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CAPÍTULO 3: BOSSA NOVA, O ENCONTRO ENTRE POESIA E CANÇÃO

2.1 O amor, o sorriso e a flor

A bossa nova é produto de uma verticalização social do samba - e da música popular urbana em geral - que se iniciou com os primeiros registros fonográficos de canções populares no começo do século XX. As primeiras gravações de sambas possibilitaram que esta manifestação cultural deixasse o âmbito dos terreiros e dos folguedos das casas das tias baianas, circuito restrito às classes mais populares que frequentavam esses eventos, para que passassem a circular entre as mais variadas classes sociais, principalmente através de sua difusão radiofônica. Naturalmente, as classes mais abastadas foram seus principais consumidores, pois eram estes quem tinham condições de ter rádios, vitrolas, LPs e alimentar o mercado crescente da

música popular no país. Como comentado anteriormente, desde os primórdios da canção popular gravada temos intervenções de figuras de classe média com acesso à educação formal na música popular, mas a bossa nova representa uma nova etapa deste processo, sendo uma verdadeira intervenção programática da alta cultura na cultura popular, de forma que ambas saem renovadas ao fim do ciclo, como veremos.

José Ramos Tinhorão organiza sua reflexão sobre as origens da bossa nova a partir de uma análise da geografia da cidade do Rio de Janeiro nos anos 50. O autor contrapõe a classe média emergente ambientada em Copacabana e nos seus arredores, na qual se gestam as origens do movimento bossa nova, às classes populares residentes nos morros e vilas, onde surgiu o samba (1998, p. 309):

A década de 1950 revelou, de fato, no Rio de Janeiro, um momento de clara separação social marcada pelo próprio desenho da geografia urbana: os pobres levados a morar nos morros e subúrbios cada vez mais distantes da zona norte, os ricos e remediados no grande anfiteatro de 7,67 km2 de áreas planas abertas entre montanhas, do Leme, vizinho do Pão de Açúcar, até ao Leblon, olhando para o mar.

Para ele, a bossa nova é produto da reação dessa classe média frente à situação da música popular nacional de então, tendo que equacionar ao mesmo tempo uma enxurrada de músicas estrangeiras que ingressavam no mercado interno e sua influência na canção produzida no país. Tinhorão caracteriza este como um processo de “decadência” da música popular brasileira, como se lê no excerto abaixo (p. 309):

Contra essa decadência da música popular brasileira comercial se levantaria em fins da década de 1950 um grupo de jovens mais representativos das novas gerações filhas das famílias de classe média emergentes do pós-guerra, e cuja ascensão motivara a explosão imobiliária do bairro escolhido para seu reduto: a Copacabana famosa por suas praias de cartão-postal e anúncios de turismo.

O mesmo autor vê, como reflexo da organização geográfica da cidade e do pouco trânsito entre classes, essa geração dissociada da cultura popular do morro e do samba tradicional (p. 309):

Esse isolamento da primeira geração da classe média carioca do pós-guerra levara ao advento, em Copacabana, de uma camada de jovens completamente desligados da tradição musical popular da cidade, ante a ausência daquela espécie de promiscuidade social que havia permitido, até então, uma rica troca de informações entre classes diferentes.

Tinhorão segue seu raciocínio destacando a bossa nova como o ápice dessa dissociação cultural entre a classe média e as classes populares (p. 310):

Esse divórcio, iniciado com a fase do samba tipo be-bop e abolerado, fabricado pelos compositores profissionais da década de 1940, iria atingir seu auge em 1958, quando um grupo desses moços da zona sul, quase todos entre dezessete e vinte e dois anos, resolveu romper definitivamente com a herança do samba popular, para modificar o que lhe restava de original, ou seja, o próprio ritmo.

Para Tinhorão, a bossa nova corresponde ao que se poderia caracterizar como um processo de aculturação do samba. De acordo com o mesmo, nesta etapa o samba encontra-se definitivamente afastado de suas origens populares e tomado pela influência externa, fruto da “alienação das elites brasileiras, sujeitas às ilusões do rápido processo de desenvolvimento com base no pagamento de royalties à tecnologia estrangeira” (p. 309?). Partindo do reconhecimento do mesmo processo histórico, mas na contramão da interpretação de Tinhorão, julgamos possível apontar na bossa nova um processo de transculturação que, em lugar de representar a divisão social do Rio de Janeiro – e do Brasil de forma geral – supera pela música essa oposição classista, gerando o encontro das mesmas no interior de uma forma artística que combina traços tanto da cultura popular quanto da cultura erudita. Ou seja, em lugar de apontar na bossa nova um afastamento do samba, nos interessa revelar em que medida ela foi sua retomada e reinvenção.

A visão de mundo predominante nas canções da bossa nova de fato reflete a perspectiva da classe média jovem e universitária residente nos bairros nobres da Zona Sul do Rio de Janeiro. Se comparado a outros momentos da nossa história, é possível afirmar que essa parcela da população experimentou durante o governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek uma certa sensação de plenitude, como vimos anteriormente. Julio Medaglia sintetizou no slogan “o amor, o sorriso e a flor” o ideário da bossa nova, que manifesta em suas canções a experiência e os anseios dessa faixa social (2015, p. 87):

Como que tentando uma reação, a fim de não sucumbir ao determinismo da técnica, à aridez do asfalto, à luta aflitiva pela sobrevivência material, problemas que enfrenta no cotidiano a faixa mais “civilizada” da população, a imaginação poética da BN foi encontrar na simbologia do “amor, o sorriso e a flor” a sua fonte de inspiração e energia espiritual.

Ou seja, em lugar da temática do sofrimento amoroso predominante nos sambas-canção, a síntese apontada pelo “o amor, o sorriso e a flor” denota a felicidade equilibrada pelo amor realizado cantado em boa parte dessas composições. Luiz Tatit aponta também, “além do requinte musical oferecido pelo cool jazz”, uma aproximação entre a visão de mundo expressa na bossa nova e a “prosperidade concretizada nos avanços tecnológicos exibidos nas telas dos cinemas” (2004, p. 48) pelos filmes americanos. No entanto, essa interpretação do american way of life é transfigurada por uma forma de vida leve e despojada típica de um cenário urbano- praieiro carioca.

A ambientação recorrente das canções da bossa nova são os bairros nobres da zona sul Rio de Janeiro, principalmente Leblon, Copacabana e Ipanema. Nessa poética dá-se a substituição da cor local baseada em um exotismo natural, como vimos ao comentarmos os sambas-exaltação, por um cenário moderno, mas tipicamente brasileiro. Não há a exclusão da representação ou mesmo exaltação da natureza nacional, mas esta combina-se com registros da urbanidade, frequentemente ocorrendo o trânsito entre a praia e a cidade. Alguns destes aspectos podem ser percebidos na canção “Corcovado”, composição com letra e música de Antônio Carlos Jobim:

Um cantinho, um violão Este amor, uma canção Pra fazer feliz a quem se ama Muita calma pra pensar E ter tempo pra sonhar Da janela vê-se o Corcovado O Redentor, que lindo! Quero a vida sempre assim Com você perto de mim Até o apagar da velha chama E eu que era triste

Descrente deste mundo Ao encontrar você eu conheci O que é felicidade meu amor

Na letra de “Corcovado” estão elencados de forma clara a visão de mundo, os valores e a ambientação característica das composições da bossa nova. Os versos iniciais da canção já ressaltam o intimismo característico desta manifestação musical (“Um cantinho, um violão”) e a temática da realização amorosa predominante de toda sua lírica (“Este amor, uma canção/ Pra fazer feliz a quem se ama”). A ausência de

qualquer desassossego de ordem social ou econômica por parte do enunciador da canção denota a perspectiva de uma classe social privilegiada, capaz de restringir suas preocupações a assuntos de ordem afetiva. Essa condição de bem-estar está representada em um sujeito com “muita calma pra pensar” e “tempo pra sonhar”, experimentando uma sensação de plenitude que vai ao encontro da conjuntura econômica e social vivida pela classe média durante a era JK.

A perspectiva classista é reforçada pela ambientação da canção, que mistura elementos naturais com a ambientação urbanas, apresentando cenas conhecidas da paisagem carioca. Pode-se apreender do texto que o enunciador encontra-se na privacidade de um ambiente interno, possivelmente um apartamento na zona nobre da cidade, pois enquanto canta para sua amada enxerga pela janela alguns dos “cartões postais” do Rio de Janeiro (“Da janela vê-se o Corcovado/ O Redentor, que lindo!”). A paisagem carioca e o amor realizado são motivos de celebração por parte do enunciador, que pretende manter-se neste estado de conjunção com os valores com os quais se identifica (“Quero a vida sempre assim/ Com você perto de mim”). Como dissemos anteriormente, suas preocupações restringem-se apenas a questões afetivas, sem qualquer menção a questões sociais ou econômicas, de forma que a felicidade e a tristeza estão relacionadas diretamente à realização amorosa e a solidão, respectivamente, como atesta a narrativa mínima apresentada nos versos finais da canção (“E eu que era triste/ Descrente deste mundo/ Ao encontrar você eu conheci/ O que é felicidade meu amor”). Para melhor entendermos a visão de mundo expressa pela bossa apresentaremos a seguir uma análise mais apurada sobre as bases de seu lirismo.