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Ensina-se tudo nos Conservatórios, salvo, com a seriedade e a profundidade necessárias, o que me parece

P HRASE S TRUCTURE A NALYSIS

Agora que temos uma representação estrutural da célula, ainda que provisória, precisamos cotejá-la com o entendimento que a tradição musicológica tem dessa noção. O tema faz parte da chamada phrase structure analysis90 e remonta aos estudos de Koch,

ainda no século XVIII. Embora nestes mais de duzentos e cinqüenta anos de pesquisa não se tenha chegado a um consenso, nem ao menos terminológico, podemos dizer que uma célula (ou ainda inciso, motivo, grupo rítmico etc) apresenta algumas características constantes: ela é uma unidade, seja do ponto de vista analítico, seja do ponto de vista sintético, que resulta de uma relação de dependência. Vejamos isto mais detalhadamente.

Do ponto de vista analítico, a célula é uma unidade, uma incisão no contínuo sonoro, o lugar de uma divisão no devir melódico:

89 Se a célula rítmica é uma unidade do plano da expressão que se reitera ao longo do texto, podemos

pensar numa isotopia do plano da expressão; mais precisamente, podemos pensar numa uma isotopia rítmica. Se, como explica Fiorin, “o que dá coerência semântica a um texto, o que faz dele uma unidade é a reiteração, a redundância, a repetição, a recorrência de traços semânticos ao longo do discurso” (FIORIN, J. L. (2000) Elementos de análise do discurso, p. 81), então, analogamente, a reiteração de grupos rítmicos seria pelo menos um dos elementos responsáveis pela unidade e pela coerência de uma melodia. A isotopia rítmica parece ser um princípio ativo em toda melodia. Mesmo em melodias figurativizadas, aparentemente livres das pressões especificamente melódicas, sempre há um componente estabilizador de base rítmica, ou seja, fundado na reiteração de formas cronêmicas. Voltaremos a este ponto ao final deste capítulo.

90BENT, I.D. (1980) “Analysis”, p. 340-388; NATTIEZ, J.J. (1984) “Melodia”, p.272-297;

GABEAUD, A. (1940) Guide practique d’analyse musicale; D’INDY, Vincent (1912) Cours de composition

musicale; BENNETT, R. (1986) Forma e estrutura na música; SCHOENBERG, A. (1996) Fundamentos da composição musical; DUNSBY, J. e WHITTALL, A. (1988) Music Analysis in Theory and Practice;

WILLEMS, E. (1954) Le rhytme musical; BRELET, G. (1949) Le Temps Musical; RIEMANN, H. (1914)

Elementos de Estética musical; BAS, J. (1913) Tratado de la forma musical; QUIRÓS, J. B. (1955) Elementos de rítmica musical.

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“Entende-se por inciso (do latim incisus) [leia-se célula] toda incisão, todo corte praticado na continuidade sonora. De modo que, a rigor, é o silêncio que determina o inciso. Sem dúvida, pode-se admitir por extensão de sentido que o inciso não se refere tanto ao silêncio quanto ao fragmento musical isolado na análise rítmica, esteja ou não este fragmento separado por silêncios do que o rodeia. Tal é o conceito mais difundido desde o século passado, e o que se seguirá nessa obra. Portanto, o inciso pode ter uma, duas ou mais notas; sua única determinação é o fato de estar isolado do entorno.”91

Desse modo, uma célula constrói-se como unidade ao demarcar um entorno. Essa demarcação é mais evidente quando contrasta som e silêncio. Esse é o caso da melodia do concerto de Beethoven que vimos há pouco (faixa 9). Mas, no fragmento a seguir, da cantata 147 de Bach, a melodia tem suas células “soldadas” umas às outras, sem solução de continuidade [faixa 10].

91 QUIRÓS, J. B., op. cit., p.77.

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Temos aqui uma única célula, com a seguinte configuração:

Se o contraste som/silêncio fosse necessário para a geração de uma célula, essa linha melódica de Bach não teria células. Se ela de fato as tem é porque a célula é também uma unidade do ponto de vista sintético: a célula é o lugar do encontro de contrastes, como prótase/apódose, impulso/repouso, tensão/distensão etc.

“O inciso [leia-se a célula] traz, pois, em si, a causa intrínseca, vital de sua unidade. Entre a Arsis inicial do inciso e a sua Thesis final, desenvolve-se uma corrente intensiva, com sua PRÓTASE, seu pólo e a sua APÓDOSE. É do pólo, como dum foco central, que partem e se repartem por todo inciso as nuanças expressivas de conjunto e de detalhe.”92

Desse modo, se partirmos da totalidade da melodia (ponto de vista analítico), a célula é uma unidade de segmentação, fundada numa configuração de cronemas e dinamemas que se reiteram ao longo do texto. Se, ao contrário, partimos das grandezas musicais primitivas (ponto de vista sintético), a célula é o lugar onde se realizam os

contrastes entre os pólos dessas categorias.

É preciso lembrar que “tensão” ou “repouso” são efeitos de sentido criados por uma configuração sintagmática das grandezas musicais primitivas no interior da célula. A célula rítmica, de fato, sintetiza tendências contrastantes e cria o efeito de uma

92 PORTO, M.-R., o.p. (1960) Canto Gregoriano: Método de Solesmes, p. 44.

CELULA NOTA CRONEMA DINAMEMA TONEMA(não-pertinente) χ δ τ C σ σ + + Ø Ø

E E E

σ Ø

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transformação tensão → distensão, impulso → repouso. Esse “ciclo” faz da célula uma unidade do organismo musical.

“...assim como a menor ‘unidade’ anatômica e funcional de todo organismo é a célula, a menor ‘unidade’ sonora e qualitativa de toda música é o ritmo elementar. Coloquei unidade entre aspas para ressaltar que ela se refere ao menor organismo complexo possível, e não a uma unidade real, numérica. Não é de estranhar, portanto, que se tenha denominado o ritmo elementar de célula rítmica”.93

Em terceiro lugar, a função que estabelece a célula é uma dependência entre um único termo pressuposto e um ou mais termos pressuponentes.

“Nada impede que um pequeno elemento, comparável a uma palavra (inciso de Lussy, grupo de Biton, unidade rítmica de Gevaert, motivo de Lavignac) constitua por si um ritmo; basta que haja neste ritmo um princípio (anacrusa), um centro de forças (crusa) e um fim (metacrusa); dois elementos podem bastar, e a anacrusa ou a metacrusa podem estar subentendidas; excepcionalmente, as duas podem estar subentendidas; não há então mais que um único elemento perceptível ao ouvido”.94

Esse “único elemento perceptível” a que se refere Willems é o termo pressuposto da célula, a grandeza que recebe os traços [+longo] e [+forte]. Este é o “centro de forças”, o “pólo” ou ainda o “foco central” da célula. Assim, uma célula é quase sempre composta de várias notas que estabelecem o contraste entre o núcleo “tônico” e seu entorno “átono”. Mais raramente, o agrupamento é composto apenas de um núcleo. A melodia do prelúdio op. 20, n° 2º de Chopin é construída em grande medida com células compostas apenas de seu núcleo[faixa 11].

93 QUIRÓS, J. B., op.cit., p.75.

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Essas células apresentam o seguinte esquema:

É a dependência que define a célula, o que permite pensar numa forma invariante que pode se manifestar em diferentes variantes.

“A forma, pois, pode variar, mas a unidade do movimento rítmico dependerá sempre da ligação orgânica existente entre as duas funções básicas – de impulso inicial e de repouso terminal – que regulamentam, ordenam o movimento. Os elementos que se intercalam nestas duas fases – inicial e final – não passam, na síntese, ou da ampliação do impulso inicial, ou da preparação para o repouso final [...] essa unidade do Ritmo, como se vê, concorda perfeitamente com diferentes formas rítmicas. E ainda mais. Justamente porque, para existir Ritmo, seja necessária essencialmente a invariabilidade de movimento básico de impulso indo para repouso é que a unidade rítmica também permite que se distingam

CELULA NOTA CRONEMA DINAMEMA TONEMA(não-pertinente) χ δ τ C (c) σ σ + + Ø Ø C (a) σ + + Ø

H

E H

C (b) σ + + Ø

Q

etc prelúdio op. 20, n° 20, em dó menor, Chopin

(a) (b)

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estas formas umas das outras. O princípio de síntese não sofre, entretanto, alteração intrínseca, pelo fato de haver variações nestas mesmas formas”.95

Podemos resumir todas essas propriedades afirmando que uma célula é uma

unidade de análise e de síntese que apresenta uma dependência unilateral entre um termo pressuposto e um termo pressuponente. Essa formulação aproxima a célula do conceito hjelmsleviano de campo funcional96.