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IMPLICAÇÕES DA PERSPECTIVA ETNOGRÁFICA NA PESQUISA EM DIREITO E PROBLEMÁTICAS POSSÍVEIS ACERCA DAS DECISÕES JUDICIAIS.

2) Decisões judiciais: algumas problemáticas possíveis.

Sabemos que compete ao juiz aplicar aos fatos as normas jurídicas que os regulam. Trata-se de um processo cognitivo. Neste sentido, o juiz precisa conhecer os fatos para decidir. Vou propor ao leitor uma problematização de alguns fatores que envolvem esse processo de conhecimento por parte do juiz100.

Gostaria de iniciar com um exemplo que me é próximo. Estou a orientar uma aluna de mestrado em Direito cuja proposta é realizar uma etnografia das audiências de custódia no Rio de Janeiro. Uma das questões que lhe chamou a atenção diz respeito aos critérios de decisão do juiz na audiência. Afinal, quais elementos de convencimento levam o magistrado a decretar a prisão provisória ou ordenar a soltura do réu? Quais documentos o juiz tem acesso no momento dessa audiência? Poderíamos arriscar uma resposta, pois a pesquisa está no início, dizendo que o juiz tem acesso, principalmente, à Folha de Antecedentes Criminais do réu e aos Autos da Prisão em Flagrante, documento produzido pela Polícia Judiciária. Caso o andamento da pesquisa confirme que esses documentos são centrais à formação do convencimento do juiz e, consequentemente, de sua decisão, poderemos, então, fazer uma afirmação e formular outra pergunta. A afirmação consiste no seguinte: a Polícia produz a matéria-prima (informações centrais) com a qual juízes e membros do Ministério Público vão trabalhar. A partir desta afirmação, perguntamos: a) como são feitas as prisões em flagrante? Como se dá a redução a termo (textualização, escrituração) da atuação policial? Em outras palavras, como são produzidos os autos da prisão em flagrante?

As questões acima levantadas se aplicam, também, à formação da convicção do juiz no contexto do processo penal. Juízes e integrantes do Ministério Público dependem, cotidianamente, do trabalho desenvolvido pelas polícias judiciárias. Ora, se uma determinada

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. pesquisa tem por objeto a descrição e compreensão ampla do processo social envolvido numa decisão judicial, parece-me importante compreender o processo (social) todo. Em outros termos, como se dá a produção de provas e indícios pelas polícias judiciárias? Quais as implicações do trabalho policial às atuações do promotor de justiça, do advogado/defensor público e do juiz?

À perspectiva etnográfica focada no funcionamento das instituições judiciárias, é fundamental compreender como os atores judiciários pensam e atuam. Por outro lado, cabe destacar que há outros atores judiciários institucionalmente investidos de poderes decisórios (e não apenas os juízes). É o caso: a) do delegado de polícia e o exercício do poder/dever de indiciamento; b) do membro do Ministério Público e o poder/dever da denúncia101; c) do juiz e o seu poder/dever de tomar decisões absolutórias/condenatórias. Aqui, estou apenas destacando a parte (talvez) mais visível dos poderes decisórios exercidos por esses profissionais, outras tantas decisões são tomadas por eles (e por outros profissionais) no contexto das práticas judiciárias de produção da verdade jurídica.

Não sendo o juiz o único ator relevante a tomar decisões no âmbito das práticas judiciárias criminais brasileiras, cabe-nos questionar acerca desse conjunto de práticas e como elas se articulam num processo social complexo de produção da verdade processual. Como são feitas as investigações pelas polícias judiciárias? Como essas investigações são apropriadas pelos membros do Ministério Público (MP), objetivando o oferecimento (ou não) da denúncia? Como são feitas as denúncias pelo MP?

O promotor de justiça tem a função institucional, entre outras, de promover a ação penal. A denominada ação penal pública inicia-se com a denúncia do promotor. Trata-se de uma acusação formal que possui a sua estrutura discursiva previamente estabelecida pelas regras do Código de Processo Penal.

O discurso do membro do Ministério Público, na denúncia, é produzido tendo por base o discurso da polícia materializado nos autos do inquérito policial. Estamos diante de uma rede discursiva na qual a produção de um discurso depende do discurso anterior. No contexto dessa trama discursiva, os denominados “fatos” que estão nos autos do inquérito policial e, também, na denúncia do promotor de justiça já são eles próprios dados por interpretação. Gostaria de deixar claro que respondi apenas a uma parte da pergunta (como é feita a denúncia?). Partindo, então, da afirmação de que os “fatos narrados na denúncia” constituem uma narrativa do promotor de justiça, tendo por base o inquérito policial, podemos perguntar: a) como essa narrativa foi produzida e quais as suas condições institucionais de produção? b) que efeitos essa narrativa produz?

O fato, no mundo do processo judicial, materializa-se na forma de um enunciado sobre os fatos do mundo da vida. Consequentemente, o que se prova são as alegações feitas pelas partes. O fato no processo judicial tem materialidade propriamente linguística. Trata-se de um artefato. Em outras palavras, o fato se torna jurídico, jurisdicização do fato, pelo trabalho diuturno dos atores judiciários que produzem uma representação jurídica do fato por meio da linguagem e do sistema de classificação jurídicos.

101 Denúncia “é uma exposição, por escrito, de fatos que constituem em tese um ilícito penal, ou seja, de fato

subsumível em um tipo penal, com a manifestação expressa da vontade de que se aplique a lei penal a quem é presumivelmente o seu autor e a indicação das provas em que se alicerça a pretensão punitiva” (Mirabete, 1993, p.122).

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. O processo de jurisdicização do fato (interpretado como crime) tem seu início nas práticas policiais102. A Polícia Judiciária, por meio do inquérito policial, exerce uma atividade central no processo de construção jurídica dos fatos. Essa instituição possui, entre outras, a atribuição de converter os seus saberes sobre o crime e o criminoso (suspeito) numa linguagem – a linguagem das provas e indícios – que possa ser operacionalizada na fase do processo penal. Ao realizar essa conversão linguística, a polícia inicia, no contexto das práticas judiciárias criminais, o processo de construção jurídica do acontecimento, focada na apuração da existência do crime – materialidade – e de quem é o seu autor – autoria (Figueira, 2008, p.34). Trata-se de um processo de redução de complexidade dos fatos (apresentados por meio de discursos) e de construção de uma representação jurídica dos mesmos por meio: a) da dicotomia lícito/ilícito; b) das formas jurídicas de classificação que irão possibilitar o enquadramento do evento nas tipologias jurídicas disponíveis.

O desafio da compreensão do processo social de construção das decisões judiciais nos

levam, então, aos confins da apresentação da “notícia crime”, na delegacia de polícia. Como essa notícia crime é apresentada? Como se dá o registro dela pelo agente estatal? Quais decisões (e por quem) são tomadas a partir da notícia crime (ou a partir da prisão em flagrante delito)? Obviamente, que todo um campo de possibilidades decisórias se abre para o agente estatal, possibilitando o trânsito entre práticas legais e ilegais. Descrever e analisar essas práticas constitui uma das dimensões relevantes à compreensão da existência ou não de certos elementos de convicção (provas), por meio dos quais vai operar a cognição penal.

Estamos diante de um processo decisório que envolve diversos atores que tomam decisões. Como se dá a produção de registros no inquérito policial e no processo penal? Qual o lugar dos juízos morais nas decisões dos diversos profissionais? Como se dá a gestão estratégica do tempo? Que efeitos produz?

Focando, agora, mais especificamente no processo penal, podemos levantar, também, questões diretivas de possíveis pesquisas.

Tendo por base a concepção da doutrina jurídica como um saber sistematizador, construtor de teorias e de defesa de certas posições interpretativas do Direito, podemos nos perguntar acerca dos usos dos saberes doutrinários, pelos juízes, nas decisões judiciais.

Algumas outras questões interessantes: como os juízes percebem o seu papel? Como eles distinguem uma decisão judicial justa de uma decisão arbitrária? Como é feita a fundamentação da decisão judicial? Quais são as razões pelas quais as decisões são tomadas? Como mapeá-las? Como os juízes valoram as provas? Qual a compreensão que os juízes têm do princípio da igualdade jurídica e como eles operacionalizam este princípio em suas práticas decisórias?

A questão da valoração das provas levanta uma problemática anterior: o que os juízes e demais profissionais do Direito entendem por “prova” e “indício”. Parece uma questão óbvia, naturalizada como um senso comum do campo jurídico. Também pensava assim, até o dia em que tive o insight, durante o desenvolvimento de minha pesquisa de doutorado, de perguntas aos promotores, juízes e advogados o que entendiam por “prova” e “indício”. Eis a

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. minha surpresa. Não havia consenso. Compreendi que essas categorias centrais de estruturação simbólica das práticas judiciárias não possuíam estabilidade semântica. Passei, imediatamente, a observar os contextos de utilização dessas categorias jurídicas, ou seja, nos discursos presentes: a) nos autos dos processos penais; b) nos manuais de Processo Penal; c) nos discursos no plenário do tribunal do júri; d) nas entrevistas que realizei com profissionais do Direito103.

Fica claro, pelo exposto, que a trama de um processo judicial é informada por inúmeros fatores, e não, simplesmente, pela aplicação imparcial e universal das regras presentes no ordenamento jurídico estatal. Aqui nos cabe perguntar quais os sentidos da categoria imparcialidade no campo jurídico104. Como ela opera nas práticas discursivas e que efeitos produz.

Considerações finais

Apresentei, até aqui, algumas reflexões sobre o campo jurídico brasileiro e, também, alguns problemas possíveis de pesquisa. Não tive a intenção de fazer uma construção exaustiva de possibilidades, de caminhos de pesquisa. Gostaria de destacar apenas mais um. Trata-se de todo um campo de pesquisa que se abre por meio das etnografias que têm por objeto a comparação, por contraste, de sistemas jurídicos distintos. Geertz (2012), por exemplo, propõe o conceito de sensibilidade jurídica para efetuar uma comparação dos sentidos de fazer justiça e das questões colocadas pelas articulações entre fatos e leis em três sociedades. Neste sentido, os estudos comparativos, por contraste, viabilizam, também, uma maior tomada de consciência das características de nossa própria cultura jurídica.

Acredito, por fim, que a etnografia pode contribuir para o desenvolvimento qualitativo das pesquisas acadêmicas em Direito.

Bibliografia

BOURDIEU, Pierre. “Sistemas de ensino e sistemas de pensamento”. In: A economia das

trocas simbó licas”. São Paulo: Perspectiva, 1992.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Editora Unesp, 2006.

FIGUEIRA, Luiz Eduardo. O ritual judiciá rio do tribunal do júri. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.

GEERTZ, Clifford. “O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa”. In: O saber

local. Petrópolis-RJ: Vozes, 2012.

KANT DE LIMA, Roberto & LUPETTI BAPTISTA, Bárbara Gomes. “Como a

Antropologia pode contribuir para a pesquisa jurídica? Um desafio metodológico”. In:

Anuário Antropológico, 2013, Brasília, UnB, 2014, v.39, n.1, 09-37.

103 Nesta parte, convido o leitor a ler o capítulo 01 da minha tese de doutorado, intitulada “O ritual judiciário do

tribunal do júri” (disponível na internet).

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. LUPETTI BAPTISTA, Bárbara G. Paradoxos e ambiguidades da imparcialidade judicial. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2013.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 1993.

NOBRE, Marcos. “Apontamentos sobre a pesquisa em direito no Brasil”. In: Novos Estudos

– CEBRAP, n.66, julho, 2003.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalvanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

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