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Origens e trajetória dos pescadores artesanais: da Colônia ao Império

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Durante séculos, todo o litoral brasileiro foi habitado por comunidades tradicionais de pescadores, os quais, desde a colonização do Brasil, vivem numa situação marginal “superexplorados economicamente e supertutelados politicamente” (SILVA, 1988, p. 23). Com a dominação portuguesa e a introdução massiva de escravos africanos, a trajetória da categoria esteve ligada à história de grupos oprimidos da sociedade colonial, como o índio, o escravo africano e, posteriormente, os camponeses26. Este início, sobretudo no Nordeste do Brasil, fez com que os pescadores tivessem suas raízes psico-sociológicas na escravidão, além de suas raízes técnicas e culturais nos índios e africanos (CCFD, 1997, p. 4).

Datam também desse período os primeiros regulamentos, tentativas de controle da produção de pescado e impostos (CCFD; SILVA, 1997, 1988). De acordo com Silva (1988, p. 52), a primeira prática oficial em relação à pesca remonta à doação das Capitanias Hereditárias, no século XVI. Especificamente na Capitania de Pernambuco, os pescadores tinham a obrigação de doar um peixe à Capitania a cada dez que pescavam. Além da cobrança do dízimo sobre o pescado, houve um monopólio de outras atividades que afetavam o modo de vida dos trabalhadores do mar, a exemplo da pesca da baleia e os pesqueiros reais da Amazônia27. Outra arbitrariedade se referia à jornada diária de trabalho que, caso não fosse cumprida, poderia acarretar na prisão do pescador por trinta dias. A esse respeito, Silva (1988) encontrou registros junto à Capitania do Ceará, incidindo diretamente sobre os jangadeiros28.

Fora as intervenções na produção, os pescadores viram sua organização social subjugada às ordens do Estado Colonial, que os hierarquizava, colocando no comando aqueles “de mais

26 Delgado, citado por Pires (2009, p. 176, interpolação nossa), considera que camponeses e pescadores se

parecem em dois aspectos: “na sua inserção periférica na estrutura de poder econômico dominante [e] na sua história de resistência frente a esse poder econômico”. Mas, apesar dessas similaridades e de ambos estarem inseridos na pequena produção mercantil, Diegues (1983, 1995, 1999) explica que os conceitos e metodologias utilizados para analisar as sociedades camponesas são inadequados para explicar as relações que existem nas comunidades de pescadores. Sobretudo, porque as práticas e o modo de vida dos pescadores artesanais se constroem em relação a um meio tanto física quanto socialmente instável e imprevisível: o oceano.

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Cf. Callou (1986); Silva (1988).

28 Diegues (2002) explica que os jangadeiros são pescadores marítimos que habitam a faixa costeira situada

entre o Ceará e o sul da Bahia, pescando com jangadas ou com botes, que muitas vezes substituíram as jangadas, sobretudo a partir dos anos 1950. Os jangadeiros utilizam as „jangadas de alto‟ para pesca em alto-mar, enquanto os botes e pequenas jangadas servem para a pesca costeira estuarina. Os jangadeiros detêm um grande conhecimento da arte da navegação e identificação dos locais de pesca.

porte e capacidade” a quem “todos os outros jangadeiros respeitarão e obedecerão” (SILVA, 1988, p. 65-66). Os pescadores também eram obrigados a dar a maior parte da pescaria à grupos privilegiados como os legisladores, a câmara, o clero e as forças armadas. Isso gerava um sobretrabalho obrigando-os, muitas vezes, a pescarem além de suas necessidades, sob a pena de serem presos. (SILVA, 1988).

Até mesmo na formação da primeira colônia de pescadores, a Nova Ericeia, em Santa Catarina, nota-se uma imposição do Estado. A tentativa de criar uma vila de pescadores para fomentar a atividade pesqueira acabou não dando certo porque o governo desconsiderou as aspirações dos pescadores. A colônia tornou-se mais um departamento da Marinha Portuguesa, que à época administrava a entidade “a revelia dos interesses concretos de seus 101 fundadores que sobreviviam unicamente da pesca” (SILVA, 1988, p. 67).

Apesar da pesca crescer e ganhar importância na sociedade escravista-colonial, os pescadores continuavam enfrentando monopólios opressivos e sofrendo exploração brutal de sua força de trabalho. Paradoxalmente, eles foram importantes agentes em conflitos e movimentos sociais da época, como a guerra do açúcar, a guerra contra os holandeses e, ainda, a guerra da independência da Bahia29. Conforme explica Silva (1988, p. 75): “foram sobretudo os pescadores, através dos conhecimentos de navegação, inerentes à sua atividade, que determinaram os resultados dos conflitos”.

Para o autor, a participação dos pescadores nessas guerras consolidou-se, mais tarde, como uma base sólida quando estes “passaram a encarar à sua realidade e a realidade circundante, não a partir dos pontos de vista [...] das classes dominantes, mas a partir dos seus próprios”. Foi, portanto, “desde a formação do escravismo-colonial, que se desenvolveu uma categoria sócio-profissional específica no Brasil – os pescadores - que, a despeito de ser extremamente explorada, adquiriu um caráter econômico autônomo e específico da sociedade escravista-colonial” (SILVA, 1988, p. 50).

A independência de Portugal tampouco trouxe aos pescadores uma melhoria significativa nas condições de vida e trabalho. Na realidade, no Brasil Império, a dominação do Estado continuou, obrigando-os a se cadastrarem junto à Capitania dos Portos, criada em 1845, ficando sujeitos ao serviço naval da Marinha de Guerra, sem ônus para o Estado (SILVA, 1988). Esse mesmo sistema também nomeou capatazes em cada distrito, introduzindo a prática de responsáveis que tinham nem a competência profissional nem a

liderança natural. Esta herança preparou a criação das atuais colônias, onde mandam aqueles que os pescadores chamam de „pelegos‟30

(CCFD, 1997, p. 5).

Essas medidas não encontraram aceitação na categoria, que promoveu uma luta silenciosa marcada por fugas, omissões e até as deserções das matrículas e recrutamentos, representando uma forma de resistência muda dos pescadores contra o regulamento da profissão imposta por um Estado autoritário que contrariava suas formas de viver e produzir. (SILVA, 1988).

A natureza militar da regulamentação dos pescadores e as suas próprias condições de vida e trabalho sob o escravismo dificultaram a construção de uma consciência da profissão pesqueira (SILVA, 1988). Segundo esse autor, o amadurecimento do nível de consciência da categoria só aconteceu nos dois grandes movimentos de massa, ocorridos durante o Império: a Cabanagem do Pará e o processo de abolição dos escravos no Ceará31. “Neles a participação efetiva dos pescadores, mais consciente que em outros movimentos sociais vistos anteriormente, é inequívoca” (SILVA, 1988, p. 193).

Esses fatos demonstram que os pescadores lutaram ao longo da história do Brasil junto ao povo oprimido ou mesmo ao lado das elites, “quando sentiram que sua participação era tão oportuna quanto necessária à vitória de várias causas fundamentais para o destino de toda a sociedade” (SILVA, 1988, p. 188). A participação efetiva nesses conflitos foi um fator crucial na formação de uma consciência do “ser pescador”, inserido numa sociedade egressa da colonização, do escravismo, do trabalho compulsório (SILVA, 1988). Apesar ou por causa de tantos regulamentos, impostos e chefia nomeada, os pescadores reagiram participando ativamente e, às vezes, decisivamente das lutas de protesto e de libertação da época (CCFD, 1997).

Entretanto, poucos relatos históricos têm feito jus aos pescadores, cuja participação em levantes populares, que levaram o país e diversos estados a ganhar sua independência política, tem sido desconsiderada (POTIGUAR JÚNIOR, 2002). No Nordeste, por exemplo, na luta contra os holandeses, em Pernambuco, e na Bahia contra os portugueses, os pescadores foram o único grupo coeso e organizado (CCFD, 1997). Além disso, tiveram relevante participação na luta abolicionista simbolizada pelo grito dos pescadores do Ceará: “Não se embarca mais

escravos!”. Sua resistência contra o governador e o exército levou esse estado a ser o

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Pelegos são aqueles que comandam as colônias, mas não são pescadores artesanais profissionais.

31 Na Cabanagem é possível verificar a abrangente participação dos pescadores na busca por uma melhor

qualidade de vida. Os cabanos, como se denominavam os integrantes do movimento, eram pessoas que moravam em áreas ribeirinhas da Amazônia. No entanto, o movimento não foi uma reação específica dos pescadores ribeirinhos amazonenses, mas um projeto maior de conquista social (POTIGUAR JÚNIOR; SILVA, 2002, 1988).

primeiro a abolir a escravidão. O episódio ficou marcado na memória da categoria pela participação do pescador Francisco José do Nascimento, mais conhecido como “Dragão do mar” (CCFD, 1997). Nesse processo de luta e formação da consciência da categoria, é possível incluir ainda a chamada Revolta da Chibata, no período republicano, que figura nos livros escolares como sendo de marinheiros, sem evidenciar que a maioria dos combatentes eram pescadores recrutados compulsoriamente pela Marinha.

Apesar do descaso do Estado e da falta de valorização política e histórica nos períodos anteriormente assinalados, os pescadores artesanais conseguiram construir um grupo social específico que se desenvolveu apoiado “na tradição, constantemente transmitida, das técnicas da pesca, dos tipos de embarcações, das formas de consciência, do imaginário bem próprio do trabalho pesqueiro” (SILVA, 1988, p. 191). Por isso, não devem ser vistos como um conjunto de comunidades isoladas, pois, além de terem um papel importante no processo de libertação dos escravos, participaram de vários movimentos no período colonial e no Império (DIEGUES, 1995).

2.2 Nacionalizar e modernizar: da Missão do Cruzador “José Bonifácio” ao Plano de

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