  social, tornam­se temas de circulação da comunicação sócio­discursiva. 

Vendo  no  tema  um  dos  três  aspectos  subentendidos  que  formam  a  parte  extraverbal  do  enunciado,  juntamente  com  o  espaço  e  tempo  do  evento  e  a  posição  dos

interlocutores  diante  do  fato  (ou  seja,  a  avaliação),  Bakhtin/Voloshinov  (1981,  p.  302)  o  definem  como  sendo  fundamentalmente  “aquilo  de  que  se  fala”.  Essa  noção  vai  ser  desdobrada  ao  longo  da  obra  bakhtiniana,  apontando  para  duas  direções:  a  primeira  delas  enfoca  diretamete  o  evento  discursivamente  construído,  enquanto  a  segunda  faz  do(s)  protagonista(s)  de  tais  eventos  –  o  herói,  nas  análises  que  Bakhtin  realiza  do  discurso  romanesco – o principal objeto de discurso. Desta forma, o tratamento discursivo de um tema  pode significar tanto falar de “fatos” como do herói que os personifica, dando origem a dois  tipos  de  referente  a  ocuparem  o  primeiro  plano  da  cena  enunciativa,  não  isoláveis  entre  si,  mas aclarando­se mutuamente. 

Como afirma Bakhtin: 

As  relações  de  reciprocidade  entre  os  heróis  são  criadas  pelo  enredo  e  concluídas pelo próprio enredo As autoconsciências e as consciências desses  heróis  enquanto  seres  humanos  não  podem  contrair  entre  si  quaisquer  relações  extratemáticas  que  tenham  a  mínima  importância.  [...]  Herói  e  enredo são feitos de um mesmo fragmento. (BAKHTIN, 1997a, p. 104). 

Nos  textos  coletados  acerca  da  Abin,  observei  que  a  instituição  ocupa  diferentes  lugares  no  plano  enunciativo,  ora  correspondendo  ao  principal  objeto  da  matéria,  ou  seja,  ocupando  a  posição  do  herói,  ora  simplesmente  acompanhando  a  narração  e  o  comentário  de  fatos  ocorridos.  A  partir  de  tal  constatação  foi  possível  construir  uma  grade  com os tópicos seguintes:

TEXTOS QUE TÊM POR REFERENTE A  AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA  NA POSIÇÃO DO HERÓI  TEXTOS QUE TÊM POR REFERENTE  FATOS DIVERSOS INSERINDO A ABIN NO ENREDO  DISCURSIVO 

Processo de Criação da Abin  34 textos  Arquivos Secretos  148 textos 

Estrutura Organizacional da Abin  171 textos  Ações de Espionagem  285 textos 

Missão Institucional da Abin  112 textos  Atos de Corrupção  20 textos 

Acompanhamento de Movimentos Sociais  57 textos 

Combate  ao  Narcotráfico  e  ao  Crime  Organizado  17 textos  Ameaças Terroristas  25 textos  Eleições – Sistema de Urnas Eletrônicas  35 textos  Denúncias de Tortura  51 textos  Políticas Públicas  13 textos  Cruzando a distribuição temporal dos textos com a sistematização acima feita dos  objetos de discurso, observei que os temas desenvolvidos a partir da figura do herói portavam  uma  certa regularidade cronológica,  isto  é,  se apresentavam distribuídos ao  longo de todo o  recorte temporal por mim efetuado, enquanto os temas explorados a partir de fatos específicos  eram  freqüentemente  abordados  em  matérias  pontuais,  presentes  numa  faixa  de  tempo  limitada, a receberem maior ou menor ênfase tanto em função da natureza do evento abordado  como do momento político da sua aparição na imprensa. É assim, por exemplo, que o tópico  “espionagem” se desdobra em subtópicos diversos, tais como o Caso BNDES, o Caso Lunus,  as duas diferentes ações de suposta Espionagem no Planalto, etc. De modo similar, o tópico  “tortura” se desdobra nos casos Del Menezzi, Bizerril, Campello, e assim por diante. 

Por outro  lado,  alguns  tópicos  relacionados  a  eventos  específicos,  muito  embora  tenham  sido  timidamente  difundidos  quando  lançados  na  imprensa  (como  é  o  caso,  por  exemplo, daquele que trata de uma possível vinculação entre as FARCs e o PT, representado  por  uma  nota  de  coluna  em  2002  (texto  64/2002)  e  por  uma  carta  de  leitor  em  2004  (texto  9/2004)),  passam  a  ganhar,  em  seguida,  os  holofotes  das  mídias  tornando­se  largamente

explorados  na  produção  de  notícias 19 .  É  bem  verdade  que  muitos  deles  têm  vida  breve  no  espaço da imprensa, seja porque correspondem a eventos esporádicos, com limites temporais  precisos (como é o caso do tópico  Urnas Eletrônicas, que eclodiu quando da realização das  eleições  para  prefeito  em  2000)  seja  porque  a  própria  emergência  de  novos  temas  no  meio  social opera um deslocamento de foco nos jornais, sensíveis que são à ideologia do cotidiano  e à deriva da opinião pública. 

Essa  irregularidade distribucional observada, esse  jogo de luzes e sombras a que  os eventos são submetidos nos processos de construção discursiva remete à idéia foucaultiana  dos  sistemas  de  dispersão  de  enunciados  e  demonstra  que  no  campo  jornalístico,  os  textos  produzidos  se  entrecruzam,  se  expandem,  se  desdobram  e  se  renovam  continuamente.  Ao  mesmo tempo, uma única matéria pode apresentar, em seu interior, diversas facetas, diversos  fios temáticos,  fazendo com que  ao tentar  “arrumá­la”  em um grupo temático específico, se  corra o risco de empobrecer a percepção dos múltiplos efeitos de sentido ali criados. Esse é o  caso, por exemplo, do subtópico Caso Herzog, em relação ao qual se pode perguntar em que  grupo  temático  colocá­lo  de  forma  precisa:  vincula­se  ele  mais  diretamente  à  prática  da  tortura ou ao clamor pela abertura dos arquivos secretos e à conseqüente polêmica engendrada  a  respeito  do  assunto?  Esses  textos  se  desenvolvem,  na  realidade,  a  partir  de  ambas  as  vertentes, de forma simultânea e de tal modo que nenhuma delas pode ser considerada como a  determinante.  A  grande  quantidade  e  variedade  de  notícias  difundidas  acerca  de  um  mesmo  evento  findam  por  criar  uma  complexa  teia  discursiva  na  qual  se  inserem  múltiplos  dizeres  refletindo e refratando vários pontos de vista, o que me leva a considerar que, como diz Stam  (1992,  p.  28), o  discurso  verbal,  finalmente,  não  é  uma  representação  mimética  de  eventos,  mas uma reação (para mim, sempre axiológica) aos mesmos. 

19 

O  tema  de  uma  suposta  ajuda  financeira  dada  ao  Partido  dos  Trabalhadores  pelas  FARCs  foi  largamente  explorado pela mídia no decorrer do ano de 2005, em notícias diversas publicadas nos principais jornais do  País.

Nesse  sentido,  a  idéia  desenvolvida  por  Maingueneau  de  uma  semântica  global,  revelou­se  produtiva  no  que  diz  respeito  à  compreensão  do(s)  objeto(s)  de  discurso  construído(s) nos textos coletados. 

Como afirma Maingueneau (e eu grifo), 

Os  textos  estão  destinados  a  construir  redes  de  sentido  que  especifiquem  uma relação global com o mundo através de um conjunto de temas que eles  devem  integrar, a articular elementos  que  estão  engrenados às regiões  mais  diversas.  [...]  Os  temas  mais  importantes  são  aqueles  que  recaem  diretamente  sobre  as  articulações  essenciais  do  modelo  semântico.  [...]  Mesmo se se tenta torná­la menos grosseira com instrumentos estatísticos, a  confrontação  de  listas dos temas  de  diferentes  discursos  constitui  em  si um  procedimento  completamente insuficiente. Como  no caso do  vocabulário,  o  importante não é o tema, mas seu tratamento semântico. (MAINGUENEAU,  1984). 

Essa  semântica  global  –  a  qual,  segundo  Maingueneau,  nada  tem  a  ver  com  o  significado  dicionarizado  das  palavras  nem  com  os  sentidos  literal  ou  figurado  das  proposições  –,  pode  ser  associada  à  idéia  bakhtiniana  dos  “motivos”,  introduzida  por  esse  autor (1988, p. 222) quando ele analisa os elementos constitutivos do enredo no romance. 

Bakhtin ressalta a  importância de que se  leve em  conta os motivos presentes em  um  enredo  e  cita,  a  título  de  exemplo,  os  motivos  do  “encontro”,  da  “despedida”,  e  da  “perda”, dentre outros. 

Trasladando  essa  concepção  para  o  âmbito  de  minha  pesquisa,  a  diversidade  de  questões ali tratadas parece remeter a três motivos básicos – explicativos ou justificativos da  própria atividade de inteligência –, quais sejam os motivos da visibilidade, da efetividade e da  credibilidade que se deva atestar a um serviço secreto 20 . 

20 

Marco Aurélio Cepik (2003: 4­5) aborda a mesma questão ─ ainda que dentro de uma ótica diferente ─, ao  tratar  do  binômio  “agilidade/transparência”,  em  seu  questionamento  acerca  da  possível  (ou  impossível)  interface  entre  atividade  de  inteligência  e  regime  democrático.  O  termo  “agilidade”,  tal  como  o  autor  o  emprega, remete  ao  motivo  da  efetividade  enquanto  esforço  empreendido  por  um  determinado  órgão  para  tornar­se estável e  eficiente no cumprimento de suas missões. Já no que diz respeito à “transparência” (no  sentido  de  visibilidade),  o  autor  ressalta  ser  ela  “um  dos  requisitos  mais  valorizados  da  prática  política  contemporânea  (e  a  principal  promessa  não  cumprida  da  democracia)”.  O  terceiro  motivo  –  o  da  credibilidade ­ é implicitamente introduzido quando o autor afirma que numa “busca por reconhecimento e  valor  aos  olhos  dos  cidadãos  (o  que  depende  da  transparência),  não  se  pode  simplesmente  contornar  o

Esses  motivos  são  constantemente  discutidos  nos  textos  coletados,  correspondendo, assim, aos três principais eixos norteadores da relação polêmica fundada nos  discursos  estudados.  Os  motivos  da  visibilidade,  da  efetividade,  e  da  credibilidade  formam  juntos como que um semantismo global (aqui compreendido na dimensão do grande diálogo  bakhtiniano) do tema da Abin na imprensa. 

Motivos  esses  que,  permeando  praticamente  todas  as  matérias  jornalísticas  analisadas, ganham roupagens formais extremamente variadas abrangendo diferentes tipos ou  gêneros de discurso.