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Ensina-se tudo nos Conservatórios, salvo, com a seriedade e a profundidade necessárias, o que me parece

V ARIANTES NO ESQUEMA RÍTMICO

O conceito de campo funcional é útil não apenas porque nos permite descrever a estrutura hierárquica das células, mas também porque dá conta de suas variáveis. É da maior importância insistir sobre esse fato. Na verdade, o argumento que temos desenvolvido até aqui pode sugerir que uma melodia seja sempre construída em torno de um único grupo rítmico invariante. Nada está mais longe dos fatos.

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É certo que existem inúmeros exemplos de melodias “involutivas”104 que se

servem de uma única célula rítmica ao longo de toda sua extensão. A esse grupo pertencem não apenas melodias infantis simples como “Três Cavaleiros”, mas também obras de alta complexidade como o tema da sinfonia “Coral”, de Beethoven [faixa 12].

ou o tema da abertura de Carmen, de Bizet [faixa 13], apenas para citar dois exemplos muito conhecidos.

104 Emprestamos a expressão de TATIT, L. (1994) Semiótica da canção: melodia e letra, p. 75.

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Assim como existem melodias “involutivas”, nas quais predomina uma certa homogeneidade rítmica, existem aquelas, talvez até mais numerosas, nas quais os grupos se comportam de maneira aparentemente errática e desconexa.

Essas melodias mostram, de um lado, que ao mobilizar grandezas elementares (os traços ± longo e ± forte), a célula é extremamente maleável e moldável. De outra parte, é preciso lembrar que o ritmo não é o único elemento responsável pela construção do sentido numa melodia. Outros elementos existem e o sentido geral resulta do jogo combinado não apenas de cronemas, dinamemas e tonemas, mas também do timbre, da harmonia, da textura etc.

Os fatores responsáveis pela variedade rítmica podem ser intrínsecos ou extrínsecos à melodia. O primeiro caso reflete a necessidade inerente ao discurso de introduzir informação nova. Como lembra Schoenberg, se a “...inteligibilidade musical parece ser algo impossível de se obter sem o recurso da repetição[...]a repetição sem variação pode facilmente engendrar monotonia.”105. A variação pode também ser fruto de

um fator extrínseco à melodia, como a interferência da fala na melodia de uma canção.

105 SCHOENBERG, A., op.cit., p.47.

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Um exame detalhado dessas possibilidades, exame este que precisa ser feito, exigiria no entanto uma outra tese. Interessa-nos aqui apenas apontar o fato e salientar sua importância através de uns poucos exemplos.

Comecemos pelos fatores intrínsecos. O caso mais simples ocorre em melodias nas quais observamos a simples variação de uma mesma estrutura de cronemas e dinamemas. A melodia de “Três cavaleiros” é um bom exemplo de uma estrutura rítmica recorrente muito pouco variável, limitada, como vimos, a duas “desinências” que adaptam a linha melódica às terminações oxítonas ou paroxítonas do texto.

Na melodia da “Marcha Fúnebre” da sonata em si bemol menor, Chopin introduz uma variação no tecido melódico pela inserção de novos valores na terceira repetição da célula, quebrando dessa maneira a monotonia do trecho (dominado pelo lá insistente) [faixa 14].

marcha fúnebre, sonata em si bemol menor, Chopin

Na melodia de “Carinhoso” ocorre algo diferente. As células apresentam duas variantes, entre as quais a segunda é uma diminuição106 da primeira. A variação decorre não

tanto da diferença entre os dois grupos, mas do encurtamento das notas, criando o efeito de desaceleração em (a) e aceleração em (b) [faixa 15].

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Efeito inverso nós encontramos no segundo tema do andante moderato da sinfonia n° 4 de Brahms [faixa 16]. Embora seja impraticável reproduzir aqui a partitura de todo o trecho, é fácil perceber na figura abaixo que, pela aumentação107 dos valores, Brahms cria

um efeito de desaceleração. Se há nesse trecho toda uma mudança de textura, tonalidade e mesmo de andamento, a continuidade e a inteligibilidade entre as partes é assegurada pela célula que, como se vê, é fundamentalmente a mesma.

Outra maneira de introduzir variedades num esquema de células rítmicas é a simples justaposição de uma nova célula distinta. A melodia de “Campeão dos campeões” [faixa 17] tem dois grupos rítmicos distintos, (1,3,5 e 7) e (2,4,6 e 8) como se vê na figura a seguir.

107 Idem, Ibidem.

e os meus o lhos fi cam so rrin do e pe las ru as vão te se guin do e mês moa ssim fo ges de mim

meu co ra cão não sei por que ba te fé liz quan do te vê

“Carinhoso”, Pixinguinha

(a)

(b)

andante moderato da sinfonia n°4 (compassos 36-41) (Brahms)

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Esses poucos exemplos das muitas maneiras de introduzir variações no esquema rítmico de uma melodia servem apenas para ilustrar o que chamamos de fatores intrínsecos de variação. A diminuição, a aumentação, a elisão, a justaposição são, todos eles, processos intrinsecamente melódicos, nos quais não há a participação de fatores estranhos à melodia, ou seja, fatores que não dependam das relações entre cronemas, dinamemas e tonemas. Acreditamos que uma investigação estrutural sobre as muitas maneiras de combinar células poderia tomar como ponto de partida os fenômenos de modificação fonética. De fato, uma primeira observação mostra um certo paralelismo entre expressão verbal e musical.

Mas existe também um fator extrínseco que “desestabiliza” o padrão reiterativo das células: a fala. Os trabalhos de Tatit apontam exatamente para a possibilidade de que toda melodia cantada tenha sua origem na gestualidade da fala108. Na canção popular, em

especial, há uma espontaneidade enunciativa que leva o cancionista a submeter os contornos melódicos e a estrutura das células àquilo que ele quer e precisa dizer. Essa pressão extrínseca à ordem melódica stricto sensu acarreta uma aparente desorganização da estrutura das células. Toda canção popular seria, assim, uma tentativa de encontrar um ponto de equilíbrio entre o lógos e mélos.

No próximo capítulo, dedicado integralmente à análise de uma canção de Tom Jobim, veremos exemplos detalhados dessa “disputa” entre princípios prosódicos e melódicos pela organização da melodia da canção.

108 TATIT, L. (1996) O cancionista, p. 11-12.

Sal veo co rin t hians o cam pe ão dos cam pe ões e ter na men te den tro dos no ssos co ra ções

Sal veo co rin thians de tra di ções e gló rias mil tu és or gu lho dos des por tis tas do Bra sil

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