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O Direito como dogmática: “no meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho”

PESQUISA EMPÍRICA NO DIREITO: O LONGO CAMINHO

1. O Direito como dogmática: “no meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho”

Como sabemos, é a dogmática jurídica que sustenta a produção “teórica” do campo do Direito e, por natureza, essa forma de construir conhecimento se constitui por fórmulas prescritivas, relacionadas ao “mundo do dever-ser”, e decorrente de premissas inquestionáveis, assim como a fé, e, nessa medida, não se preocupa com o “mundo do ser”. Aliás, a própria palavra “dogma” está associada à teologia dogmática, relacionada a um conjunto de verdades reveladas por Deus, de modo que, por concepção, a ideia de dogmática está associada à revelação de verdades e não à construção de um saber calcado em observações críticas e reflexivas sobre a realidade.

107 A REED é a rede de estudos empíricos em Direito. Para conhecer a rede: http://reedpesquisa.org/

108 Referência ao poema-escândalo “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade, que foi publicado

pela primeira vez na “Revista de Antropofagia”, em 1928, e, após, em 1930, na obra “Alguma Poesia”, da Editora Pindorama.

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. João Maurício Adeodato (ADEODATO, 2002, p. 32) trata do tema de forma bastante didática, situando a dogmática jurídica no lugar do conhecimento estabelecido a partir de premissas previamente fixadas e inquestionáveis:

A dogmática jurídica preocupa-se com possibilitar uma decisão e orientar a ação, estando ligada a conceitos fixados, ou seja, partindo de premissas estabelecidas. Essas premissas ou dogmas estabelecidos (emanados da autoridade competente) são, a priori, inquestionáveis. No entanto, conformadas as hipóteses e o rito estatuídos na norma constitucional ou legal incidente, podem ser modificados de tal forma a se ajustarem a uma nova realidade. A dogmática, assim, limita a ação do jurista, condicionando sua operação aos preceitos legais estabelecidos na norma jurídica, direcionando a conduta humana a seguir o regulamento posto e por ele se limitar, desaconselhando, sob pena de sanção, o comportamento contra legem.

Miguel Reale (2003, p.322), jurista clássico do Séc. XX, já falecido, mas ainda muito reverenciado no ensino de introdução ao estudo do Direito, é textual ao asseverar que a interpretação dogmática do jurista é o “momento máximo de aplicação da Ciência do Direito”, e se verifica “quando o jurista se eleva ao plano teórico dos princípios e conceitos gerais indispensáveis à interpretação, construção e sistematização dos preceitos e institutos de que se compõe.”.

Tercio Sampaio Ferraz Júnior (1990, p. 85), outro doutrinador que costuma ser indicado como leitura obrigatória nos cursos de Direito, ensina que a dogmática jurídica se caracteriza por premissas que devem ser tomadas de modo “não-problemático”, pois problematizar comprometeria o “grau de decidibilidade” e a segurança dos conflitos juridicamente definidos.

A dogmática jurídica, nesse sentido, tem suas bases fincadas no Direito Positivo, que restringe o estudo do Direito ao estudo das normas jurídicas, caracterizando-se pela aceitação acrítica da “normatividade revelada nas expressões semiológicas do direito, em especial no discurso normativo da legislação, como ponto de partida e núcleo de convergência dos respectivos atos de conhecimento.”. (COELHO, 2003, p. 177)

Da leitura de Tercio Sampaio Ferraz Júnior (1990, p. 80-81), infere-se a ideia de que o pensamento dogmático do Direito revela um sistema fechado, acabado, pronto e sem lacunas, no qual as normas, os conceitos e as regras jurídicas conformam o material da “ciência dogmática”, que acaba por se converter em produto “abstrato” a serviço de ser operacionalizado ou manipulado em situações concretas no Direito. O jurista, perante a “ciência do Direito”, tem de ter uma postura “não-problemática” diante de seus pressupostos e uma preocupação objetiva com a decidibilidade dos casos concretos.

Em suas próprias palavras, o “preço” dessa “cientificidade” é, justamente, o risco de um “distanciamento progressivo da realidade”, pois a ciência dogmática, sendo abstração de abstração, vai preocupar-se de modo cada vez mais preponderante com a função de suas próprias classificações, com a natureza jurídica de seus próprios conceitos etc., deslocando a realidade e afastando-se dela. (FERRAZ JÚNIOR, 1990, p. 80-81).

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. Esta breve e singela síntese [bastante restrita], obviamente, não explica todos os obstáculos epistemológicos que fazem com que o campo do Direito e os juristas tenham muita dificuldade em aceitar como legítimos os dados empíricos e o estudos das práticas judiciárias, mas, certamente, nos dá algumas pistas de por que isso acontece e por que, após tantos anos, como disse Kant de Lima no prefácio de minha dissertação (LUPETTI BAPTISTA, 2008), segue sendo difícil ampliar os rumos da pesquisa em Direito no Brasil.

Diante da experiência que vivenciei, dialogando com a Antropologia e, de certo modo, com cientistas sociais em geral, incluindo não apenas os antropólogos, mas também sociólogos e cientistas políticos, a interdisciplinaridade e, portanto, a abertura dos juristas para outros saberes e metodologias de pesquisa, seria uma forma bastante eficaz de desencastelar o nosso campo, jurídico, e, com isso, estabelecer pontes para pensar para além da dogmática.

Certamente, essa interlocução entre Direito e Antropologia não é fácil; seja porque não estamos acostumados a sair dos muros da dogmática para flertar com outras áreas do saber, seja porque não temos a formação necessária para pensarmos e agirmos como se fôssemos antropólogos, seja porque os custos de estar nessa liminaridade nos colocam em um “entre- lugar” [nem juristas “puro-sangue”, nem muito menos antropólogos “de raiz”], mas é fato que este desafio - da interdisciplinaridade - quando aceitamos a condição de “sermos afetados”, nos termos de FAVRET-SAADA (1990, p. 6), que nos informa que a afetação supõe “que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada”, é muito válido, porque ele é capaz de ampliar as nossas percepções sobre o nosso próprio campo de conhecimento e nos permitir compreender, no caso específico da Antropologia do Direito, o seu funcionamento e as suas engrenagens, a partir da realidade, de modo que esta condição, de fazer pesquisa empírica em e com o Direito [leia-se trabalho de campo], é privilegiada para possibilitar a articulação entre o mundo do “dever-ser” e o mundo do “ser”.

Em artigo publicado com Roberto Kant de Lima (KANT DE LIMA e LUPETTI BAPTISTA, 2014), destacamos algumas importantes características que distinguem não apenas os saberes do Direito e da Antropologia, como também as pesquisas realizadas em ambas as áreas do conhecimento. E, mais do que isso, tratamos de pensar sobre os problemas de restringir o estudo e a compreensão do Direito à dogmática jurídica, especialmente, a completa dissociação entre normas e práticas, entre “dever-ser” e “ser”.

E assim como nós, muitos outros colegas escreveram textos interessantíssimos109 sobre os desafios e os limites da interdisciplinaridade no Direito. E nesses artigos são explicitados muitos obstáculos que devemos ainda enfrentar e superar para realmente fazermos acontecer a pesquisa empírica no Direito. Tais como a própria dogmática, que destaco aqui, mas também outros: (1) a lógica do contraditório (KANT DE LIMA, 2012; DUARTE e IORIO FILHO, 2015; LOBO, 2015), que leva ao infinito a oposição de teses doutrinárias, sem nenhuma possibilidade de consensos, ainda que provisórios, sobre conceitos e definições; (2) o imaginário de que a pesquisa em Direito ainda estaria restrita ao estudioso, doutrinador, “perdido em sua biblioteca”, imerso em um mar de livros, construindo,

109 Hoje, felizmente, já há uma produção bastante grande sobre a importância da interdisciplinaridade no Direito

e sobre os desafios e possibilidades da interação com outras áreas do conhecimento. Como eu disse, especialmente o INCT-InEAC/UFF e a REED - Rede de Estudos Empíricos do Direito, têm essa preocupação. Ver, especialmente: FILPO (2012); GERALDO et al (2010); LOBO (2015), MACHADO (2015) e XAVIER (2015).

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019. teoricamente, opiniões abalizadas sobre os fatos e a norma (FRAGALE FILHO; VERONESE, 2004 e FRAGALLE FILHO, 2005; FILPO, 2012); (3) a confusão entre a lógica dos pareceres e a lógica da pesquisa e a apropriação, pelo mundo acadêmico, do fazer profissional da área jurídica, no qual as pessoas defendem teses em vez de realizar pesquisas sobre objetos ainda incógnitos, transitando em um caminho a ser investigado e descoberto, permitindo-se ser surpreendido pelo objeto ainda não conhecido (NOBRE, 2004; OLIVEIRA, 2004); (4) a falta de tempo de dedicação; (5) a ausência de treinamento para incorporar novos dispositivos metodológicos; (6) a dificuldade que os operadores do Direito têm em lidar com a “crítica”, sempre vista como algo destrutivo e não construtivo, dentre inúmeros outros fatores.

No entanto, para a conversa que me propus a realizar na oficina “Intensive Workshops on Methodologies for Socio-Legal Empirical Researches / Program 2017-2018”, destaco e insisto na cultura da “dogmática jurídica” como sendo uma pedra bastante considerável no caminho da empiria, se não a maior dentre tantas pedras, certamente uma das maiores, uma vez que a sua proposta, de não problematizar, não questionar, não perguntar, não duvidar, é diametralmente oposta - e eu diria que é mesmo, impeditiva – das bases necessárias para a pesquisa empírica no Direito, que pressupõe e exige uma postura problematizadora, reflexiva, crítica e questionadora sobre o mundo [e as disfunções] do Direito.

O desafio que eu me impus - nesse diálogo privilegiado com a Antropologia, que eu tive a sorte e a oportunidade e de me permitir fazer - como discente (durante cerca de 7 anos) e agora como docente (há cerca de 5 anos), de levar a frente essa pauta, de efetivamente incentivar a realização de pesquisas empíricas na área do Direito, está relacionado à minha convicção de que os dispositivos metodológicos da Antropologia, centrados na realização de trabalho de campo e, portanto, no uso de técnicas que exigem o contato direto e a convivência com o objeto da pesquisa, favorecem o campo da pesquisa jurídica de modo muito especial, pois fomenta o deslocamento do olhar dos livros para a realidade da vida e para a rotina dos Tribunais [tão esquecidos pela dogmática].

Antes de encerrar este tópico, devo ainda dizer que eu já sabia, por experiência própria, – e confirmo isso a cada dia – que os alunos mais insatisfeitos com o Direito [como eu] são também os mais abertos à interdisciplinaridade e, portanto, os que se sentem mais atraídos e afetados pela proposta de interação com a Antropologia. Tenho percebido, na experiência docente, que os alunos mais desconfortáveis com o Direito, os mais questionadores e insatisfeitos, são os mais propícios a encampar a metodologia que a Antropologia propõe, porque o estranhamento e a inquietação são os combustíveis iniciais mais relevantes e capazes de acionar o gatilho para a busca pela interdisciplinaridade.

Quanto mais indiferentes à realidade [automatizados ou burocratizados] ou quanto mais confortáveis e satisfeitos no mundo do Direito [acríticos], ou seduzidos pela dogmática jurídica, deduzo que menos aptos estes alunos e/ou pesquisadores se mostram ao exercício antropológico, que pressupõe desconstruções, estranhamentos e problematizações, nem sempre fáceis de digerir.

Cito, sempre que posso, o professor Otávio Velho (1995, p. 107), antropólogo brasileiro, que, escrevendo sobre a necessidade de a Antropologia fazer um esforço autorreflexivo sobre o seu atuar, algo que proponho como fundamental em relação ao Direito, mencionou algo muito apropriado:

Revista Juris Poiesis - Rio de Janeiro. Vol.22-n°28, 2019, pg.283- 427. ISSN 2448-0517 Rio de Janeiro, 29 de abril de 2019.

Na medida em que não fazemos isso [um esforço de autorreflexão para ficarmos conscientes de nossa própria posição], penso que a antropologia está correndo o risco de ficar muito satisfeita consigo mesma, acreditando que está ótima sem conseguir discutir mais profundamente o que está fazendo, por que está fazendo, quais são as condições institucionais em que está fazendo e quais as repercussões disso sobre o conhecimento [...] Acho que não devemos nos enganar com as nossas instituições, elas são devoradoras da criatividade [...] É preciso estar discutindo sobre o “real”, e estar refletindo sobre aquilo que se está fazendo e que está fazendo parte desse real, está sendo incorporado permanentemente a ele.

A pesquisa empírica, articulada através de trabalho de campo, é nada mais, nada menos, do que a possibilidade de vivenciar a materialização do Direito, deixando de lado, por um momento, o referencial dos códigos e das Leis para explicitar e tentar entender o que de fato acontece e – no caso do Direito – o que os operadores do campo e os cidadãos observados dizem que fazem, sentem e veem acontecer todos os dias enquanto os conflitos estão sendo administrados pelos Tribunais, sem julgamentos morais e sem medo de eventualmente apontar suas disfuncionalidades (KANT DE LIMA E LUPETTI BAPTISTA, 2014).

A questão é que, no campo dogmático, o Direito não tem problemas. Tem, apenas, soluções. Não tem perguntas. Mas, respostas. Não tem dúvidas. Tem certezas. Não tem inquietações. Apenas, satisfações consigo mesmo. Não tem hipóteses. Tem opiniões incontestáveis. E os dispositivos metodológicos da Antropologia pressupõem o oposto disso.

2. A Antropologia como fonte de inspiração para a realização de pesquisas empíricas no