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2 O PAPEL INSTITUCIONAL DO PODER JUDICIÁRIO, AS REFORMAS

2.4 A reforma ampliativa dos poderes do relator

2.4.2 A ampliação dos poderes do relator

Conforme historiado acima, o século XX redesenhou a função institucional

do Poder Judiciário. No âmbito da jurisdição cível, passou a ser seu papel a

prestação de tutela jurisdicional capaz de promover efetivo acesso à justiça.

Na seara dos julgamentos recursais, um dos ecos dessa nova concepção

foi a busca por técnicas de abreviação do trâmite recursal, no objetivo de se mitigar

a duração excessiva do processo. De fato, segundo o trinômio proposto por

Dinamarco (2009), a tempestividade da tutela ministrada mediante o processo é

elemento fundamental do acesso à justiça.

Conforme constatado na Exposição de Motivos n. 003-MJ/CC-PR, de 12

de janeiro de 1998, referente ao projeto de lei n. 4.070/98 (do qual resultou a Lei

9.756/1998), a situação dos tribunais superiores na última década do século XX era

de um estoque acumulado de recursos e incidentes pendentes de julgamento, para

muito além da capacidade material de julgamento. Ilustrativamente, assim são

descritas naquele documento as situações do Supremo Tribunal Federal (STF) e do

Superior Tribunal de Justiça (STJ):

O Supremo Tribunal Federal, no ano de 1997, julgou 40.815 processos, o que representa uma média de 4.000 processos apreciados por cada um de seus ministros. No entanto, tal esforço, que superou todas as marcas anteriores (já que em 1996 haviam sido julgados 31.662 processos), não conseguiu reduzir significativamente o estoque acumulado de recursos pendentes de julgamento, uma vez que a Suprema Corte findou o ano com um acervo de 96.875 processos (em 1996 entraram 24.947 e em 1997, 35.077).

A situação do Superior Tribunal de Justiça não é diferente. Dos 3.711 processos julgados no ano de 1989, quando de sua instalação, chegou, no ano de 1997 (até o mês de novembro) à cifra recorde de 94.140 processos julgados (quase alcançando os 100.000 até o final de dezembro). No entanto, já começa o ano de 1998 com um estoque superior a 40.000 processos (BRASIL, 1998a).

Outra constatação realizada à época foi a de que grande parte dos

recursos que abarrotavam as cortes superiores diziam respeito a matérias sobre as

quais aquelas já haviam firmado jurisprudência, sumulada ou não.

Raciocinou-se, portanto, que no tocante a tais matérias seria

desnecessário submeter o julgamento recursal ao colegiado, que já firmara

posicionamento a respeito. Seria exigir que esse colegiado se posicionasse,

repetidamente, acerca dos mesmos temas.

Diante da dificuldade material, em casos assim, a praxe das cortes

superiores era a de julgamento em conjunto dos processos, aos quais o relator dava

uma mesma decisão, de acordo com o entendimento jurisprudencial, obtendo a

chancela de seus pares do colegiado.

Como estes pares não tinham acesso ao relatório ou aos autos de cada

processo julgado, confiando no posicionamento do relator, o cenário comparava-se a

um verdadeiro julgamento monocrático por parte deste, apenas referendado pelo

colegiado.

Da mesma Exposição de Motivos colhe-se essa constatação:

Nesse sentido, as alterações e acréscimos propostos no presente projeto de lei em relação ao CPC, CLT e Lei nº 8.038/90 se fazem necessárias para desafogar as pautas de julgamento dos tribunais superiores – Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Superior do Trabalho –, em que a avalanche de recursos sobre matérias já sumuladas ou pacificadas tem desafiado a capacidade de julgamento colegiado nas sessões que são precisas para apreciar o elevado número de recursos sobre matérias idênticas.

A praxe que as Cortes Superiores têm adotado é a do julgamento em conjunto de tais matérias, declinando-se apenas o número dos processos,

para os quais o relator dá a mesma decisão, com o referendum do colegiado, sem que este tenha ouvido relatório circunstanciado ou discutido o processo. Assim, na prática, as decisões nesses processos já têm sido adotadas de forma monocrática, baseadas na confiança que o colegiado atribui ao relator no enquadramento da matéria como pacificada. (BRASIL, 1998a)

Como se vê, o julgamento colegiado, nessas hipóteses, foi visto como

desnecessário, delongando o trâmite perante os tribunais. A solução encontrada,

pois, foi a reforma legislativa no intuito de alargarem-se os poderes do relator.

Segundo Guimarães (2013, p. 139):

Os poderes do relator, em se tratando de recursos cíveis, sofreram transformações importantes durante o século XX, mais precisamente no seu final. Tais transformações potencializaram a função do relator de um recurso nos tribunais. Houve o que se chama de fracionamento ou delegação da função de julgar o recurso.

Conforme elenca Franzé (2008, p. 176), os poderes do relator, na

redação originária do Código de Processo Civil de 1973, restringiam-se a elaborar o

relatório, proferir o primeiro voto e redigir o acórdão, acaso seu posicionamento

fosse vencedor. O referido autor narra que “Essa limitação das atividades do relator

implicava

uma

das

causas

determinantes

do

notório

e

angustiante

congestionamento do Poder Judiciário” (FRANZÉ, 2008, p. 176).

No entanto, embrionariamente, desde o Código de Processo Civil de

1939, havia previsão de apreciação monocrática de incidentes que não dependiam

de acórdão, cabendo também ao relator executar as diligências necessárias para o

julgamento (MACEDO; VIAFORE, 2015, p. 33).

Posteriormente, o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal em

vigor a partir de 15 de outubro de 1970, passou a prever, em seu art. 21, § 1º,

competência do relator para “arquivar ou negar seguimento a pedido ou recurso

manifestamente intempestivo, incabível ou improcedente e, ainda, quando contrariar

a jurisprudência predominante do Tribunal ou for evidente a sua incompetência”

(BRASIL, 2014e).

O Código de Processo Civil de 1973 trazia a regra do julgamento recursal

monocrático, fazendo-o, no entanto, de modo restrito ao agravo de instrumento, sem

extensão a outros recursos. Ao relator, monocraticamente, era dada a possibilidade

de baixa dos autos em diligência para a complementação do instrumento ou, ainda,

o indeferimento liminar, com exame de mérito (MACEDO; VIAFORE, 2015, p. 36).

Pode-se afirmar, no entanto, que o diploma precursor das reformas

ampliativas dos poderes dos relatores foi a chamada Lei de Recursos (Lei 8.038/90),

regulamentando o trâmite de recursos e de ações de competência originária perante

os tribunais superiores.

Por força do art. 38 desse diploma legal, o relator adquiriu poderes para

negar seguimento a pedido ou recurso, observados determinados requisitos. Eis o

teor do referido dispositivo:

Art. 38 - O Relator, no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça, decidirá o pedido ou o recurso que haja perdido seu objeto, bem como negará seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível ou, improcedente ou ainda, que contrariar, nas questões predominantemente de direito, Súmula do respectivo Tribunal (BRASIL, 1990).

Posteriormente, a Lei 9.139/95 alterou a redação do art. 557 do CPC,

permitindo ao relator negar seguimento a recurso manifestamente inadmissível,

improcedente, prejudicado ou contrário à sumula do respectivo tribunal ou de

tribunal superior. O art. 557, portanto, deixou de regular apenas o agravo, passando

a ser aplicado também à apelação, sem prejuízo das disposições da Lei 8.950/90.

Assim ficou conformado o dispositivo:

Art. 557 - O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou contrário à súmula do respectivo tribunal ou tribunal superior.

Parágrafo único - Da decisão denegatória caberá agravo, no prazo de 5 (cinco) dias, ao órgão competente para o julgamento do recurso. Interposto o agravo a que se refere este parágrafo, o relator pedirá dia (BRASIL, 1995).

Segundo Macedo e Viafore (2015, p. 37-38), a redação dada ao

dispositivo pela Lei 9.139/95

[...] abeberou-se diretamente do conteúdo do artigo 38 da Lei nº 8.038/90, regulando, tal qual seu modelo, a hipótese da perda de objeto do recurso, na medida em que prevê a negativa de seguimento por prejudicado o recurso, de sua inadmissibilidade em sede de conhecimento, abarcando as hipóteses da intempestividade (que agora podia ser contemplada, a uma porque o artigo passou a se referir não somente ao agravo, mas aos recursos de forma genérica, a duas porque a antiga redação do artigo 529 não mais se encontrava em vigor, face à nova formatação do agravo, cuja interposição passou a ser diretamente perante o tribunal, revogada que foi aquela disposição expressa e tópica de penalização do abuso de defesa em sede recursal, com interposição manifestamente intempestiva do agravo) e

do seu não cabimento por outras causas, a improcedência manifesta e a contrariedade à súmula do respectivo tribunal ou de tribunal superior.

Em seguida, a Lei 9.756/98, resultante do supracitado Projeto de Lei

4.070/98, alterou uma vez mais o art. 557 do CPC, procurando dotar o trâmite

recursal de maior celeridade, assim outorgando ao relator poderes para, sob

determinadas condições, inadmitir, prover ou desprover recurso monocraticamente.

A redação do referido dispositivo passou a ser a seguinte:

Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.

§ 1º-A Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso.

§ 1º Da decisão caberá agravo, no prazo de cinco dias, ao órgão competente para o julgamento do recurso, e, se não houver retratação, o relator apresentará o processo em mesa, proferindo voto; provido o agravo, o recurso terá seguimento.

§ 2º Quando manifestamente inadmissível ou infundado o agravo, o tribunal condenará o agravante a pagar ao agravado multa entre um e dez por cento do valor corrigido da causa, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito do respectivo valor. (BRASIL, 1998b)

Assim, se antes se permitia ao relator apenas julgar a admissibilidade dos

recursos, e, após a primeira reforma do art. 557, desprovê-los, a Lei 9.756/98

conferiu ao julgador singular amplos poderes para, inclusive, prover recurso, sem

submissão da matéria ao exame colegiado, naturalmente mais demorado. Enfim,

tornou-se possível ao relator proceder ao julgamento completo do recurso (com

todas as implicações possíveis, de inadmissão, provimento e desprovimento),

observadas apenas as hipóteses do art. 557 e parágrafos (confronto do recurso ou

da decisão recorrida com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo

tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, manifesta

inadmissibilidade, improcedência ou caráter prejudicado do recurso).

O objetivo de aprimoramento da presteza jurisdicional que com tal

reforma legislativa se perseguiu acha-se revelado na seguinte passagem da

supracitada Exposição de Motivos n. 003-MJ/CC-PR, de 12 de janeiro de 1998,

referente ao Projeto de Lei 4.070/98:

A vantagem da alteração legal seria a de racionalizar o funcionamento dos Tribunais Superiores, desafogando as sessões de julgamento, uma vez que,

muitas vezes, o processo já teria condições de ser decidido, mas fica aguardando pauta para julgamento. Haveria, portanto, sensíveis vantagens para o jurisdicionado, pela maior presteza na prestação jurisdicional. (BRASIL, 1998a)

O Superior Tribunal de Justiça também apreendeu essa finalidade

essencial do julgamento monocrático dos recursos, ao manifestar-se no sentido de

que:

[...] O “novo” art. 557 do CPC tem como escopo desobstruir as pautas dos tribunais, a fim de que as ações e os recursos que realmente precisam ser julgados por Órgão Colegiado possam ser apreciados o quanto antes possível. Por essa razão, os recursos intempestivos, incabíveis, desertos e contrários à jurisprudência consolidada no tribunal de segundo ou nos tribunais superiores deverão ser julgados imediatamente pelo próprio relator, através de decisão singular, acarretando o tão desejado esvaziamento das pautas. Prestigiou-se, portanto, o princípio da economia processual e o princípio da celeridade processual, que norteiam o direito processual moderno (BRASIL, 1998c)

Dinamarco (2009, p. 119), por sua vez, destaca a referida reforma dentre

outras voltadas ao incremento da agilidade processual:

Para a maior agilidade do processo em segundo grau de jurisdição, aumentaram os poderes do relator nos agravos, limitaram a admissibilidade dos embargos infringentes, trouxeram nova disciplina para a interposição do recurso extraordinário ou do especial contra acórdão que contenha capítulo ainda sujeito àqueles embargos etc.

Permanecem atuais os reclames por celeridade e produtividade do Poder

Judiciário, em grande monta fomentados institucionalmente pelo Conselho Nacional

de Justiça – com críticas, no entanto, por parte da doutrina, no sentido de que essa

exigência é capaz de trazer prejuízos à qualidade das decisões judiciais.

Outra interessante finalidade perseguida foi a valorização da

jurisprudência consolidada dos tribunais, já que o critério fundamental para decidir

quais feitos poderiam ser apreciados monocraticamente pelo relator foi o da

existência de entendimento pacificado nos tribunais sobre as matérias neles

versadas (e a consonância ou não do recurso ou da decisão recorrida com tais

entendimentos). Especialmente nesses casos, conforme se colhe da exposição de

motivos acima referida, seria desnecessário o julgamento colegiado (que aliás, na

prática, ocorria como que de forma monocrática, com o julgamento em conjunto de

processos e simples chancela pelo colegiado da decisão do relator).

Assim, observa Madeira (2011, p. 567), sobre o tema em questão, que “O

referido artigo traz uma certa aproximação entre o sistema brasileiro (civil law) com o

sistema americano (common law) ao atribuir grande importância para os

precedentes jurisprudenciais”. Dinamarco (1999, p. 130), afirma, sobre o tema, ser

“perceptível, diante dessa sucinta memória de fatos da história recente do direito

processual positivo do país, que o crescimento dos poderes do relator caminha pari

passu com o incremento e valorização dos precedentes jurisprudenciais”.

Em razão desse aspecto da técnica de julgamento monocrático, o seu

estudo mostra-se relevante no momento de transição para o novo Código de

Processo Civil, que confere especial relevância ao trabalho com precedentes como

elementos de fundamentação das decisões, trabalho esse cujo estado atual pode

ser bem observado nas decisões de julgamentos monocráticos de recursos cíveis.

Nesse contexto de largos poderes conferidos ao relator, passou-se a

admitir também que este possa conceder a tutela recursal antecipadamente. Nesse

sentido, Nery Junior (2004, p. 491) leciona que

[...] o relator, enquanto juiz preparador do recurso, cujos poderes foram consideravelmente aumentados pela Lei 9756/98, que alterou o CPC 557, pode conceder a tutela recursal antecipadamente, em ato sujeito a confirmação pelo órgão colegiado competente para o julgamento do recurso.

É certo que o CPC 557, com a redação dada pela Lei 9756/98, dá poderes ao relator do recurso, nada mencionando sobre as ações de competência originária dos tribunais. No entanto, decorre do sistema que o relator, também nas ações de competência originária, exerce a função de juiz preparador, cabendo-lhe examinar requerimentos, deferir provas, fixar prazos judiciais etc. É consequência dessa função preparadora o poder do relator de conceder ou de negar medidas urgentes, ad referendum do colegiado.

A necessidade de novos avanços na previsão normativa da técnica de

julgamento monocrático ainda se faz sentir, tanto que a matéria recebeu tratamento

renovado no novo CPC. Essa necessidade de permanente revisão do texto legal é

consequência do aumento dos litígios tramitando em sede recursal, o que, em ampla

medida, decorre das ações de massa e dos recursos repetitivos, estes em

quantidade crescente.

Os poderes outorgados ao relator, notadamente em decorrência da atual

redação do art. 557 do Código de Processo Civil, e cujas origens históricas já foram

traçadas neste tópico, serão objeto de específico estudo no presente trabalho no

tocante às suas justificações teóricas, aos seus delineamentos legais e à forma de

sua aplicação no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, avaliando-

se as repercussões da utilização de referidos poderes no desempenho da função

institucional do Poder Judiciário maranhense, qual seja, a entrega de uma prestação

jurisdicional efetiva, com respeito às garantias do devido processo legal.

Sobre a justificação da ampliação dos poderes do relator recai o próximo

item.

2.4.3 Justificativa da ampliação dos poderes do relator: a constitucionalidade do art.