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3 ANÁLISE DOS DADOS

3.3 INTERPRETAÇÕES DO GRUPO DE CONTROLE

3.3.3 Análise da interpretação 3

O estudante 3 do Grupo de Controle elaborou a seguinte interpretação.

Zé disse para sua mãe que fazia tempo que eles não comiam carne, a sua mãe man- dou ele ir comprar carne. Zé, um menino que quase não mentia, pegou e foi procu- rar, ele procurou, procurou, mas o dinheiro não era suficiente para comprar a carne. Ele chegou bem quietinho, pegou o cachorro e levou no seu amigo que matava boi e

pediu para que ele matasse o cachorro, o matador matou e o menino levou para sua casa.

Veja-se cada uma das sentenças dessa interpretação.

Sentença 1 – Zé disse para sua mãe que fazia tempo que eles não comiam carne, a

sua mãe mandou ele ir comprar carne.

Explicatura da sentença 1 – Zé [o menino] disse para sua [do menino/de Zé] mãe

que fazia tempo que eles [a mãe e o menino/ Zé] não comiam carne, a sua [do meni- no/de Zé] mãe mandou ele [o menino/ Zé] ir comprar carne.

Interpretação 1 do texto 3.

S1 – Zé está comendo carne (do input lingüístico).

S2 – Zé pede para dar os ossinhos da carne para o cachorro (do input lingüístico).

S3 – Se S1, e S2, então S4 (premissa implicada).

S4 – A mãe de Zé cozinhou carne (conclusão implicada).

S5 – Zé disse para a mãe de Zé que fazia tempo que eles não comiam carne (do input lingüístico).

S6 – Se S4, e S5, então S7 (premissa implicada).

S7 – A mãe de Zé manda Zé comprar carne (conclusão implicada).

Observe-se a sentença 2.

Sentença 2 – Zé, um menino que quase não mentia, pegou e foi procurar, ele procu-

rou, procurou, mas o dinheiro não era suficiente para comprar a carne.

Explicatura da sentença 2 – Zé [o menino], um menino que quase não mentia,17

pegou [o dinheiro para comprar a carne] e [então] foi procurar [a carne], ele [Zé] procurou [a carne com o dinheiro que a mãe do menino deu ao menino], procurou [a carne com o dinheiro que a mãe do menino deu ao menino], mas o dinheiro [da car- ne que a mãe do menino deu ao menino] não era suficiente para comprar a carne.

Interpretação 2 do texto 3.

S8 – Zé é um menino bom (da memória enciclopédica).

S9 – Se S8, então S10 (premissa implicada).

S10 – Zé era um menino que quase não mentia (conclusão implicada).

S7 – A mãe de Zé manda Zé comprar carne (conclusão implicada da sentença anteri-

or).

S11 – Se S7, então S12 (premissa implicada).

S12 – A mãe deu dinheiro para comprar carne (conclusão implicada).

17

Resta saber se a seqüência lexical “um menino que quase não mentia” é irônica ou não. Argumentos em favor de uma interpretação descritiva são apresentados na análise da interpretação.

S13 – Se S12, então S14 (premissa implicada).

S14 – O menino pegou o dinheiro para comprar carne (conclusão implicada).

S15 – Se S14, então S16 (premissa implicada).

S16 – O menino procurou a carne com o dinheiro que a mãe do menino deu ao

menino (conclusão implicada).

S17 – O menino procurou muito a carne com o dinheiro que a mãe do menino deu ao

menino (da memória enciclopédica). S18 – Se S17, então S19 (premissa implicada).

S19 – O dinheiro que a mãe do menino deu ao menino para comprar a carne

não é suficiente para comprar a carne (conclusão implicada).

S20 – Se S19, então S21 (premissa implicada).

S21 – O menino não pôde comprar a carne porque o dinheiro que a mãe do menino

deu ao menino para comprar a carne não é suficiente para comprar a carne (conclu- são implicada).

Observe-se, finalmente, à sentença 3.

Sentença 3 – Ele chegou bem quietinho, pegou o cachorro e levou no seu amigo que

matava boi e pediu para que ele matasse o cachorro, o matador matou e o menino le- vou para sua casa.

Explicatura da sentença 3 – Ele [o menino] chegou bem quietinho [à casa], [o me-

nino/Zé] pegou o cachorro e [o menino/Zé] levou [o cachorro] no seu [do menino/de Zé] amigo que [o amigo do menino/de Zé] matava boi e [então] [o menino/Zé] pediu para que ele [o amigo do menino/de Zé] matasse o cachorro [do menino/de Zé], o matador [amigo do menino/de Zé] matou [o cachorro do menino/de Zé] e o menino levou [a carne do cachorro do menino/de Zé]] para sua [do menino/de Zé] casa.

A sentença 3 encerra os seguintes raciocínios.

S10 – Zé era um menino que quase não mentia (conclusão implicada da sentença 2).

S22 – Zé não queria desagradar a mãe de Zé (conclusão implicada).

S23– Se S10 eS22, entãoS24 (premissa implicada).

S24 – Zé tinha obrigação de trazer a carne (conclusão implicada).

S21 – O menino não pôde comprar a carne porque o dinheiro que a mãe do menino

deu ao menino para comprar a carne não é suficiente para comprar a carne (conclu- são implicada da sentença 2).

S25 – Se S21, entãoS26 (premissa implicada).

S26 – O menino resolveu matar o cachorro (conclusão implicada).

S27 – A mãe do menino não a carne do cachorro (conclusão implicada).

S28 – Se S27, entãoS29 (premissa implicada).

S29 – A mãe do menino não podia saber da origem da carne (conclusão implicada).

S30 – Se S29, entãoS31 (premissa implicada).

S31 – O menino chegou bem quietinho à casa do menino para o menino pegar o

S32 – Se S26, entãoS33 (premissa implicada).

S33 – Alguém deve matar o cachorro (conclusão implicada).

S34 – O menino conhece um amigo do menino que mata boi (da memória enci-

clopédica).

S35 – Se S33 eS34, entãoS36, S37 e S38 (premissa implicada).

S36 – O menino pede ao amigo do menino que mata boi para que o amigo do

menino que mata boi mate o cachorro do menino (conclusão implicada).

S37 – O amigo do menino que mata boi mata o cachorro do menino (conclusão

implicada).

S38 – O menino leva a carne do cachorro para a casa do menino (conclusão im-

plicada).

Na primeira sentença do texto, o terceiro intérprete atribui um nome ao menino: “Zé” (vale dizer que ele atribui o item lexical “Zé” como referente para o input visual do me- nino). A partir dessa personagem, a criança cria uma história inusitada para a cena, na qual a mãe de Zé pede ao menino que ele compre carne. A pista para a inferência realizada está na própria estrutura lingüística da sentença. Ela toma o input lingüístico da charge, onde o intér- prete diz que fazia tempo que ambos não comiam carne como antecedente do preparo da co- mida. Desse modo, a interpretação consistente com o estímulo ostensivo foi a de que, diante do pedido de Zé, a mãe pede a ele que compre carne.

Na sentença 2, chama atenção a seqüência lexical: “um menino que quase não mentia”. Essa seqüência abre duas possibilidades de interpretação. De um lado, pode ser to- mada como ironia. Nesse caso, “quase não mentir” pode ser tomado como: “mentir sempre”. Outra possibilidade é a seqüência ser tomada como descritiva. Nesse caso, a criança quer ex- plicitar o fato de que Zé é um menino bom. Isso permite antecipar que as ações de Zé possam ser desculpadas antecipadamente.

Nesse caso, está-se diante de duas suposições cuja força dependerá dos inputs posteriores. Na própria sentença 2, há uma pista em favor da segunda interpretação. A criança afirma que o dinheiro que a mãe lhe oferece (inferência possível a partir da explicatura da sentença) não é suficiente para a compra da carne. Instala-se aqui o complicador da narrativa.

A resolução do conflito implica o sacrifício do cachorro de estimação. Fica implí- cito que o menino tem a obrigação de trazer a carne e não desagradar sua mãe. Para a criança, apesar do drama ético de matar o cachorro, isso é um imperativo. O menino não está agindo por impulso próprio, ele está constrangido pela insuficiência de dinheiro.

Esse drama fica explícito na seqüência lexical: “Ele chegou bem quietinho”. Por que colocar essa seqüência? É razoável supor que a mãe não aprovaria a origem da carne e que ela não deveria saber que Zé havia tomado a decisão de matar o cachorro. Tais suposições funcionam como premissas para a atitude de pegar o cachorro na surdina. Resta, então, expli- car como fazer a troca. Em sua memória, aciona-se a suposição de que ele conhecia um “ami- go que matava boi”. Nesse caso, era só pedir a ele para que fizesse o serviço.

Essa interpretação, admite-se, não é convencional. Ela transfere para o menino a decisão de matar o cachorro de estimação. Além disso, para o analista considerá-la plausível, é preciso lidar com as aparentes incongruências da solução encontrada pelo sujeito em função dos inputs lingüísticos e visuais da charge. No que diz respeito às falas do menino, a primeira, a que se refere ao tempo em que eles não comiam carne, é interpretada como causa de toda a narrativa; a segunda, a de que ele pede para a mãe guardar os ossinhos, só pode ser interpreta- da como um elemento de distração. A reação da mãe, a surpresa, o tom de pergunta e a entra- da lexical: “Cachorro?”, só fazem sentido num contexto em que ela, provavelmente, já se dera conta de que o cachorro há tempo não está na casinha. Supõe-se, no entanto, que o intérprete não se deu conta de todos esses detalhes. Para ele, e congruente com a primeira interpretação consistente com o primeiro princípio de relevância, bastou identificar em Zé a causa da morte do cachorro e perseverar nessa interpretação.

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