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PESQUISA EMPÍRICA NO DIREITO: O LONGO CAMINHO

3. Alguns exemplos que explicitam o nosso longo caminho para, de fato, construirmos uma cultura de pesquisas empíricas no Direito Brasileiro

3.2. Entre regras e fatos: “esses dados empíricos estão errados”

Outro caso muito interessante que vivenciei, explicita outro obstáculo bastante difícil de se superar no campo do Direito; e que está associado ao viés normativo desse saber.

Trata-se da famosa frase, que já ouvi mais de uma vez: “esses dados de campo estão todos errados. Não é assim que funciona. A lei proíbe”.

Quando a realidade destoa da norma e os operadores se afastam da Lei no exercício de suas atividades e “fazeres”, isso, em vez de significar, para o pesquisador-jurista, o acesso a dados empíricos interessantes e reveladores do campo pesquisado, causa-lhes imensa perplexidade [e muito incômodo], tendo em vista a relação que têm com a norma, que veem como parâmetro da vida e de conduta dos seus interlocutores [e deles próprios].

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. Romper com a crença de que a norma está em primeiro lugar, é muito desconfortável para as pessoas do campo jurídico.

Por isso mesmo, é muito comum que os alunos comecem a fazer trabalho de campo, julgando o comportamento daqueles que observam, definindo-os como bons ou maus profissionais, de acordo com a consonância de suas posturas com as normas, ou não.

O caso que pretendo narrar aqui, não trata diretamente disso, embora a discussão revele essa problemática.

Certa vez, passei para meus alunos de mestrado e de doutorado, uma etnografia muito interessante sobre o funcionamento [e as disfunções] da burocracia cartorária no Rio de Janeiro. Tratava-se do texto de Ana Paula Mendes de Miranda, intitulado “Cartórios: onde a tradição tem registro público” (2000).

A aluna responsável pelo seminário, naquele dia, não por acaso, era uma profissional com atuação direta em um cartório de tabelionato de notas.

Certamente por causa disso, e da perplexidade de ler, na etnografia, as disfunções da burocracia cartorária, ela fez o seminário, nitidamente, furiosa.

Era perceptível o seu incômodo e a irritação com os dados etnográficos.

A todo o tempo, dizia: “esses dados estão errados”; “essa antropóloga não entende nada de cartório”, “tem erros de técnica nessas falas”, “a lei proíbe”, “a corregedoria revogou esse ato mencionado pelo entrevistado” etc.

Deixei que a aluna expressasse suas emoções, tentei explicar o objetivo da etnografia e suas conclusões, disse que não se tratavam de críticas pessoais [por óbvio], e, mais tarde, enviei o seguinte e-mail para a aluna e para a turma.

Queridos alunos,

a experiência da aula de hoje, pelo menos para mim, foi muito interessante e instigante. De um lado, o seminário mobilizou uma série de emoções (e isso faz parte de uma experiência acadêmica da dimensão de um mestrado e de um doutorado...aliás, se não fosse assim, não teria graça e não seria nem emocionante, nem transformador!); e, de outro lado, permitiu que essas mesmas emoções fossem traduzidas em conhecimento. Quero dizer: o deslocamento dessas emoções para o nível da construção do saber permite reflexões metodológicas e epistemológicas, que eu considero fundamentais e bastante críticas, tanto no campo da antropologia, quanto no campo do direito. As supostas "atecnias" do texto, marcadas com veemência na aula de hoje, não passam de dados da realidade. Gostemos deles, ou não.

Como eu disse, a realidade impera nas etnografias, apesar das normas. Gostaria de sugerir um novo seminário, sobre o mesmo texto, além de outra indicação bibliográfica, que segue abaixo.

O "dever de casa" de Vocês é refazermos o seminário, com uma nova perspectiva, diante do que conversamos após a aula.

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019.

Quero que, apesar dos supostos “erros técnicos do texto”, Vocês não criem resistência à leitura da (outra) parte do texto, que é a que realmente interessa, e que é a causa da seleção dos textos que integram a bibliografia do curso. A parte do texto que nos interessa não é a dos “erros técnicos”, que os paralisou e impediu de analisar a interpretação dos dados. A parte que interessa é a leitura das descrições empíricas, que mostram a existência de uma lógica cartorial, que é tradicional e que organiza a burocracia brasileira, de forma a produzir códigos diferenciados de trato dos documentos públicos: ora privados, ora públicos. A intenção do texto, mesmo que Vocês o vejam como eventualmente "inepto", do ponto de vista do Direito, é a de problematizar, mais uma vez, a lógica complementar e patrimonialista da nossa sociedade, que trata desigualmente os desiguais e insiste em usar as regras [desta vez, as cartoriais] de forma aleatória e seletiva, para distinguir os serviços que presta.

Ademais disso, impõe destacar que as entrevistas realizadas são dados que apontam a fala dos outros, não da autora do texto. Ela não necessariamente concorda ou discorda dos seus interlocutores. Mas suas falas, dos interlocutores, constituem dados e compõem a interpretação etnográfica que a autora do texto faz. Por exemplo, a parte da vista dos autos aos advogados (atécnica ou não, distante das normas do código de processo, ou não) não é uma fala da autora, mas uma representação de um entrevistado dela; e isso, só por si, tem valor empírico. Trata-se da percepção de um operador do campo. Esta opinião existe em si, no mundo da vida, não tendo a necessidade de estar associada a uma regra jurídica.

Acho essa discussão altamente instigante, interessante, rica e profícua! Por isso mesmo, reenvio o texto para que todos leiam e reflitam na perspectiva do que conversamos e aproveito o ensejo para enviar outro artigo, que trata dessa tensão epistemológica. O texto reflete metodologicamente sobre a questão do saber do nativo x saber do pesquisador [...]

Refizemos o seminário e eis o registro da aluna.

Querida Bárbara,

nosso seminário de ontem me trouxe inúmeras reflexões nas últimas vinte e quatro horas...

Passada a perplexidade e o choque entre a dogmática e a empiria, saí da aula disposta a mais uma releitura do texto, aberta a uma nova captação de sentidos. Acho que entendi a proposta e identifiquei os problemas da minha leitura. As provocações das aulas têm sido muito produtivas [...].

Ou seja, a dissociação entre as práticas e as regras, em vez de permitir compreender a lógica dos “fazeres” dos interlocutores e tentar captar as suas representações e sentidos, tentando entender por que motivos eventualmente se afastam da Lei, assume, no campo jurídico, uma outra dimensão, transformando-se em problema metodológico e, por vezes, impeditivo para a realização do trabalho de campo, por confrontar e afrontar a idealização que os juristas fazem sobre como as coisas “deveriam funcionar”, causando-lhes impactos profundos quando identificam que “não funcionam como deveriam funcionar”.

Em vez de a experiência empírica levar ao tratamento dos “dados de campo” tais como coletados e observados, já que a realidade não é nem boa nem ruim, ela é o que ela é, essa vivência afronta a identidade normativa dos pesquisadores, que ficam confusos - e por vezes

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. irritados - ao ver o espelho da realidade refletir aspectos tão “distorcidos” de suas crenças prescritivas.

É como se o mundo do “dever-ser” fosse sempre prioritário. Ao passo que o mundo do “ser” fica desprestigiado, enquanto, na Antropologia, os sentidos se dão de forma diametralmente oposta. E esta diferença parece ser algo bastante complicado de se contornar no campo jurídico, no qual as pessoas resistem fortemente à realidade, por terem sido treinadas para idealizar.

3.3. O caso do aluno que confundiu dados de campo com tipos penais: “essa juíza