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Estudamos neste capítulo como o conceito de “transculturação” surge no ensaio Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar do antropólogo Fernando Ortiz, proposto como sucessor do conceito de “aculturação” da antropologia anglo-saxã, e logo reverbera entre alguns intelectuais latino-americanos como Mariano Picón-Salas, que adere ao termo, e Gonzalo Aguirre Beltrán, que o refuta. Em seguida passamos à retomada mais relevante do conceito, feita pelo crítico literário Ángel Rama, em

Transculturación narrativa en América Latina de 1982. Inserindo seu trabalho em

uma tradição de textos que se preocuparam com a integração supra-nacional do continente à partir da cultura, como a obra de Pedro Henríquez Ureña, apontado pelo uruguaio como precursor desta perspectiva, pudemos ver como Rama propõe a “transculturação narrativa” como forma de articular em sua análise literatura e cultura. Desde então o conceito tem sido recorrentemente tema de interesse entre estudiosos de todo o mundo, sobretudo entre os estudos culturalistas.

Fernando Ortizse destacou como um intérprete da nacionalidade cubana e a “transculturação” surge, de certa forma, como uma síntese das principais questões que mobilizaram sua produção intelectual. Suas primeiras obras, embora ainda bastante marcadas pelo pensamento iluminista do século XIX, como vimos em Los negros

brujos, de 1917, serviram para que o intelectual reconhecesse a multiplicidade de

matizes culturais que integravam seu país, como a afrocubana, que até então nunca havia sido um objeto de interesse dos estudiosos de Cuba, e preparasse uma nova perspectiva sobre o debate nacional. Apontamos como um segundo momento na obra do antropólogo a transição entre o conceito de raça pelo conceito de cultura em seus debates sobre a fomação cubana. Em um país dividido pelo rascimo, Ortiz via nas discussões sobre raça uma força dissociadora e estagnada para os interesses de integração nacional, enquanto, por outro lado, a cultura aparecia como uma possibilidade dinâmica e agregadora, como vimos na conferência “Nem rascimos, nem xenofobias”, de 1928.

A fase mais madura de sua produção, cuja obra mais significativa é o

Contrapunteo cubano del tabaco y el azucar, está engajada principalmente na

integração nacional e no reconhecimento e inserção de Cuba como uma fonte rica no panorama cultural ocidental. O ensaio de 1940 trata da história econômica e social dos dois principais produtos agrários do país, o tabaco e o açúcar, e suas repercussões em Cuba e no mundo. Sobretudo o tabaco aparece como o grande símbolo da cubanidade para Ortiz, tanto pela sua difusão no consumo global, levando um elemento da cultura cubana à universalidade, quanto pela feição humanitária e integradora desenvolvida nas formas de produção internas, contrário ao açúcar, ligado à escravidão e aos interesses econômicos estrangeiros.

Ainda que reconhecesse que suas ideias poderiam ter validade se aplicadas aos outros países do continente, nesta obra Ortiz se detém em questões particulares de seu

“transculturação” giram em torno de temas comuns entre os países subdesenvolvidos da América: a dependência em suas feições políticas, econômicas e culturais. Sua ideia de transculturação surge como uma proposta de sucessão para o conceito de “aculturação” de Herskovits, Redfield e Linton. A crítica do cubano ao conceito de Herskovits diz respeito principalmente à construção do termo, que, em sua leitura, sugere no encontro cultural uma relação hierárquica e unilateral, onde uma das partes envolvidas imporia sua cultura sobre a outra, que, por sua vez, subjugada, perderia alguns de seus elementos constitutivos para assimilar outros advindos do influxo externo. Para Ortiz, em lugar da “aculturação”, o neologismo “transculturação” expressaria de maneira mais adequada o trânsito cultural que se dá neste tripo de encontro, abrindo caminho para a análise de uma mútua influência e a modificação dos sistemas culturais de ambas as partes como consequência. Além disso, dando maior complexidade ao conceito, o cubano descreve o fenômeno em três fases: desculturação, inculturação e neoculturação.

O conceito de Ortiz logo mobilizou diversos intelectuais da área da antropologia, como o polonês Bronislaw Malinowski e o mexicano Gonzalo Aguirre Beltrán. Malinowski, que assinou um prólogo para o ensaio de Ortiz, defendeu o neologismo e aproveitou a situação para atacar a escola anglo-saxã de antropologia, acusando-a de uma perspectiva demasiadamente hierárquica e eurocêntrica em seus estudos. Gonzalo Aguirre Beltrán, por outro lado, em El proceso de aculturación en

México, sugere um equivoco na interpretação de Ortiz no que diz respeito a origem

grega ou latina dos prefixos que formam os vocábulos “aculturação” e “transculturação”, manifestando sua preferencia pelo primeiro e refutando o segundo.

À parte isso, o conceito continuou atraindo o interesse de diversos intelectuais, sobretudo entre os estudiosos de literatura e cultura. O primeiro nesta linha a fazer uso do neologismo de Ortiz foi o venezuelano Mariano Picón-Salas em De la conquista a

la independência: tres siglos de historia cultural hispanoamericana, de 1944, que o

emprega como um sinônimo útil para a mestiçagem cultural, sem uma articulação teórica mais rígida. No entanto, diferentemente do cubano, que está interessado especificamente em questões nacionais, Picón-Salas se apropria da transculturação inserindo-a em um projeto de integração supra-nacional, a construção da América Hispânica. As origens dessa ideia remetem ao século XIX, e as obras de Simón Bolívar e José Martí. No entanto, enquanto estas figuras do século XIX buscaram a integração supra-nacional por via políticas, os intelectuais do século XX buscaram-na

por uma via culturalista. Nesta linha culturalista uma figura essencial foi o dominicano Pedro Henríquez Ureña, quem, desde as primeiras décadas do século, buscou reconhecer a escificidade da cultura hispano-americana, principalmente através da literatura, apontando que no desvio que a cultura europeia sofre no continente, que ele chama de “autóctone”, e nos seus cruzamentos com outros matizes culturais estariam as manifestações mais originais e as principais contribuições do continente à cultura ocidental.

Ángel Rama insere-se nesta linha de pensadores culturalistas e retoma em seus trabalhos algumas das principais ideias de Pedro Henríquez Ureña e de Mariano Picón-Salas. É importante ressaltar que as reflexões de Rama passam de uma visão supra-nacional da América hispânica, como visto nos dois intelectuais que o antecedem, para a de América Latina, integrando também o Brasil em seu mapa cultural. Aliás, interessa-lhe muito mais do que o mapa político do continente, seu mapa cultural, maneira que encontra de superar as fronteiras políticas e identificar identidades para além dos limites nacionais. Rama propõe, para a análise cultural do continente, o reconhecimento de uma unidade interna, que remonta aos idiomas oficiais comuns, português e espanhol, à colonização ibérica e ao desenvolvimento histórico relativamente contemporâneo de todos os países da região, mas também da diversidade, refletida na multiplicidade de culturas e nações distintas que o compõem. No que diz respeito à multiplicidade cultural do continente, Rama destaca a necessidade de se pensar tanto as variedades culturais regionais, que Rama considera culturas horizontais, quanto as variedades sociais e de classe, que coexistem por vezes no mesmo espaço, sobretudo nas áreas urbanas, o que chamará de culturas verticais.

O principal projeto que o crítico uruguaio buscou desenvolver ao longo de sua produção intelectual foi o de identificar as bases para que se tornasse possível uma leitura integrada das tradições literárias da América Latina. Como forças reguladoras comuns das tradições literárias que compõe o continente Rama reconhece o desejo de independência, originalidade e representatividade. Além disso, para ele a análise literária não deve se restringir à observação textual, mas deve levar em conta a inserção da literatura em um contexto cultural mais amplo para, desta forma, revelarem-se os processos simbólicos que subjazem a produção das obras.

Como forma de articular literatura e cultura é Ángel Rama retoma o conceito original de Fernando Ortiz em Transculturación narrativa en América Latina de

da cultura latino-americana, sobretudo nas regiões onde, em detrimento de uma “vulnerabilidade cultural”, que apenas assimila a cultura do outro, ou de uma “rigidez cultural”, que renega as inovações externas, assumiu-se uma postura de “plasticidade cultural”, unindo a seletividade relativa aos elementos oriundos do influxo externo com a inventividade na ressignificação de valores resistentes da cultura interna.

Para a especificidade da análise literária, o uruguaio propõe o conceito de “transculturação narrativa”, apontando para isso a necessidade de algumas correções em relação à proposta original de Ortiz. A principal delas diz respeito à revisão do modelo dialético da transculturação proposta por Ortiz em três momentos (deculturação, inculturação e neoculturação) para um processo mais complexo que envolve perdas, redescobrimentos, seleções e incorporações que ocorrem concomitantemente no encontro cultural. Além disso, projeta que este fenômeno seja analisado em três níveis no objeto literário: a língua, as estruturas literárias e a cosmovisão.

A partir da obra de Rama o conceito ganhou novo fôlego e recebeu acolhida nos estudos culturais e pós-coloniais como forma de pensar a formação heterogênea das culturas latino-americanas e o lugar de enunciação dos produtores culturais daí advindos. Cornejo Polar, em artigo de 1994, vê na transculturação “una base epistemológica razonable al concepto (que considero fuertemente intuitivo) de mestizaje” (1994; p. 368). Ainda hoje o conceito de transculturação é revisitado por diversos autores, como Mary Louise Pratt, George Yúdice, Silvia Spitta, Román de La Campa e Mabel Moraña, para citar alguns. Alberto Moreiras, por exemplo, afirma terminalmente que “no hay cultura latino-americana sin transculturación” e que “La historia de la transculturación latinoamericana es la historia de la cultura latinoamericana” (2001; p.129), o que demonstra a relevância deste fenômeno para a compreensão do subcontinente latino-americano.