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Ensina-se tudo nos Conservatórios, salvo, com a seriedade e a profundidade necessárias, o que me parece

C AMPO FUNCIONAL

Nos Prolegômenos, Hjelmslev define campo funcional como uma “função com todos os seus possíveis funtivos”. Mas é no Résumé, nos intervalos entre as definições 97 e 100,97

que essa definição “descarnada” revela seu potencial para descrever estruturas hierárquicas como as que encontramos numa melodia.

Podemos ter uma concepção mais concreta de um campo funcional imaginando uma certa extensão sintagmática estabelecida por uma função. Chamaremos essa extensão que circunscreve o limite de aplicabilidade da função de domínio da função. O campo é estabelecido por uma coesão que, na maioria dos casos, é uma seleção entre um funtivo o pressuposto e um funtivo pressuponente98.

Em Outline of the Danish expression system with special reference to the stød 99, Hjelmslev faz

uso do conceito de campo funcional para descrever a sílaba enquanto unidade funcional. Se do ponto de vista da substância, a sílaba é uma seqüência do tipo CV, CVC, CCV etc,

95 PORTO, M.-R., o.p. , op.cit., p. 16-17.

96 Cf. Résumé, p. 41 e ss. e HJELMSLEV, L. (1973) “Outline of the danish expression system with

special reference to the stød”, p. 253 e ss.

97 Résumé, p. 40-42.

98 “No procedimento de análise pode-se mesmo fixar um estágio em que as seleções entre as

categorias se encontram pela primeira vez, e a experiência mostra que esse estágio coincide tão freqüentemente com aquilo que é considerado como começo da análise propriamente semiótica, que o aparecimento da seleção entre categorias pode ser utilizado como critério”. HJELMSLEV, L. (1978)

A estratificação da linguagem, p. 168-169.

99 HJELMSLEV, L. (1973) “Outline of the Danish expression system with special reference to the

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do ponto de vista da forma, a sílaba é abstratamente definida pelos relatos que a compõem e pela relação que os consolida.

A sílaba é uma “cadeia da expressão que compreende apenas um único acento”100.

Toda sílaba tem uma extensão sintagmática ou domínio. Essa extensão é determinada pela função silábica, entre um funtivo pressuposto (um fonema central, quase sempre a vogal) e um ou vários funtivos pressuponentes (um fonema periférico, quase sempre a consoante). Portanto, a extensão da sílaba é limitada pela “força de coesão”101 da vogal,

que atua como um “centro de forças” que controla suas adjacências102.

Uma célula rítmica pode ser descrita nos mesmos moldes. A célula constitui-se de um campo de valores ligados entre si por uma relação de pressuposição. O valor pressuposto (o núcleo da célula) e os valores pressuponentes (as adjacências do núcleo). O campo funcional da célula é composto por relatos (que constituem sua extensão) e pela relação que os consolida (a regra de construção do núcleo) e que hierarquiza esses relatos. Essa célula rítmica manifesta-se como uma extensão sintagmática mínima onde ocorrem contrastes entre cronemas e dinamemas. Para que possa desempenhar a função de célula – para que tenha o sentido musical de uma célula –, um sintagma melódico deve introduzir em algum ponto da cadeia de cronemas uma transição de sonoridade (– → +), (+ → –) ou (– → + → –), mas nunca (+ → – → +). Essas transições podem se apresentar como Ca, Cb ou Cc, mas não como Cd:

100 HJELMSLEV, L. (1985) “La syllabe em tant qu’unité structurale”, p. 165.

101“...o segredo do mecanismo gramatical reside no jogo combinado entre categorias morfológicas

contraindo relações ‘sintáxicas’ (por exemplo preposições e casos), e unidades sintagmáticas contraindo correlações e formando categorias; conseqüentemente, os morfemas devem ser concebidos como os elementos fundamentais que por sua força de relação estabelecem a proposição”(grifos nossos). HJELMSLEV, L. (1991) “Por uma semântica estrutural”, p.112.

102 Esta definição de sílaba vai ao encontro das concepções da fonologia prosódica, de extração

chomskiana: “em qualquer sílaba, o elemento mais sonoro constitui o núcleo e é precedido/seguido por elementos de grau de sonoridade crescente/decrescente”. Cf. BISOL, L. [Org.] (2001) Introdução

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Essa transição que circunscreve a célula cria o efeito de sentido de uma transformação impulso → repouso. Em outras palavras, uma célula tem uma extensão determinada na qual se insere uma descontinuidade característica, que os musicólogos têm designado com diferentes termos (élan/repos, arsis/tesis, alzar/dar, tensão/distensão). Qualquer que seja o termo que escolhamos para designar esse recorte, trata-se de uma

transformação de estado que a célula circunscreve no devir melódico.

Podemos retomar agora a questão da cadeia estocástica de notas: por que não reconhecemos uma melodia na seqüência de notas marteladas ao piano pela criança de dois anos? Uma das razões é a de que a criança não constrói células rítmicas, mas uma seqüência aleatória em que cada nota musical é um evento igual a qualquer outro antecedente ou subseqüente. Em suma, as notas não são hierarquizadas e, portanto, todas elas valem a mesma coisa.

CELULA NOTA CRONEMA DINAMEMA TONEMA(não-pertinente) χ δ τ Ca σ σ + + Ø Ø Cb σ σ + + Ø Ø Cc σ σ + + Ø Ø σ Ø *Cd σ σ Ø + + Ø σ + + Ø CELULA NOTA CRONEMA DINAMEMA TONEMA(não-pertinente) χ δ τ

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Numa seqüência estocástica cada nota é independente do próprio entorno e, por essa razão, é imprevisível. Cada nova nota da seqüência “apaga” a anterior (pois não depende dela) e não prevê a subseqüente (idem). A única qualidade que resiste é o devir temporal: uma nota está entre a nota anterior e a posterior, nada mais. Em suma, uma seqüência qualquer de notas não constitui uma célula porque é destituída de uma extensão identificável e de uma função que hierarquize seus componentes.

Numa melodia, ao contrário, temos uma seqüência de grupos de notas enfeixadas pela força de uma relação de dependência entre as grandezas que constituem o próprio agrupamento. No caso da célula rítmica, a força da relação vem do contraste inerente à categoria dos cronemas e dos dinamemas.

Numa célula, os traços [+longo]/[+forte] do núcleo (pressuposto) contrastam com os traços [-longo]/[-forte] das bordas (pressuponente) e, pela mesma razão, cria um padrão de previsibilidade. Numa célula, o valor de cada nota depende do “antes” e do “depois”, donde o efeito de uma demarcação no devir melódico que fixa as balizas que instauram um começo, meio e fim. Ao instaurar um centro de referência no tempo, o grupo presentifica o “antes” e o “depois”. Essa é a essência do ritmo.

“No ritmo, o sucessivo tem algumas propriedades do simultâneo.[...] Entre antecedentes e conseqüentes existem liames como se todos os termos

fossem simultâneos e atuais, embora aparecendo apenas sucessivamente.

Todos os termos do sucessivo corresponderão a uma simultaneidade. A própria simultaneidade será redutível a um signo”.103