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3 ANÁLISE DOS DADOS

3.2 ANÁLISE DO CARTUM E DA CHARGE

3.2.1 O cartum

No grupo de controle, a pesquisadora, enquanto docente de língua portuguesa das turmas analisadas: apresentou a tarefa de interpretação, distribuiu o instrumento de coleta de dados e leu as instruções. Além de solicitar que os alunos preenchessem o cabeçalho, solicitou que os mesmos fizessem uma interpretação relacionada à charge de autoria de Rinaldo, que se apresentava abaixo. Cabe destacar que, para os dois grupos, o estímulo foi apresentando como uma charge, independentemente da distinção técnica dos termos. Coube aos alunos elaborar uma interpretação por escrito com um único parágrafo de até 10 linhas.

Como já expresso, o cartum sob análise consiste na apresentação da charge “Fome Zero” de Rinaldo, omitindo-se seu título. A seguir, apresenta-se o cartum que serviu de base para as interpretações do grupo de controle.

Figura 2 – Cartum decorrente da omissão do Título “Fome Zero” da charge homônima de Rinaldo (2003).

Considerando-se apenas o cartum e a tarefa solicitada, cabe-se ressaltar que um conjunto de suposições já está sendo acionado por quem o interpreta. Esse processo antecede a elaboração da interpretação propriamente dita e constitui-se caminho para ativá-la.

Veja-se um conjunto mínimo:

S1 – A figura é uma charge;13

S2 – A charge se refere a algo do cotidiano;

S3 – A charge pode ser interpretada;

S4 – A charge é de Rinaldo;

S5 – A charge traz crítica;

S6 – A charge é engraçada.

No que se refere aos estímulos ostensivos, o cartum apresenta imagens pictóricas não verbais e estímulos verbais. Observem-se as suposições decorrentes de um conjunto mí- nimo de inputs visuais.

S7 – A cena ocorre numa cozinha.

S8 – As personagens são pobres.

S9 – A mãe serviu carne ao filho.

S10 – O filho está comendo um pedaço de carne.

13

S11 – Há uma casinha de cachorro.

S12– Há uma coleira aberta.

S13– O cachorro não está na casinha.

Tomado esse conjunto mínimo, pode-se observar o estímulo ostensivo verbal do menino/filho, a saber:

Filho – “Mãe, fazia tempo que a gente não comia carne, né? Guarda os ossinho que eu vô jogá pro cachorro!”

Este estímulo é composto por duas sentenças. Veja-se a primeira.

Sentença 1 – Mãe, fazia tempo que a gente não comia carne, né?

Explicatura da sentença 1 – Mãe, fazia tempo que a gente [mãe e filho] não comia

carne, né[não é verdade]?

Onde:

(i) a gente [mãe e filho] – atribuição de referente à entrada lexical a gente por remis- são aos personagens do cartum, ou seja, à mãe e ao filho.

(ii) né[não é verdade] – complementação da entrada lexical devido ao conhecimento enciclopédico sobre a função da expressão fática “né” em diálogos.

Essa proposição aciona um conjunto de suposições que são originadas do input lingüístico em confronto com as suposições estocadas na memória enciclopédica. Além disso, essa proposição realça elementos do input visual. Veja-se um conjunto mínimo.

S14 – As personagens são pobres – suposição reforçada pelo input lingüístico, dado

que pessoas pobres consomem pouca carne.

S15 – A mãe serviu carne ao filho – suposição reforçada pelo input lingüístico.

S16 – O filho está comendo um pedaço de carne – suposição reforçada pelo input lin-

güístico.

Essa proposição permite derivar a seguinte implicatura:

S20 – O filho <possivelmente> come carne com prazer/com vontade.

Essa suposição é implicada pelo input lingüístico. Veja-se.

S17 – Fazia tempo que o filho não come carne (suposição advinda do input lingüísti-

S18 – Carne é um alimento saboroso e caro (suposição advinda do conhecimento en-

ciclopédico).

S19– Se fazia tempo que o filho não comia carne e carne é um alimento saboroso e

caro, então o filho <possivelmente> come carne com prazer/com vontade (premissa implicada por modus ponens complexo).14

S20 – O filho <possivelmente> come carne com prazer/com vontade (conclusão im-

plicada por eliminação dos antecedentes).

Veja-se a segunda sentença:

Sentença 2 – Guarda os ossinho que eu vô jogá pro cachorro!

Explicatura da sentença 2 – “Guarda ∅ [Mãe] os ossinho [da carne] que [= por-

que] eu [o filho] vô jogá ∅ [os ossinhos da carne] pro cachorro!”

Onde:

(i) Guarda ∅ [Mãe] – preenchimento do material elíptico por meio da remissão à in- terlocutora do filho, ou seja, à mãe;

(ii) Guarda ∅ [Mãe] os ossinho [da carne] – atribuição de referente à entrada lexi- cal ossinho por meio da memória enciclopédica de que carnes podem ser oferecidas com ossos;

(iii) Guarda ∅ [Mãe] os ossinho [da carne] que [= porque] – atribuição de função explicativa à entrada lexical que em função do conteúdo proposicional da segunda parte do enunciado;

(iv) Guarda ∅ [Mãe] os ossinho [da carne] que [= porque] eu [o filho] – atribuição de referente à entrada lexical eu por remissão ao agente do enunciado, ou seja, ao fi- lho;

(v) Guarda ∅ [Mãe] os ossinho [da carne] que [= porque] eu [o filho] vô jogá ∅ [os

ossinhos da carne] pro cachorro! – preenchimento da variável lógica: jogar (filho,

x, pro cachorro), tal que x é a entrada lógica para algo que deva ser jogado para o cachorro, no caso, “os ossinhos da carne”.

Essa proposição, igualmente, aciona um conjunto de suposições. Veja-se um con- junto mínimo.

S21 – Há uma casinha de cachorro.

S22 – Há uma coleira aberta.

S23 – O menino conversa com a mãe.

S24 – O alimento servido é carne com osso.

14

Modus ponens complexo consiste numa implicação sintética que sucede a eliminação do “e”. No caso, antes da aplicação do modus ponens, uma das suposições coordenadas pelo “e” é eliminada: Se P e Q Æ R; Se P Æ R; R ou Se P e Q Æ R; Se Q Æ R; R.

Na terceira sentença, a mãe responde a solicitação de seu filho para guardar os os- sos para o cachorro de estimação.

Sentença 3 – “Cachorro?”

Uma possível interpretação para essa resposta é a de que ela ecoa a explicatura da sentença 2:

Explicatura da sentença 3 – ∅ [você [o filho] vai jogar os ossinhos da carne] ∅

[para qual] Cachorro?

Nessa forma lógica proposicional, pode-se ver as explicaturas abaixo:

(i) [você [o filho] vai jogar os ossinhos da carne] – atribuição de referência em função da forma lógica proposicional do enunciado do filho;

(ii) [Para qual] Cachorro – atribuição de referência de destino aos ossinhos da carne que o filho está comendo em função da remissão à forma lógica proposicional do enunciado do filho.

A resposta da mãe aciona um conjunto de inferências. É justamente esse conjunto de inferências que permite estabelecer o humor no cartum. O leitor, diante do inusitado da resposta da mãe, vê-se impelido a estabelecer uma implicatura que seja consistente com o princípio de relevância, dado que o estímulo ostensivo da mãe foi produzido com a garantia de relevância.

Veja-se uma possibilidade:

S25 – Há uma casinha de cachorro – (suposição advinda do input visual);

S26 – Há uma coleira aberta – (suposição advinda do input visual);

S27 – Se há uma casinha de cachorro e há uma coleira aberta então o cachorro <pos-

sivelmente> não está na casinha – (premissa implicada por modus ponens comple- xo);

S28 – O cachorro <possivelmente> não está na casinha – (conclusão implicada por e-

liminação dos antecedentes);

S29 – A mãe não sabe para qual cachorro dar os ossinhos da carne – (suposição ad-

vinda do input lingüístico);

S30 – Se a mãe não sabe para qual cachorro dar os ossinhos da carne e o cachorro

<possivelmente> não está na casinha então a mãe <possivelmente> cozinhou o ca- chorro – (premissa implicada por modus ponens simples);

S31 – A mãe <possivelmente> cozinhou o cachorro – (conclusão implicada por eli-

minação dos antecedentes).

Não há plenas garantias de que essa implicatura (e suas variantes similares tais como: (a) a criança está comendo o cachorro; (b) o cachorro está na panela; (c) os ossinhos são do cachorro) seja verdadeira. Poder-se-ia bem pensar que:

S32 – O cachorro <possivelmente> fugiu.

S33– O cachorro <possivelmente> morreu (foi atropelado).

e, portanto, a mãe não pode deixar os ossinhos para o cachorro da casa por esses motivos. No entanto, a conclusão implicada de que o cachorro foi cozido parece ser a mais consistente com o princípio de relevância, em especial para o leitor maduro e que é proficien- te na leitura de cartuns e charges e, desse modo, alguém que espera haver humor nessas pro- duções. As conclusões implicadas de morte acidental ou de fuga do animal não garantem esse efeito humorístico. O importante nessa questão é que o enunciado ostensivo da mãe, por meio de um único item lexical, aciona um conjunto complexo de implicaturas. Esse enunciado au- menta o esforço cognitivo para a interpretação e, ao fazê-lo, produz efeitos contextuais mais ricos, o que permite o dito efeito humorístico.

Mas a interpretação de um cartum não se restringe a esse efeito humorístico. O cartum ganha importância em função das inferências que vão além de sua interpretação stricto sensu. O que se quer com a ironia de se comer o cachorro de estimação? Note-se que a ausên-

cia de um vínculo explícito com determinada notícia amplifica essas possibilidades de inter- pretação. Poder-se-ia vincular o cartum com a situação de famílias pobres, mas não necessari- amente com nenhum evento histórico em particular. Esse vínculo pode ser garantido com a aposição de um título, como é o caso da charge que lhe deu origem.

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