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A Antropologia como fonte de inspiração para a realização de pesquisas empíricas no campo do Direito

PESQUISA EMPÍRICA NO DIREITO: O LONGO CAMINHO

2. A Antropologia como fonte de inspiração para a realização de pesquisas empíricas no campo do Direito

Certamente, outras disciplinas e saberes também podem subsidiar a realização de pesquisas empíricas na área do Direito, tanto em perspectiva quantitativa, quanto qualitativa. Porém, no caso concreto, coloco o saber antropológico em um lugar privilegiado, por considerar que foi por causa da Antropologia Social que o trabalho de campo, enquanto método de pesquisa qualitativa, se desenvolveu.

E é no trabalho de campo que eu estou focando, porque acredito que este é o método de pesquisa que oportuniza, no campo do Direito, o diálogo entre discursos e práticas e, consequentemente, minimiza os abismos que a forma dogmática de encarar o saber jurídico produziu ao longo do tempo.

Mariza Peirano (2014, p. 2) destaca que foi exatamente porque os antropólogos se motivaram pela “curiosidade de conhecer mais uma sociedade, mais um grupo desconhecido”, é que eles foram a campo, com um projeto aberto e “sempre dispostos a reconfigurar as questões originais e colocar outras, de forma criativa e ousada.”.

110 Grande parte do que discuto neste tópico está publicada na coletânea organizada por Maíra Machado (2017),

intitulada “Pesquisar empiricamente o Direito”, da qual participo com um texto sobre o uso da observação participante em pesquisas na área do Direito (LUPETTI BAPTISTA, 2017, p. 82-117).

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. Propondo-se a conviver e a “ter contato o mais íntimo possível com os nativos”; ou, na verdade, a viver “como um nativo entre os nativos”, os antropólogos inventaram e elaboraram as “condições adequadas” ao trabalho de campo (MALINOWSKI, 1984, prefácio e p. 25).

Sendo assim, embora o trabalho de campo não seja um método de pesquisa exclusivo da Antropologia Social, certamente é a sua forma básica de pesquisa há pelo menos um século, de modo que a história da disciplina se confunde com a história do método, tornando fundamental, no meu modo de ver, que se estude essa metodologia de pesquisa de forma associada à identidade da disciplina que a constituiu, vindo daí a minha opção de articulação desses dois saberes: o Direito e a Antropologia.

Nos dizeres de Mariza Peirano (2014, p. 2) “não há antropologia sem pesquisa empírica [...] para os antropólogos, a empiria é nosso chão”. Ou seja, olhar para a realidade da vida e conviver com os pesquisados é pressuposto; não consequência.

Como se sabe, foi a experiência de um antropólogo, Bronislaw Malinowski, que permitiu a formulação e a reflexão sobre a construção de um método de pesquisa próprio da Antropologia, em 1914, quando, fazendo o seu doutorado em Antropologia na London School

of Economics, indo para as ilhas Trobriand, Malinowski ficou mais de três anos aprendendo

a língua nativa e convivendo com os nativos, em absoluta imersão, experiência que ensejou a publicação do livro Os Argonautas do Pacífico ocidental (1984), e, com ele, a ignição para a formulação e a reflexão do que hoje chamamos de método de pesquisa etnográfica.

Em função desse contexto histórico e de minha experiência pessoal [que foi com a Antropologia], destaco os seus dispositivos metodológicos como sendo muito interessantes e eficazes, dando ênfase aos seus possíveis usos na área do Direito.

De fato, articular Direito e Antropologia é uma tarefa exótica e problemática, na medida em que, aparentemente, esses dois saberes têm muito mais distinções do que associações.

No Direito, somos ensinados a solucionar (exterminar) os problemas. Na Antropologia, quanto mais problemas, melhor. No Direito, temos de ter respostas. Na Antropologia, perguntas. No Direito, importam os normatizados. Na Antropologia, os “outsiders”. Ao Direito interessa a regra. À Antropologia, o desvio.

Com efeito, depois que tomei contato com a Antropologia e passei a conviver com antropólogos tive uma clareza: a de que perdemos a inocência e a ingenuidade quando passamos a exercitar a reflexividade crítica que a Antropologia impõe. A minha sensação é de que nenhum fenômeno social passa ao largo dos olhos bem treinados de um antropólogo. Nada mais é visto com naturalidade. Tudo é problematizado.

Ao contrário, no Direito, o objetivo é exatamente o oposto, ou seja, controlar os fenômenos sociais e “pacificá-los”, numa tentativa (vã) de evitar conflitos (leia-se: evitar os problemas que são tão caros à Antropologia).

Entretanto, apesar de totalmente distintos em seus propósitos, é certo que, no que se refere ao método, a Antropologia tem muitos subsídios a oferecer ao Direito, especialmente,

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. nos ensinar a realizar trabalho de campo e, com isso, nos permitir enxergar a realidade e estudar as práticas do Direito.

Para começar, é preciso dizer que aprendi que o trabalho de campo é uma vivência, uma experiência, com intensa carga de subjetividade, o que significa dizer que é impermeável a qualquer tentativa de manualização.

Assim, não existe “receita” ou “fórmula” que ensine o passo a passo do trabalho de campo.

Cada pesquisador só pode falar do seu próprio trabalho de campo e de sua própria experiência de campo, sendo certo que, embora a troca de experiências permita a reflexão sobre como fazer um trabalho de campo, ela nunca uniformiza ou responde com grau de certeza e previsibilidade qual seria “A” forma correta, adequada e objetiva de se fazer a sua própria pesquisa de campo.

Nessa medida, alguns cuidados e alguns mandamentos até podem ser compartilhados entre pesquisadores que realizam pesquisa de campo nos mesmos espaços, mas jamais se poderá ter um “manual” ou um livro de “lições” que dê previsibilidade e ensine técnicas universais sobre a pesquisa de campo, porque essa experiência estará sempre perpassada por relações que são construídas em campo e são carregadas de subjetividades.

Cada pesquisador, em Antropologia, tem de “inventar um sistema de trabalho”. Inexistem “receitas” prontas. E cada antropólogo “trabalha como acha melhor e mais confortavelmente” nas circunstâncias especiais do campo e da vida diária que se lhe apresenta (DAMATTA, 1987, p. 191).

“Ninguém sabe muito bem como faz o próprio trabalho de campo”, disse EVANS- PRITCHARD, citando Paul Radin, em suas reminiscências e reflexões sobre o trabalho de campo (2005, p. 243). Até porque, as circunstâncias do trabalho de campo podem variar conforme as pessoas, o lugar e o objeto da pesquisa. Uma coisa é entrevistar juízes. Outra, delegados. Outra, policiais. Outra, traficantes. Outra, crianças. Outra, candomblecistas. Outra, padres. Outra, prostitutas. Outra, viciados em drogas. Outra, moradores de rua. Outra, comerciantes.

Daí uma importante dificuldade de juristas internalizarem a proposta metodológica da antropologia: a impossibilidade de “manualizar” esse método e de “estar previamente preparado”. Logo, a falta de controle sobre o que vai acontecer em campo e a imprevisibilidade de seus percalços.

Claro que, quando eu assumo que o trabalho de campo, numa pesquisa antropológica, é subjetivo e impermeável à “manualização”, eu não estou querendo dizer com isso que ele é espontâneo, meramente intuitivo, ou mesmo acidental. Apenas digo que ele é, de certo modo, incontrolável, e que exige readaptações, porque está sujeito a surpresas, imprevistos e obstáculos, com os quais pessoas acostumadas com o mundo da norma não gostam de deparar.

Ou seja, o que quero dizer é que a relação interpessoal e a própria subjetividade do pesquisador são partes constitutivas desse método de trabalho, e que, por isso mesmo, trata-se de um tipo de pesquisa que presume um envolvimento pessoal do pesquisador com as pessoas

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. do campo e, mais do que tudo, se faz “de modo artesanal” (DAMATTA, 1987, p. 156). Muito diferente da figura do pesquisador isolado e imerso em livros doutrinários, prontos para serem reproduzidos.

Peirano (2014, p. 12) menciona que os antropólogos são “ávidos em conhecer o mundo em que vivemos [...] nunca nos conformamos com predefinições, estamos sempre dispostos a nos expor ao imprevisível, a questionar certezas e verdades estabelecidas e a nos vulnerar por novas surpresas.”. Muito diferente dos dogmas jurídicos.

Ou seja, além de não termos um manual que nos dê segurança, tampouco podemos prever como se darão as relações durante o trabalho de campo, de forma que um jurista que queira fazer pesquisa empírica deverá ter em mente que precisará estar em contato e conviver intensamente com os interlocutores, ouvindo-os, observando-os, perguntando-os sobre seus fazeres, sobre os sentidos que dão às suas atividades, sobre como sentem suas experiências...e isso exige um deslocamento, que nem sempre estamos acostumados, confortáveis ou temos de tempo e disponibilidade para fazer.

3. Alguns exemplos que explicitam o nosso longo caminho para, de fato, construirmos