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O caso do aluno que confundiu dados de campo com tipos penais: “essa juíza cometeu crime de prevaricação”.

PESQUISA EMPÍRICA NO DIREITO: O LONGO CAMINHO

3. Alguns exemplos que explicitam o nosso longo caminho para, de fato, construirmos uma cultura de pesquisas empíricas no Direito Brasileiro

3.3. O caso do aluno que confundiu dados de campo com tipos penais: “essa juíza cometeu crime de prevaricação”.

Por fim, destaco o caso de um aluno que, também em um seminário, sobre a dissertação de mestrado de Michel Lobo (2014), respaldada em pesquisa empírica realizada em um juizado especial criminal, provocou uma postura muito curiosa.

Ao ler o seguinte trecho da dissertação de Michel Lobo (2014, p. 48-49), o aluno ficou perplexo:

[...] O último ponto abordado pela juíza nessa conversa foi sobre alguns casos não homologados por ela. Havia casos que a juíza não considerava com status jurídico e/ou de repreensão social. E esses casos não eram homologados por ela, ou seja, não aceitava propostas de transações penais (penas alternativas) feitas pelas promotoras que ela considerava exageradas ou quando as promotoras não propunham transações penais a certos casos e por isso tais processos acabariam indo às varas comuns, e suscetíveis a penas mais rigorosas caso isso acontecesse. Nesses casos a tentativa da juíza, segundo ela, era de se chegar a um acordo, com composição cível, se possível. Porém, havia casos, como nas ações penais públicas incondicionadas, em que propostas de acordo não eram possíveis, e nesses casos, tentava-se guardar os processos para que eles prescrevessem, ou seja, se o Ministério Público não se pronunciasse sobre o caso, o processo ficava guardado com a juíza para que se passasse o prazo legal, arquivando o processo.

Para ilustrar isso, a juíza mostrou-me uma sentença dela sobre um caso de falsidade ideológica. Tratava-se de um jovem que frequentou aulas no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ) por um ano letivo. Porém ele não passou no vestibular para o curso que ele frequentara. Esse rapaz tinha um amigo com o mesmo nome que ele e que era matriculado no CEFET, mas que havia desistido do curso, e não ia mais às aulas. Assim, para frequentar as aulas, o rapaz utilizou uma carteira de estudante desse seu amigo. O jovem frequentou aulas por um ano, realizando provas e avaliações do curso, sendo considerado um dos melhores alunos da sua turma. Após descoberto, o caso foi parar no Juizado Especial Criminal, onde uma promotora havia proposto uma transação penal. Era tido como um caso de crime contra o Estado, que foi lesionado. A juíza considerou a proposta de transação penal um exagero para o caso, e não homologou a proposta, e sua estratégia era deixar o processo inerte, e se o Ministério Público não se manifestasse no prazo legal, o caso seria arquivado.

[...] ‘Muitos casos são crimes, mas sem reprovação social ou sem prejuízo ao Estado, não há porque criminalizar isso’; comentou comigo [...]

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou

praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

Eu, ainda confusa, naturalizando a minha interação com a Antropologia, não entendi, de início, o que aquilo significava; e o questionei: “Mas, o Michel Lobo não cita este artigo em seu trabalho. Não entendi. Por que você está lendo o artigo do Código Penal?”.

E ele, sem titubear, vociferou: “Professora, essa juíza prevaricou. E o pesquisador, formado em Direito, não fez nada? Não falou nada? Nem questionou essa postura absurda da juíza?”.

Foi realmente muito interessante.

E me lembrou de um outro caso, quando eu ainda era aluna, e um colega [que, logicamente, desistiu do curso], fazendo mestrado, ao ouvir o relato de uma etnografia realizada por uma outra pesquisadora, que estudava uma favela carioca, perguntou, em público, no meio da reunião de pesquisa: “Mas, você está narrando um crime! Isso que o seu interlocutor faz é um tipo penal: falsidade ideológica. Você deveria ter prendido em flagrante esse sujeito.”.

Ou seja, desprender-se da legalidade é algo muito complicado para os juristas, de forma que a leitura do campo acaba ficando identificada com a sua visão prescritiva, a ponto de o pesquisador pretender prender em flagrante um interlocutor, em vez de compreender as motivações, sentidos e representações de suas posturas.

Trata-se de um verdadeiro obstáculo metodológico, que dificulta muito a realização de pesquisas de natureza empírica, nas quais o julgamento moral dos interlocutores e de seus comportamentos é totalmente inconveniente, além de inócuo, porque paralisa e limita a capacidade de interpretação dos dados e de compreensão de suas práticas, além de, eventualmente, fechar o campo para o pesquisador.

Contei esse caso a um amigo antropólogo, e, primeiro, ele riu. Depois, achou interessante e me disse que isso “jamais passaria pela cabeça de um antropólogo. É outra estrutura mental”, disse ele.

Conclusão [que não conclui]

Este relato informal e de tom intimista não pretendeu, de forma alguma, ensinar como juristas devem fazer pesquisas empíricas ou mesmo denunciar as dificuldades ou obstáculos para tanto. Nem tampouco pretendo hierarquizar a capacidade metodológica de antropólogos, colocando-os acima dos profissionais do Direito.

Mas, de fato, esse tempo de contato com a Antropologia tem me revelado entraves difíceis de serem contornados nessa tentativa de fazer a pesquisa empírica se tornar cada vez mais presente no campo do Direito.

Minha intenção aqui foi, simplesmente, compartilhar a minha experiência e as constatações, um tanto intuitivas, que venho fazendo acerca do caminho que precisamos

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Quando, nos idos de 2005, me apropriei desse método, de trabalho de campo, que eu considero extremamente rico e valioso, porque permite ao pesquisador ver, ouvir e escrever (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998) aspectos do campo jurídico que não são possíveis de serem problematizados através do uso de outros métodos, me apaixonei por essa forma de fazer pesquisa.

Acho que só mesmo a experimentação e o contato com a empiria permitem explicitar valores, ideologias e intenções implícitas e obscurecidas por discursos teóricos idealizados.

E essa vivência, que torna tanto a pesquisa como o próprio método algo a ser construído enquanto se o experimenta na relação que se vivencia, é não apenas muito inovadora, como também muito eficaz para articular os discursos do Direito e suas práticas, contrastando-os em campo, a partir da realidade e, com isso, nos permitindo conhecer melhor os fazeres jurídicos, tão invisibilizados pelos manuais prescritivos da dogmática.

Como tentei demonstrar, a pesquisa empírica permite, através da descrição minuciosa e da recorrência dos dados de campo, amparada nas referências comparativas, tornar mais visível a “teoria” (valores e ideologia) que orienta as práticas e rituais que se mostram incompatíveis com o discurso dogmático oficial do campo jurídico (KANT DE LIMA, 2008, p. 236).

E esse dispositivo metodológico é extremamente valioso para o nosso interesse de articular discursos e práticas.

Como referenciei Kant de Lima (2008, p. 14), que disse, no citado prefácio do meu livro, que “muita coisa aconteceu”, mas muitas dificuldades “continuam a retardar a constituição de uma reflexão propriamente científica sobre o campo do Direito no Brasil”, também disse Maria Stella de Amorim, destacando que o antropólogo Bronislaw Malinowski cunhou o método etnográfico para que “o pesquisador se despisse de conhecimentos prévios, de teorias antecipatórias, de seus aparatos valorativos de senso comum [...] ele não partiu de ‘teorias’, nem de ideias alheias, ou de abstrações” (AMORIM, 2013, p. 17).

O movimento que nós, profissionais do Direito, temos de fazer para compreender o Direito “da vida”, para além do Direito “dos livros”, é exatamente este, sugerido por Malinowski e apropriado por tantos cientistas sociais, e que causa tantas perplexidades e afetações.

Talvez as afetações que o método provoca, algumas das quais aqui mencionadas, conjugadas ao trabalho que dá fazer pesquisa empírica, devido aos deslocamentos e à disponibilidade de tempo que exige, associadas, ainda, às inquietações que as explicitações das práticas provocam, sejam causas que dificultam a adoção da metodologia de trabalho de campo no mundo do direito.

Mas, acredito que precisamos repensar o Direito e, para isso, é preciso, antes, observar suas práticas, descrevê-las e problematizá-las. Por mais que isso nos choque. Por mais que doa. Por mais que confronte as nossas certezas. Por mais que afete a nossa identidade normativa.

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. Certamente, ainda temos um longo caminho a percorrer.

Mas, é assim mesmo.

Os obstáculos fazem parte do caminho. E só existem para que sejam superados.

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