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Entrevista reflexiva 99

4.2 Caminhos para a emergência do fenômeno 98

4.2.1 Entrevista reflexiva 99

A entrevista reflexiva é um conjunto de procedimentos desenvolvido por Szymanski a partir de sua experiência com projetos e orientações de pesquisas qualitativas. Essa modalidade surgiu da necessidade de considerar o aspecto interativo da situação de entrevista e de incluir os significados subjetivos que envolvem essa situação. Nessa perspectiva, o curso da entrevista e o tipo de informação coletada levam em conta tanto a intencionalidade do pesquisador como a do pesquisado e o jogo de emoções e sentimentos que permanecem como pano de fundo durante todo o processo interativo (SZYMANSKI, 2004, p. 12). Pensando na intencionalidade, do ponto de vista do pesquisador, o que se busca é criar uma situação de confiabilidade que facilite a abertura do entrevistado a fim de que este traga dados relevantes para sua pesquisa. No

caso do entrevistado, a intenção está no fato de ele querer ser ouvido e considerado verdadeiro no que diz. Além disso, segundo a autora, o entrevistado desenvolve atitudes que influenciam o pesquisador provocando nele emoções como piedade, medo, admiração ou respeito.

Um outro aspecto considerado por Szymanski na situação de entrevista é a relação de poder e desigualdade entre entrevistador e entrevistado. O encontro é provocado pelo pesquisador. É ele quem elege a questão de estudo, escolhe quem entrevistar e dirige a situação de entrevista. Segundo a autora, essa situação de desigualdade de poder pode ser amenizada pelo diálogo, pelo qual o pesquisador respeita e acolhe os saberes da experiência do entrevistado como o resultado de uma compreensão de mundo. Além disso, o pesquisador pode buscar maior horizontalidade ao considerar e respeitar o conhecimento do entrevistado a respeito de seu mundo e da relação entre eles, considerando os ocultamentos e distorções que podem acontecer como decorrência desse conhecimento. Para o entrevistado, algumas informações podem ser ameaçadoras ou desqualificadoras para si ou para seu grupo ou, ao contrário, podem trazer uma visão mais favorável dos mesmos (SZYMANSKI, 2010, p. 13). Trata-se, portanto, do ponto de vista do entrevistador, de considerar o papel ativo do entrevistado na situação da entrevista, respeitando tanto a sua fala como o seu silêncio.

Ao abordar a situação de entrevista como um contexto interativo, Szymanski compreende o dado como algo construído na situação e não como algo pronto de antemão a ser transmitido passivamente pelo entrevistado. A entrevista se constitui, portanto, como um momento de construção de conhecimento coletivo, um processo de tomada de consciência onde a fala de um influencia no outro. É esse processo ativo de troca de significados que traz o caráter reflexivo para a entrevista. Do ponto de vista do entrevistado, a reflexão se faz presente também na construção do discurso. A situação de entrevista exige que ele organize seu conhecimento de forma a construir um discurso compreensível ao outro, e isso requer um movimento reflexivo. Muitas vezes pode ser a primeira vez que aquele conhecimento é organizado por ele na forma de uma narrativa e, mesmo que não o seja, a narrativa construída na situação da entrevista será única, particular porque estará voltada para uma situação e um interlocutor particular. Assim, “o movimento reflexivo que a narração exige, acaba por colocar o entrevistado diante

de um pensamento organizado de uma forma inédita para ele mesmo” (SZYMANSKI, 2010, p. 14).

O caráter reflexivo da situação de entrevista se encontra também, segundo a autora, no sentido de refletir sobre a fala do entrevistado. Ao longo da entrevista, o entrevistador submete ao entrevistado a compreensão que teve de sua fala. Ao deparar-se com a sua própria fala, na fala do pesquisador, o entrevistado tem a possibilidade de voltar para a questão discutida e articulá-la de outra maneira, em uma nova narrativa, o que gera um novo movimento reflexivo. Szymanski lembra que esse procedimento de voltar ao entrevistado dando-lhe a possibilidade de discordar ou modificar suas proposições cumpre com o compromisso ético presente em qualquer situação de entrevista e contribui para a construção de uma horizontalidade.

Dentro desse contexto, podemos dizer que a entrevista reflexiva é uma modalidade de entrevista semidirigida com um roteiro aberto, baseado na fala do entrevistado. Segundo Szymanski (2010), ela pode ser individual ou em grupo e é realizada no mínimo em dois encontros. Inicia-se com um primeiro contato com o entrevistado, no qual o pesquisador se apresenta fornecendo dados sobre sua pessoa, instituição de origem e objetivos da pesquisa. Neste primeiro encontro, solicita-se também a permissão para gravação da entrevista e se assegura o direito ao entrevistado de acesso às gravações e análises, bem como ao anonimato. Abre-se também espaço para perguntas e esclarecimentos, lembrando a importância para o pesquisador de adaptar sua linguagem ao contexto do entrevistado e buscar estabelecer uma relação cordial com o mesmo. É importante também, nesse momento, deixar o entrevistado livre para participar ou não da pesquisa. Realizado esse primeiro contato, parte-se para a realização da entrevista, cujo processo de condução descreveremos a seguir.

Szymanski (2010) sugere que, na fase inicial da entrevista, seja proposto um pequeno aquecimento que possibilite uma apresentação mais pessoal do entrevistado, o estabelecimento de um clima de descontração e a introdução do tema em estudo. Um dos exemplos trazidos pela autora sobre esse momento da entrevista foi o de uma pesquisa realizada em uma fábrica, cujo objetivo era estudar o impacto da identidade atribuída pela empresa na identidade dos trabalhadores. A entrevista foi realizada em grupo e, como aquecimento, sugeriu-se que cada um dos participantes contasse a

história do seu nome e em seguida contasse algum apelido que possuísse na família ou na empresa. Essa atividade propiciou uma apresentação da história de vida dos participantes, bem como uma reflexão inicial sobre o tema da identidade.

Após a fase de aquecimento, o pesquisador apresenta a questão desencadeadora, que será o ponto de partida para a fala do participante. Szymanski lembra, ao citar Banister et al. (1994),54 que a entrevista aberta muitas vezes mascara pressupostos, agendas e expectativas e que, nesse sentido, é importante que estejam claros os objetivos e a contribuição que o entrevistado poderá trazer para responder ao problema pesquisado. Sendo assim, a questão desencadeadora necessita ser cuidadosamente elaborada a partir dos objetivos da pesquisa. Ao formulá-la, o pesquisador deve procurar garantir que a fala do entrevistado estará focalizando o ponto que ele quer estudar sem, no entanto, ser diretivo, ou seja, deve procurar formular uma pergunta ampla o suficiente para deixar o entrevistado expressar-se livremente sobre o assunto. A questão desencadeadora tem como objetivo trazer à tona a primeira elaboração, o primeiro arranjo narrativo que o entrevistado pode oferecer sobre o tema (SZYMANSKI, 2010, p. 28). A autora sugere que o pesquisador tenha a questão desencadeadora elaborada de diferentes maneiras, a fim de auxiliar o entrevistado caso ele peça esclarecimento, e a fim de evitar o distanciamento de seus objetivos ao tentar oferecer explicações improvisadas no momento da entrevista. Sugere, ainda, um cuidado do pesquisador em relação à escolha do termo interrogativo. Questões que indagam o “porquê” de alguma experiência tendem a uma resposta indicadora de causalidade, enquanto questões que indagam o “como” e o “para quê”, induzem respectivamente a uma narrativa (uma descrição) e ao sentido que orientou determinada escolha.

Como dissemos anteriormente, ao longo da entrevista, o pesquisador apresenta a sua compreensão do discurso do entrevistado submetendo-a às considerações deste. Isso garante uma maior fidedignidade, além de, como foi dito, promover um novo movimento reflexivo e favorecer uma situação de horizontalidade na entrevista. Além de indicar sua compreensão, Szymanski (2010) aponta que a atuação do pesquisador ao longo da entrevista pode dar-se através de sínteses, questões de esclarecimento,

54 BANISTER, P. et al. Qualitative methods in psychology: a research guide. Buckingham: Open

questões focalizadoras ou de aprofundamento, sempre visando manter o foco do problema estudado.

E, por fim, a última fase da entrevista reflexiva é a devolução, ou seja, a exposição posterior da compreensão do pesquisador sobre a experiência relatada pelo entrevistado. A devolução acontece em um novo encontro, no qual o pesquisador apresenta a transcrição da entrevista e uma pré-análise para consideração do entrevistado. Considera-se que o entrevistado deva ter acesso à interpretação do entrevistador, já que ambos produziram um conhecimento na situação interativa da entrevista.

Para a realização da entrevista coletiva com os alunos, foi realizado um encontro da pesquisadora com todos os que haviam participado das oficinas de literatura marginal. Nesse encontro, a pesquisadora explicou-lhes o objetivo da pesquisa e a intenção de realizar uma entrevista em grupo, deixando-lhes a possibilidade de escolha em participar ou não. Os alunos que mostraram interesse em participar levaram para casa o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para ser preenchido por seus responsáveis, e foi agendada a data da entrevista.

O grupo foi composto de oito alunos. A entrevista foi dividida em três momentos. O primeiro foi um aquecimento durante o qual eles confeccionaram crachás e lembraram das atividades realizadas na oficina. No segundo momento, foi iniciada uma conversa norteada pelas seguintes questões:

- Quando vocês se inscreveram na oficina, o que buscavam? - Vocês tiveram o que queriam?

- Vocês tiveram outras coisas que não esperavam? - O que mais gostaram?

O terceiro momento foi uma finalização. Foi pedido aos alunos escolhessem um nome pelo qual gostariam de ser chamados na pesquisa e o escrevessem atrás dos crachás, posteriormente recolhidos pela pesquisadora.

Tendo explicitado os caminhos para a emergência do fenômeno, passaremos, a seguir, à descrição dos caminhos percorridos para a compreensão do mesmo.