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Análise compreensiva 108

4.3 Caminhos para a compreensão do fenômeno 104

4.3.2 Análise compreensiva 108

55 Como veremos adiante (item 4.3.2, Análise compreensiva), a elaboração de um texto de referência faz

O procedimento utilizado para a análise das narrativas baseia-se na metodologia de análise compreensiva apresentada por Szymanki (2004). Tal proposta fundamenta-se na fenomenologia existencial de Martin Heidegger, para quem “pesquisar implica ‘suportar’ a manifestação dos entes, sem enquadrá-los em concepções prévias, sejam elas teóricas ou de senso comum” (SZYMANSKI, 2004, p. 2).

Dentro desta concepção, a autora propõe alguns passos metodológicos que possibilitam ao pesquisador a apreensão do significado daquilo que ele quer compreender. Deixa claro, entretanto, que esse caminho não é algo imposto de forma rígida, mas serve de orientação ao pesquisador iniciante, que conta também com seus próprios recursos e criatividade para o estudo do fenômeno em questão. Um outro ponto importante levantado pela autora é a necessidade de consciência por parte do pesquisador, de suas próprias limitações na apreensão do fenômeno. Neste caso, inferimos que a postura de abertura e suspensão proposta pela fenomenologia implica muito mais levar em conta os “filtros” pessoais e culturais que muitas vezes impomos ao que se manifesta, do que buscar uma neutralidade impossível.

Baseando-nos na descrição do procedimento utilizado por Szymanski (2004), apresentamos de forma sucinta os diferentes momentos que procuramos percorrer para a compreensão do fenômeno. O primeiro deles consiste na transcrição da entrevista, no registro das observações e encontros ocorridos no contexto de pesquisa. Conforme relatado no item anterior, neste estudo o registro ocorreu logo após a situação vivida e foi feito com o apoio de anotações realizadas durante o contato com os participantes. Realizado o registro, o pesquisador entra em contato com esse material por meio de leitura e releitura, anotando percepções, sentimentos e sensações.

Em seguida, elabora-se o texto de referência para a análise. Esse texto consiste em uma síntese do material anterior, transformando a linguagem oral em linguagem escrita, corrigindo vícios de linguagem, erros gramaticais etc. O texto de referência pode incluir também tanto as impressões, percepções e sentimentos do pesquisador descritos no primeiro registro, como outros que possam surgir a partir de cada novo contato com o material. Como apontamos anteriormente, no caso específico deste trabalho, o texto de referência consistiu nas narrativas construídas pela pesquisadora.

O terceiro momento consiste na explicitação de significados. Após várias leituras e releituras do texto de referência, o pesquisador escreve suas observações nas margens, permitindo a elaboração de sínteses provisórias, de pequenos insights, além da visualização de falas dos participantes que se referem aos mesmos assuntos. Esse procedimento permite a seleção de unidades de significado que se mostram ao pesquisador como a primeira compreensão dos fenômenos estudados.

Selecionadas as unidades, estas são agrupadas em aglomerados significativos denominados por Szymanski de constelações. As constelações referem-se à compreensão do pesquisador a respeito daquilo que se lhe revela. Esta terminologia é utilizada em comparação às constelações celestes, que variam de lugar para lugar, conforme a localização geográfica e a cultura na qual o observador está inserido. Através dessa metáfora, Szymanski (2004) nos lembra que a compreensão do fenômeno pelo pesquisador é circunstancial, ou seja, depende daquilo que ele “pode enxergar”; depende, em última instância, do lugar que ele ocupa “nesse vasto universo de possibilidades de interpretação” (SZYMANSKI, 2004, p. 3). Esta visão relaciona-se com a noção de inserção na própria vida de Van der Leeuw (2009), referida na narrativa, ou seja, ambas partilham a ideia de que cada pesquisa é única, cada análise é única porque depende da resposta singular do pesquisador ao modo como o fenômeno o toca pessoalmente, e cuja resposta o ajudará a selecionar, dentre o material disponível, aquilo que lhe chama a atenção, que ele julga importante para a compreensão do fenômeno.

Agrupadas as constelações, realiza-se a análise final em diálogo com o referencial teórico adotado. E, por fim, concluída a pesquisa, a autora propõe a realização de uma devolutiva aos participantes. Este procedimento tem como finalidade validar a interpretação decorrente da compreensão do pesquisador, e partilhar um saber construído em conjunto com eles.

A análise compreensiva, neste estudo, foi realizada com base na narrativa – texto de referência construído a partir das observações e relatos dos participantes do projeto de articulação –, assim como na entrevista com os alunos. Isso corresponde ao primeiro momento do processo descrito por Szymanski.

Feita a narrativa, esta foi relida várias vezes e o relato dos diferentes participantes da pesquisa foi separado por cores, utilizando-se uma cor para cada participante. Em seguida estes relatos foram agrupados por pessoa (com exceção do material dos alunos e dos coletivos, que foram analisados enquanto grupo) e submetidos à apreciação do protagonista de cada relato. Foi feita, então, uma análise por pessoa. Cada relato foi analisado separadamente, dando origem a diferentes constelações e relacionando-as com a teoria. Após o término desta primeira etapa, as constelações foram submetidas novamente aos participantes individualmente, e foram feitas alterações de acordo com a intervenção dos mesmos. Este material encontra-se no Capítulo 6, Análise dos

participantes do projeto de articulação.

A necessidade de realizar uma análise por pessoa teve seu fundamento na visão de comunidade de Edith Stein. Segundo Ales Bello (2000), a compreensão da vida associativa realizada pela autora é o resultado de uma análise a respeito dos sujeitos, examinando os sentimentos e as atitudes dos membros de uma comunidade.

Aquilo que os une (...) é a conexão profunda que nasce da força psíquica ou espiritual do indivíduo, a qual interage com aquela dos outros; pela qualidade desta interação nasce a possibilidade ou não da comunidade, que pode ser obviamente sempre ameaçada pela desagregação e pela oposição. (ALES BELLO, 2000, p. 168)

Neste sentido, pensamos que o processo de articulação poderia ser compreendido, em coerência com a linha teórica adotada, a partir do posicionamento das pessoas que dele participaram. Vimos como Stein e outros autores interacionistas apontam a interdependência entre pessoa e comunidade. De acordo com esta perspectiva, ao olharmos para as pessoas (compreendidas não como mônadas fechadas, mas como abertura e relação), compreendemos a comunidade e vice-versa. A forma como cada um se insere, se abre ou se fecha, responde ao apelo do outro; tudo isso nos permite olhar a dinâmica da articulação que é tecida de maneira complexa nesta trama de relações.

Realizada a análise por pessoa, passamos à segunda etapa ao reagruparmos as constelações de cada participante em quatro grandes constelações, de forma a obter uma visão integrada do processo de articulação e da inter-relação entre os dois grupos

envolvidos (coletivos e EMEF Igarapé). As quatro constelações que embasaram nossa discussão foram:

- Sentidos desvelados (descreve os sentidos vividos pelos participantes)

- Articulação vivida (descreve situações vividas pelos participantes no dia-a-dia do projeto)

- Desafios (descreve dificuldades percebidas e vividas pelos participantes)

- Repercussões (descreve repercussões da articulação tanto nos alunos quanto nos demais participantes e nas comunidades escola e coletivos)

Em todas as constelações (tanto nestas quatro quanto nas constelações por pessoa), descrevemos no início seu significado e, em seguida, elaboramos um texto de análise no qual buscamos exemplificar as conexões que fazemos com a teoria, através dos próprios relatos dos participantes. Desta forma, procuramos preservar e apresentar ao leitor aquilo que entendemos ser, dentro da abordagem fenomenológica, a maior riqueza da pesquisa: a descrição da experiência vivida dos sujeitos, pelos próprios sujeitos.

Ao longo do processo de compreensão, a análise foi submetida à orientadora e outros professores e colegas (além dos próprios participantes como já citamos), que auxiliaram no sentido de ampliar a visão da pesquisadora, mostrando novos aspectos dos relatos. Essa troca das compreensões alcançadas com outras pessoas, descrita por Leite e Mahfoud (2007) como parte do método fenomenológico na forma como Van der Leeuw o apresenta, foi essencial para auxiliar o processo de “suspensão das convicções pessoais prévias para captação do sentido presente no que se mostra” (LEITE e MAHFOUD, 2007, p. 79). Como exemplos desta experiência, podemos citar uma intervenção da orientadora ao perceber que, em um certo momento da pesquisa, a pesquisadora parecia ofuscada pela questão da literatura marginal, deixando de lado o foco do trabalho que era a articulação. As intervenções dos participantes durante as devolutivas também foram muito importantes para o esclarecimento de compreensões distorcidas, que não correspondiam ao sentido vivido por eles, e que puderam ser retomados. Aliada a este procedimento, a participação em eventos promovidos pela EMEF em conjunto com os coletivos (como os saraus e o cine alastre) foi também fundamental para a compreensão, principalmente, do sentido dos coletivos. Isto porque, nessas ocasiões, outros membros além de Knup Acrata estavam presentes e, como

afirma Edith Stein, o caráter pessoal da comunidade, ou seja, a forma como ela vivencia algo, emerge da forma como cada membro o vivencia individualmente, e da interação ente eles.

Passaremos agora à apresentação das narrativas, que ilustram as andanças da pesquisadora pela EMEF delineando o caminho de constituição da situação de pesquisa.