• Nenhum resultado encontrado

Independência, originalidade e representatividade

2 Ángel Rama e a transculturação narrativa

2.2 Literatura e cultura na América LAtina

2.2.1 Independência, originalidade e representatividade

Para Ángel Rama, “las letras latinoamericanas nunca se resignaron a sus orígenes y nunca se reconciliaron con su pasado ibérico” (p.15). Nascida do traslado das culturas espanhola e portuguesa para o Novo Mundo em meio ao processo de colonização, a partir de meados do século XVIII a literatura assumiu a função de representar a nova sociedade que surgia e buscava afirmar sua existência na consciência ocidental. Motivada pela busca da autonomia e representatividade da região, foi necessário romper com suas origens. Tendo este projeto inicial de engajamento em vista, Rama propõe a análise da literatura na América Latina a partir de três tendências reguladoras que reconhece agentes desde a fundação desta tradição no continente: independência, originalidade e representatividade.

Para o autor, o desejo de independencia foi a norma principal desde a metade do século XVIII até os nossos dias, propiciando que a literatura do continente, cujas origens ibéricas são insuspeitas, se tornasse notoriamente distinta de suas fontes primárias (p. 16):

El esfuerzo de independência ha sido tan tenaz que consiguió desarrollar, en un continente donde la marca cultural más profunda y perdurable lo religa estrechamente a España y Portugal, una literatura cuya autonomia respecto a las peninsulares es flagrante, más que por tratarse de una invención insólita sin fuentes conocidas, por haberse emparentado con

varias literaturas extranjeras occidentales en un grado no cumplido por las literaturas-madres.

No entanto, pelo menos em um primeiro momento, este anseio não levou estas literaturas à autonomia, mas produziu novas dependências. O autor cita o classicismo da cultura italiana como fuga da influência ibérica no período colonial, após a independência política, as ideias românticas de nacionalismo que desembarcavam no continente vindas diretamente da França e da Inglaterra, e no século XX a sombra da emergência das letras norte-americanas.

No que diz respeito à originalidade, Rama observa a questão a partir de um movimento oscilante entre uma orientação externa de tendência universalista e uma orientação interna, de inclinação particularista (p.17):

Dicho de otro modo, en la originalidad de la literatura latinoamericana está presente, a modo de guia, su movedizo y novelero afán internacionalista, el cual enmascara otra más vigorosa y persistente fuente nutricia: la peculiaridad cultural desarollada en lo interior, la cual no ha sido obra única de sus élites literarias sino el esfuerzo ingente de vastas sociedades construyendo sus lenguajes simbólicos.

Ou seja, a originalidade literária do continente está baseada principalmente em dois movimentos: um externo, que consiste na assimilação e refinamento de elementos da cultura ocidental, como na apropriação de técnicas oriundas de vanguardas modernistas italianas e francesas no período entre-guerras; outro voltado para um olhar à cultura interna do continente como matéria prima para a renovação literária, como no período que se seguiu à assimilação das vanguardas europeias, a partir da década de 30, quando se viu o desenvolvimento do romance crítico-realista que propôs a revisão de questões da cultura interna e a denúncia de problemas sociais destas regiões.

A última norma reguladora apontada por Rama é a representatividade. Para ele, a literatura no continente sempre esteve envolvida com alguma forma de missão patriótica: seja no período colonial, quando a própria fundação de um sistema literário se caracterizava como a validação da relevância cultural daquela sociedade em formação; seja no período romântico, quando engajou-se na criação de imagens e mitos nacionais, recorrentemente ligados à representação da natureza ou de tipos como o índio ou estereótipos regionais, como o gaúcho ou o sertanejo, assim como no

período modernizador que se segiu com a busca do “sentimento íntimo” ou “espírito” nacional, como se referiram alguns autores.

Para Rama, reinserir as obras literárias dentro de um sistema cultural, observando as peculiaridades produtivas de cada época, é uma maneira de enfatizar a análise da ação destas tendências reguladoras em nossas letras e como elas se manifestam em cada período histórico (p. 24):

Restablecer las obras literarias dentro de las operaciones culturales que cumplen las sociedades americanas, reconociendo sus audaces construcciones significativas y el ingente esfuerzo por manejar auténticamente los lenguajes simbólicos desarrollados por los hombres americanos, es un modo de reforzar estos vertebrales conceptos de independencia, originalidad, representatividad.

O projeto crítico do uruguaio tem como objetivo “un esfuerzo de descolonización espiritual” de um continente que “tiene ya una muy larga tradición inventiva” e que reconhece como “una de las ricas fuentes culturales del universo” (p. 25). Esta descolonização espiritual é proposta a partir da investigação acerca da ressignificação e refinamento das técnicas importadas das tradições europeias, e não sua simples assimilação, além de procurar evidenciar outras fontes de renovação da literatura americana que não a mera importação estrangeira, como a revisão da própria cultura interna. Para Rama, só é possível falar-se em América Latina neste sentido (p. 25):

La única manera que el nombre de América Latina no sea invocado en vano, es cuando acumulación cultural interna es capaz de proveer no sólo de “materia prima”, sino de una cosmovisión, una lengua, una técnica para producir las obras literárias.

Os três aspectos citados por Rama no final deste excerto - cosmovisão, língua e técnica literária - serão os níveis propostos pelo autor para a investigação da transculturação narrativa, como veremos adiante. Vale ressaltar então que para o autor só há sentido em se falar sobre América Latina a partir da formação e, principalmente, do reconhecimento de uma tradição cultural interna capaz de transcender a questão temática das obras para estabelecer-se em sua forma e visão de mundo.

Sobre o processo de renovação cultural e literário, Rama aponta, a partir da década da trinta, o grande desafio dos autores regionalistas, depositários e divulgadores nacionais das tradições culturais internas, que são, para Rama, as que

reomontam às origens mais longínquas e particulares do continente latino-americano. O uruguaio destaca o fato de que muitas destas culturas internas alcançaram presença e reconhecimento nos seus respectivos cenários nacionais apenas a partir de sua representação nas letras. No entanto, se comparadas à literatura de tendência cosmopolita, esta vertente de escritores lidava ainda com formas literárias defasadas, que remontavam ao romance realista do século XIX, e por isso se encontrava ameaçada de obsolescência.

Um dos aspectos mais destacados por Rama entre estes autores, contrário à unidade da obra proposta pelos modernos, é uma fratura interna entre a forma do texto, geralmente narrada em uma linguagem culta e elevada, e seu objeto de representação, as culturas populares regionais. Tendo em vista a homogeneização dos padrões capitalinos, cuja assimilação dos padrões modernistas das principais metrópoles ocidentais já havia se dado, restava a estas culturas regionais, e por extensão aos seus representantes nas letras, renovar-se ou se extinguir (p. 34):

A las regiones internas, que representan plurales conformaciones culturales, los centros capitalinos les ofrecen una disyuntiva fatal en sus dos términos: o retroceden, entrando en agonía, o renuncian a sus valores, es decir, mueren.

Para analisar as possibilidades de reação destas subculturas ao impacto modernizador, e por extensão à literatura, Rama recorre ao esquema proposto pelo antropólogo Vittorio Lanternari em Désintegration culturelle et processos

d’acculturation, de 1966. O crítico uruguaio resume este esquema sobre a aculturação

– termo utilizado pelo italiano – em três possibilidades (p. 37):

El esquema de Lanternari, con sus tres diferentes respostas a la propuesta aculturadora, podría aplicarse también a la producción literaria regionalista: existe la “vulnerabilidad cultural” que acepta las proposiciones externas y renuncia casi sin lucha a las propias; la “rigidez cultural” que se acantona drasticamente en objetos y valores constitutivos de la cultura propia, rechazando toda aportación nueva; y la “plasticidad cultural” que diestramente procura incorporar las novidades, no sólo como objetos absorbidos po un complejo cultural, sino sobre todo como fermentos animadores de la tradicional estrutura cultural, la que es capaz así de respuestas inventivas, recurriendo a sus componentes propios.

Dentre as possibilidades apontadas por Lanternari e seguidas por Rama, temos duas posições extremas: a “vulnerabilidade cultural”, que, com uma postura alienada,

se nega a qualquer tipo de renovação. Entre estes dois extremos aparece como possibilidade a “plasticidade cultural”, propondo uma resposta a partir da síntese entre as culturas em conflito, postura esta que Rama considera a mais comum na América e que é seu principal objeto de interesse (p. 35):

La solución intermedia es la más común: echar mano de las aportaciones de la modernidad, revisar a la luz de ellas los contenidos culturales regionales y con una y otras fuentes componer un híbrido que sea capaz de seguir trasmitiendo la herencia recibida. Será una herencia renovada, pero que todavía puede identificarse con su pasado.

Para esta “plasticidade cultural” se dar é necessário revisar os elementos internos da cultura regional a partir dos novos aportes modernos, buscando nela valores resistentes (p. 38):

Para llevarlo a cabo es necesaria una reinmerción en las fuentes primigenias. De ella puede resultar la intensificación de algunos componentes de la estructura cultural tradicional que parecen proceder de estratos aún más primitivos que los que eran habitualmente reconocidos. Éstos ostentan una fuerza significativa que los vuelve invulnerables a la corrosión de la modernización (...)

Ou seja, esta postura de “plasticidade cultural” atende à critérios de seletividade e inventividade. Seletividade tanto sobre a tradição interna, através da manutenção de valores resistentes e descarte de elementos obsoletos, quanto do influxo externo, selecionando deste o que se enquadra em seus próprios interesses e necessidades e rejeitando outros. Em relação à inventividade se dá o mesmo: internamento, pela redescoberta e revalorizaçãoo que elementos culturais até então secundarizados, que emergem nessa nova realidade cultural ressignificados, e externamente pelo desvio e refinamento das concepções assumidas em sua fonte originária. Para analisar esta síntese harmônica entre culturas em diferentes temporalidade e estágios de modernização de forma articulada é que Rama retoma e revisa o conceito de “transculturação”, original de Fernando Ortiz, e o associa com os estudos literários a partir da proposta da “transculturação narrativa”, como veremos a seguir.