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AMONAPE: nasce uma associação

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No final da década de 1990, as dificuldades de articulação nacional aliadas à difícil situação econômica do MONAPE levaram representantes dos estados de Pernambuco, Alagoas, Amapá, Bahia (litoral e região do São Francisco), Ceará, Maranhão, Pará, Piauí, Rio Grande do Norte e Tocantins a transformá-lo em pessoa jurídica, durante o I Seminário do Conselho Deliberativo do MONAPE, em fevereiro de 1999. O boletim informativo A Voz dos

Pescadores relata o acontecimento da seguinte forma:

A característica desta reunião nos retrata um marco na história do movimento dos pescadores, pois foi deliberada por unanimidade a criação do MONAPE enquanto instituição social. O MONAPE desde quando foi criado em 1988, contou com o suporte jurídico do CAPAB (Centro de Apoio ao Pescador Artesanal do Brasil). No dia 07 de fevereiro/99 o Movimento Nacional dos Pescadores foi registrado em Belém-PA, adotando personalidade jurídica própria (A VOZ DOS PESCADORES, jun, 1999).

Assim, o MONAPE se transformou em Associação Movimento Nacional dos Pescadores (AMONAPE), redefinindo-se como “uma sociedade civil sem fins lucrativos, de caráter filantrópico, de âmbito nacional”, cujo objetivo era facilitar a captação de recursos para o movimento (AMONAPE, 1999, p. 1). O estatuto da entidade manteve outros dois objetivos originais: organização da categoria nacionalmente, além de promoção e incentivo da defesa do meio ambiente e das populações pesqueiras, inclusive através de mecanismos jurídicos (AMONAPE, 1999).

Outras finalidades da associação diziam respeito a: 1) elaboração, acompanhamento e avaliação de projetos e programas de desenvolvimento em parceria com órgãos oficiais; 2) participação das populações de pescadores no planejamento, monitoramento e execução de políticas de desenvolvimento em parceria com órgãos oficiais; 3) promoção da capacitação e formação profissional de pescadores e pescadoras, através de diversos tipos de eventos, mirando a divulgação e ampliação do MONAPE; 4) contrair convênios e/ou contratos com entes privados ou públicos nacionais ou internacionais. (AMONAPE, 1999).

Ao sistematizar seus objetivos em diversos setores, o MONAPE envolveu atividades culturais, econômicas, políticas e sociais, da mesma forma como Milani (2005) descreve o processo de desenvolvimento local. Ou seja, como um projeto de uma comunidade ou, como

neste caso, de uma organização para a transformação consciente da realidade das comunidades pesqueiras, que têm um significativo grau de interdependência com outros setores da sociedade e cujos agentes estão presentes em diferentes escalas (econômicas e políticas) do local ao global.

Com a transformação em associação, o MONAPE passou a ser composto pelo conselho nacional, conselho deliberativo, coordenação executiva e, ainda, pelo conselho fiscal. O primeiro era a instância máxima de decisão do movimento, reunindo-se a cada três anos, cujas competências se referiam a 1) discutir e aprovar o planejamento trienal do MONAPE; 2) eleger a coordenação executiva, o conselho deliberativo e o conselho fiscal; 3) discutir e aprovar a prestação de contas trienal da gestão; 4) decidir sobre a extinção da entidade; 5) referendar a admissão de novos associados e a instalação de novas representações estaduais; 6) decidir sobre atores que resultem na disponibilidade do patrimônio da entidade e seu modelo organizacional; 7) reformar o estatuto.

Já o conselho deliberativo era responsável por decisões que viabilizassem o plano trienal, além de encaminhar a execução das atividades do MONAPE. A coordenação executiva, por sua vez, respondia pela representação do movimento e pela execução de políticas definidas no plano trienal e nas resoluções do conselho deliberativo. Por último, o conselho fiscal tinha, dentre suas atribuições, o controle patrimonial e financeiro do movimento (AMONAPE, 1999).

A partir desses dados e com base nos estudos de Gohn (2003, 2004), é possível dizer que o perfil dos movimentos sociais populares - como o MONAPE - se alterou na virada do milênio, porque a conjuntura política mudou e os mesmos tiveram de se redefinir em função da nova realidade. Os processos democráticos os estimularam a sair de uma cultura política clientelista - tradicional no Brasil - cujas redes de solidariedade eram baseadas em relações pessoais e interesses de grupos para uma cultura de novos valores apregoada pela militância.

Ao contrário do que a teoria de Gohn (2003) aponta, na prática ainda existem indícios de que não houve de fato uma ruptura dos movimentos sociais de pescadores com essa política clientelista, pelo menos no que tange a Pernambuco. Para alguns entrevistados que não querem ser identificados é inadmissível que essa postura persista na categoria, inclusive no âmbito político, no qual ainda são comuns as trocas de favores por votos, conforme revelam as seguintes falas:

Que essas lideranças de pescadores em Pernambuco se submetam a isso, aí é questionável, porque eles eram para ter essa concepção. A relação [com o Estado] é de cobrança, não é de estar apadrinhando ou de ser apadrinhado (ENTREVISTADO).

Uma questão muito forte nesse período de eleições municipais é a seguinte: ou sai candidato para vereador por uma decisão própria, ou apóia outro camarada da comunidade e aí recebe para fazer campanha para aquela pessoa. Não tem uma decisão comum com os pescadores. Então, assim, o candidato a vereador ele contrata aquela pessoa porque acha que aquela pessoa vai ter tantos votos porque é presidente de uma colônia, de uma associação e tem o domínio daquela comunidade. (ENTREVISTADO)

Por outro lado, ao que parece o MONAPE se institucionalizou para tentar desenvolver projetos com a comunidade organizada, porque os financiamentos internacionais passaram a ser cada vez mais escassos e fora das políticas públicas não havia recursos financeiros, conforme ressaltado por Gohn (2003, 2004) ao descrever o cenário enfrentado por movimentos sociais às portas do século XXI. Kunsch (2003) também nos ajuda a interpretar teoricamente a necessidade de mudança do MONAPE, quando afirma que:

Cada organização tem sua realidade social, política, econômica, cultural, tecnológica etc. Ela tem de encontrar a melhor maneira de se estruturar, coordenar suas atividades e otimizar seus recursos humanos, materiais e financeiros, em decorrência de sua atuação em diferentes mercados locais, regionais e globais. Ela deve buscar a melhor forma de ação coordenada para cumprir sua missão e visão, cultivar seus valores e atingir seus objetivos (KUNSCH, 2003, p. 63).

Entretanto, representantes do movimento têm outra visão. Para eles, o MONAPE encontrava-se em sérios apuros econômicos e precisava, de fato, se liberar de dívidas e prestações de contas para poder captar recursos e dar andamento a novos projetos, conforme revelaram líderes de Pernambuco, Ceará e Maranhão ligados ao MONAPE, cujos depoimentos valem a pena reproduzir, pois revelam a sua falta de identidade65 com o a situação enfrentada pelo movimento nacional dos pescadores à época:

Foi até uma eleição em Fortaleza, mas eles já vieram com tudo pronto de lá pra cá. Já vieram do Norte com tudo pronto e na assembléia apresentaram o movimento como era, o que era a associação, que dava direitos melhores e aí a maioria aceitou. Só que não foi bom para nós, foi uma mudança só para beneficiar a prestação de contas anteriores (JOSIAS CLEMENTINO DE JESUS, jan, 2010).

AMONAPE foi para conseguir recursos, porque o MONAPE como movimento não conseguia recursos [...] foi para poder o MONAPE trabalhar. Mas mesmo assim a AMONAPE não está suja com a prestação de contas? (JOANA MOUSINHO, jan, 2010)

O MONAPE se transformou em AMONAPE para que o grupo de frente tivesse o controle e poder sobre os recursos e ter o número de CPNJ próprio. Eu acredito que ninguém influenciou o movimento nessa decisão e essa mudança não trouxe nenhum benefício para os pescadores nordestinos e do país (JOSÉ ALBERTO DE LIMA RIBEIRO, fev, 2010).

65 Identidade aqui é entendida como o sentido de pertencer que as pessoas trazem, enquanto seres simbólicos. O

ser de algum lugar, pertencer a algum grupo, sentir afinidade com algo que lhe resgata algo seu, tudo isso pode ser chamado de identidade e pertencimento. São esses laços de pertencimento que unem as pessoas historicamente, tanto individual como coletivamente.

A mudança de personalidade jurídica deu-se pelo fato de o braço jurídico estar com muitas pendências e trouxe poucos benefícios para os pescadores artesanais (JOSÉ CARLOS DINIZ, fev, 2010).

Essa falta de empatia das lideranças com a situação financeira do MONAPE e mesmo com a necessidade de institucionalização para atender às exigências daquele momento parece sugerir que a medida provocou uma fragilização da identidade do movimento (TERRAMAR, 2005). Pelo menos foi o que a presente pesquisa pode verificar a partir dos depoimentos dos entrevistados, que sinalizaram a institucionalização do MONAPE na qualidade de personalidade jurídica como um fator complicador para a definição de sua identidade.

Outra medida da AMONAPE (1999, p.1) foi administrar e regulamentar as adesões ao movimento, restringindo de certa forma as novas associações, conforme o artigo 3º de seu estatuto: “são associados do MONAPE os pescadores e pescadoras que tenham assinado o livro de presença da Assembléia de Fundação, ou que tenham suas propostas de ingresso aprovadas na forma deste Estatuto e do Regimento Interno”. Segundo o agente pastoral Severino Bill (jan, 2010), essa ação descaracterizava o movimento que até então tinha uma concepção de que “onde tivesse uma colônia ou uma associação precedida por um pescador, aquele pescador automaticamente era considerado membro do MONAPE”.

Os pescadores que conseguiram cumprir esses pré-requisitos tinham direito de: 1) participar do congresso nacional do movimento; 2) apresentar teses ao congresso; 3) votar e ser votado; 4) requerer nos termos do estatuto a convocação do conselho deliberativo e do congresso. O agente pastoral Severino Antônio66 explica que, devido a essas normas, a adesão ao MONAPE passou a ser seletiva, inviabilizando a participação de muitos pescadores e pescadoras jovens:

Inicialmente não era assim, porque na assembléia de fundação da associação, em 97 ou 98, todos os pescadores podiam votar. Para se associar, o pescador tinha que preencher um cadastro. Onde tivesse uma colônia, federação, associação, sindicato, os pescadores ficavam dentro do MONAPE. Mas desde 1999 isso mudou, porque segundo o estatuto de 99 só podia se filiar pessoa jurídica, ou seja, o pescador tinha que necessariamente ser associado a uma colônia ou entidade similar. (SEVERINO ANTÔNIO, jul, 2009).

Esse formato de adesão era restritivo porque o MONAPE tampouco tinha controle do processo de associação de pescadores nas colônias, associações, federações e afins, o que acabava impedindo muitos pescadores artesanais de fazer parte do movimento, de votar e, consequentemente, de ser representados pelo MONAPE. Segundo agentes pastorais, isso também dificultou o controle do processo de associação:

66 Informação verbal fornecida durante entrevista com a autora no Recanto do Pescador, sede da CPP-Nacional

Desde 1997, o MONAPE não tem mais esse controle. Para garantir seu direito a voto o pescador tem que ser filiado ao AMONAPE, mas para isso depende do cadastro enviado pela sua colônia, que manda a quantidade de sócios que tem. Só que quem não é sócio de colônia não tem voto. Muitos pescadores ficam assim sem representatividade. (SEVERINO ANTÔNIO, jul, 2009).

As normas de adesão estabelecidas pela AMONAPE também podem ter contribuído para agravar a falta de identidade das lideranças locais e podem ser interpretadas como um retrocesso para o MONAPE, pois, na medida em que limitavam o ingresso de novas associações e de pescadores ao movimento, restringiam a expansão de seu capital humano e social.

Ao fazer isto, o movimento desconstrói sua capacidade de auto-organização, baseada em vínculos solidários, colaboração horizontal e outros canais de participação apontados por Jara (2001) para o desenvolvimento local. Essas normas tampouco estimulam a confiança, a reciprocidade nos relacionamentos sociais entre as diversas comunidades de pescadores, empobrecendo o tecido social do movimento no âmbito nacional.

A partir da transformação em AMONAPE, o movimento assinou diversos convênios com entidades governamentais. Um deles foi junto ao Ministério do Meio Ambiente, no valor de R$ 300 mil, que viabilizava parte das atividades programadas no planejamento do triênio 1999 – 2001. O segundo foi com o CNPT por R$ 18 mil, “que proporcionou a realização de descentralização dos trabalhos da Coordenação Executiva” (A VOZ DOS PESCADORES, dez, 1999, p. 2). O MONAPE contava ainda com o apoio de organizações não governamentais como Misereor, ICCO e Desenvolvimento e Paz. Embora alegasse que não alcançava toda a verba que necessitava, o movimento declarava-se satisfeito com esses acordos:

No balanço final, tivemos um saldo positivo, um avanço nas relações com novos parceiros, apesar dos aparentes empecilhos no que diz respeito à captação de recursos financeiros para o Movimento. Estivemos sempre presentes e abertos à negociação com entidades governamentais ou não, que nos pudessem abrir caminho para a implementação de nossos projetos (A VOZ DOS PESCADORES, dez, 1999, p. 2).

Essa postura do MONAPE é reveladora, pois confirma aquilo que Gohn (2003, p. 32) menciona sobre movimentos sociais nas últimas décadas do século XX. Embora apregoassem a autonomia e independência ante o Estado, na prática esse isolamento jamais existiu porque “os fundos públicos são, no sistema capitalista, pressuposto de financiamento tanto na acumulação de capital quanto na reprodução da força de trabalho e este padrão de financiamento altera a natureza dos conflitos sociais, que passam a girar fundamentalmente em torno do Estado”.

Ou seja, apesar do MONAPE ter lutado pela autonomia política e econômica, às portas do século XXI acabou se submetendo, como tantos outros movimentos sociais populares, às regras ditadas pelo sistema econômico e político imposto pelo governo vigente no Brasil. No entanto, parece pertinente afirmar que o AMONAPE continuava tentando ser um viabilizador de concertação de diversos atores sociais, que convergiam na busca por melhores condições de vida e trabalho para os pescadores artesanais. Pelo menos, no que diz respeito ao Norte do país.

No documento Download/Open (páginas 139-144)