• Nenhum resultado encontrado

Portanto, parece frutífero e necessário estabelecer num novo espírito um ponto de vista comum a um grande número de ciências que vão da história e

da ciência literária, artística e musical à logística e à matemática, a fim de

que, a partir desse ponto de vista comum, estas se concentrem ao redor de

uma problemática definida em termos lingüísticos. Cada uma à sua

maneira, estas ciências poderiam contribuir para a ciência geral da semiótica

ao procurar especificar até que ponto e de que modo seus diferentes objetos

são suscetíveis de serem analisados em conformidade com as exigências da

teoria da linguagem. Desse modo, provavelmente uma nova luz poderia ser

projetada sobre essas disciplinas e provocar um exame crítico de seus

princípios. A colaboração entre elas, frutífera sob todos os aspectos, poderia

criar assim uma enciclopédia geral das estruturas de signos.

ENUNCIAÇÃO 177

O PROJETO SEMIÓTICO

Quando Saussure e Hjelmslev lançaram as bases epistemológicas da semiótica européia, na primeira metade do século XX, o projeto semiótico ambicionava o status de uma ciência unificada da cultura, assim como a física de Galileu e Newton havia sido erigida, trezentos anos antes, como a ciência unificada da natureza.

Sabemos que foi somente após um longo percurso, repleto de idas e vindas, que os conceitos fundamentais das ciências naturais, assim como algumas de suas conseqüências paradoxais197, impuseram-se à comunidade científica. Do ponto de vista epistemológico,

o passo mais importante que marcou a revolução científica foi, a um tempo, a negação do dado intuitivo imediato e a afirmação da coerência interna da descrição. Para o físico pouco importa que não tenhamos uma representação intuitivamente clara dos conceitos científicos. O que de fato conta, em última análise, é que esses conceitos lhe permitam montar uma equação coerente para a descrição racional do “sistema do mundo”.

Sob esse aspecto, o projeto semiótico hjelmsleviano revive, trezentos anos depois, o desafio de construir uma descrição unificada dos fatos da cultura. Esse projeto já está latente nos trabalhos de gramática comparada do século XIX que revelaram a unidade do mais importante dos objetos culturais, a língua. A semiótica nasce com o propósito de construir uma enciclopédia universal dos signos. Ela não é apenas mais uma ciência. Ela pretende ser um olhar privilegiado sobre todo o campo da cultura humana.

“Uma teoria deve ser geral, no sentido em que ela deve pôr à nossa disposição um instrumental que nos permita reconhecer não apenas um dado objeto ou objetos já submetidos à nossa experiência como também todos os objetos possíveis da mesma natureza suposta. Armamo-nos com a teoria para nos depararmos não apenas com todas as eventualidades já conhecidas, mas com qualquer eventualidade.”198

197

OMNÈS, R. (1996) Filosofia da ciência contemporânea, p. 54 e ss.

198

ENUNCIAÇÃO 178

Essa generalidade se sustenta sobre o que veio a ser chamado de princípio de analogia

estrutural199. Consoante à máxima saussuriana de que o ponto de vista cria o objeto, esse

princípio afirma que é possível criar um ponto de vista segundo o qual todos os objetos do universo da cultura seriam considerados como textos e que, nessa condição, e apenas nela, esses objetos seriam estruturalmente análogos. Como corolário desse ponto de vista, a elaboração de um procedimento descritivo para um texto equivaleria a estabelecer um procedimento generalizável, a princípio, para qualquer texto. Se uma foto, um poema, uma melodia são textos, isso significa que eles participariam de uma natureza comum, a das formas semióticas.

É evidente que este viés vai de encontro a nossa intuição do que seja um texto. Uma metalinguagem que se proponha a descrever esse texto abstrato tem que ser a tal ponto isenta das determinações particulares dos objetos que acaba por perder aquela transparência enganosa das descrições mais intuitivas.

Tal questão não está restrita aos limites da semiótica. Numa edição recente, o prestigiado periódico Studia Linguistica200 dedicou um número integralmente à questão da

interface entre fonologia e sintaxe. Surpreendentemente, o organizador do volume situa entre os “neo-hjelmslevianos” lingüistas como John Anderson e Harry van der Hulst, que trabalham declaradamente dentro do paradigma chomskiano. Tudo se passa como se a lingüística estivesse descobrindo recentemente que a sintaxe (plano do conteúdo) e a fonologia (plano da expressão) podem se iluminar mutuamente, fato este insistentemente lembrado por Hjelmslev. Em outra palavras, parece que uma parte dos lingüistas está descobrindo, dentro de seus próprios domínios, provas do princípio da analogia estrutural.

No limite, o princípio da analogia estrutural é a condição sine qua non não apenas para uma teoria unificada da língua, mas de toda e qualquer semiótica. Ou esse princípio se verifica em qualquer semiótica, ou, caso contrário, teremos que construir para cada linguagem (cinema, música, fotografia, dança etc) um novo conjunto conceitual descritivo.

199HJELMSLEV, L. (1991) “O verbo e a frase nominal”, p. 211-212. 200

Studia Linguistica 58(3) 2004, Oxford/Malden: Blackwell Publishing Ltd. Cf. também KAGER, R.,

van der HULST, H.G. and ZONNEVELD, X. (Eds.) (1999). The prosody - morphology interface; STAUN, J. (1996) “On structural analogy”, p. 193-205; ANDERSON, J. M. “Structural analogy and universal grammar” e van der HULST, H. “On the parallel organization of linguistic components” (a sair).

ENUNCIAÇÃO 179

Foi dentro desse horizonte epistemológico e assumindo todos os riscos a ele inerentes que elaboramos este trabalho. Postular a existência de quase-sílabas, conotações e dêiticos musicais, enfim, sustentar que a música é também uma espécie de língua, tudo isso é contrário à intuição. Mas é exatamente esse dado contra-intuitivo que nos dá a liberdade para tentar forjar uma descrição coerente da linha melódica e dos instrumentos que a constroem.

Os conceitos especificamente musicais que introduzimos nesta tese (quase-sílaba, cronema, tonema e dinamema) são apenas variantes que encontram uma tradução precisa dentro do esquematismo do Résumé. Além disso, procuramos aproveitar noções consagradas como campo funcional, denotação, conotação, caracterizante, constituinte. Ao fazê-lo, não pretendemos reduzir a música ao verbo mas, ao contrário, mostrar que esses conceitos são muito mais gerais do que nossa formação logocêntrica nos faz crer.

Desse modo, nosso propósito não foi descobrir qualquer fato novo que já não fosse conhecido sobre a melodia tonal. Mais modestamente, procuramos apresentar algumas hipóteses que poderiam nos habilitar, no futuro, a renomear termos envelhecidos e re-conceituar noções obscuras. Afinal, todos sabemos intuitivamente o que é uma melodia, e não há pesquisa que possa modificar substancialmente esse saber intuitivo. O que está a nosso alcance é desfazer falsas diferenças e nuançar pretensas semelhanças por meio de uma revisão conseqüente da metalinguagem.

Portanto, ao dizer que a expressão verbal e musical são isomorfas (ou estruturalmente análogas) apenas salientamos o fato não negligenciável de que podemos nos servir da mesma metalinguagem para descrevê-las. Mas isso já é muito. Se a cada novo objeto tivéssemos de forjar todo um conjunto de termos metalingüísticos, uma visão de conjunto da cultura seria praticamente inatingível.

O PLANO DA EXPRESSÃO

Entre os principais desafios que se apresentam para o futuro da semiótica greimasiana, talvez o mais instigante seja o das chamadas semióticas sincréticas. Todos sabemos que essa questão tem um déficit teórico exatamente sobre o plano da expressão. Enquanto os estudos sobre o plano do conteúdo avançam a olhos vistos – há uma clara

ENUNCIAÇÃO 180

ampliação de campo se pensarmos no percurso que começa em Du Sens, passa por

Semiótica das paixões e desemboca em Tensão e significação –, o plano da expressão

permanece como a grande quaestão em aberto para a semiótica contemporânea.

A análise de textos sincréticos ainda deixa a desejar porque o que sabemos sobre a organização, estrutura e hierarquia do plano do conteúdo é infinitamente mais rico e detalhado do que aquilo que conhecemos sobre o plano da expressão. O desconhecimento que temos das leis e princípios que governam o plano da expressão faz com que a semiótica de qualquer domínio que não o verbal pareça ainda estar numa fase embrionária.

Nesse sentido a semiótica da canção ocupa um lugar à parte. Ela representa uma experiência única de tratamento de um domínio da cultura em que expressão e conteúdo recebem tratamento igualitário. No nosso entendimento, o segredo do sucesso da semiótica da canção está no fato de Tatit tirar todas as conseqüências teóricas do princípio da analogia estrutural.

No presente trabalho pretendemos seguir essa trilha aberta por Tatit. Embora já esteja firmemente estabelecido um aparato teórico para a análise de alguns aspectos da melodia, outros elementos estruturais da música como o ritmo e a harmonia ainda não receberam nem mesmo uma sondagem preliminar. Estes são domínios de onde emergem questões interessantes e para os quais voltamos nossa atenção. Nossa convicção é a de que para melhor compreender as analogias estruturais que observamos entre mélos e lógos há que se procurar estabelecer os elementos mínimos de uma sintaxe e de uma semântica globais da música, no mesmo nível de profundidade e com o mesmo poder analítico com que o faz hoje a semiótica do texto verbal.