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ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE A SERPENTE E SATÃ

4. A SERPENTE E SATÃ

4.2 ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE A SERPENTE E SATÃ

Nesta seção, ainda com base em Paradise Lost e Charlesworth (2010), analisa-se a relação entre a serpente e o Satã de Milton em três momentos: primeiro, enquanto Lúcifer no Céu; segundo, enquanto o príncipe dos demônios no Inferno; terceiro, enquanto serpente tentadora no Éden.

4.2.1 No Céu

No Céu, Lúcifer, dos primeiros se não o primeiro arcanjo, foi grandioso em poder, perfeição e glória, enquanto esteve na obediência a Deus. A serpente pode ser surpreendentemente bonita, e de fato a serpente tentadora era agradável e amável (de tal modo que pôde seduzir Eva), da mesma forma como Lúcifer era belo por estar nesse estado no Céu. No entanto, Lúcifer recusou a ordem pronunciada pelo Pai de que os anjos deveriam confessar o Filho como o Senhor. A recusa de ouvi-la é bem representada pela ausência de ouvido na serpente: ela não tem tímpano, ouvido médio e externo, e a trompa de Eustáquio. Assim como a serpente, quando confrontada pelo perigo, não foge ou abaixa seu pescoço, Lúcifer tomou uma atitude corajosa: a de deixar o trono supremo não adorado, não obedecido. Lúcifer teve a coragem de nunca se submeter às ordens no Céu.

Demonstradas sua recusa e insubmissão à ordem do Pai, Lúcifer conseguiu persuadir um terço dos anjos do Céu a se rebelar contra o Altíssimo. Isso significa que um terço dos anjos do Céu se assemelharam a Lúcifer. Essa capacidade de produzir vários semelhantes seus corresponde à fertilidade da serpente. Quer macha, quer fêmea, a serpente, segundo Charlesworth (2010), simboliza a fertilidade. Em vez de aplicar o pronome it da língua inglesa à serpente tentadora, Milton aplica o pronome he, possivelmente por ela estar ligada a Satã, que é tratado pelo pronome he.

4.2.2 No Inferno

A serpente não mostrar emoção facial, como o sorriso ou a careta, aponta para um outro reino ou mundo. A serpente tentadora remete o leitor ao reino do Inferno, onde Satã é chefe, o lugar que a justiça eterna preparou para os rebeldes, descrito em PL I.59-71.

No Inferno, a protagonista de Paradise Lost passa a ser chamada de “Satã”, haja vista que o nome “Lúcifer” não se pronunciou mais no Céu devido à sua revolta. Neste mesmo espaço

ainda, Satã tinha poderosa estatura de chefe da mesma forma como a serpente ilustra grandeza e majestade. Satã é chamado de príncipe dos demônios.

Ainda que exercesse tal função no Inferno, Satã estava privado de se comunicar com os humanos porque os portões do Inferno estavam fechados para sempre por Pecado. Desse modo, Satã não poderia entrar no Paraíso, por cujos portões Gabriel era responsável. Essa privação de Satã de se comunicar com os humanos é representada pela ausência de voz da serpente, que é muda, não tem meio vocal para se comunicar com os humanos. Ademais, a ausência de voz da serpente foi uma característica do animal que serviu para que Satã, fingindo que a serpente tentadora tivesse ganhado a fala humana, persuadisse Eva a comer a maçã proibida.

A serpente é um animal que desaparece na terra. Simbolicamente entra no mundo inferior, desconhecido pelos humanos. Assim, a presença da serpente embaixo da terra representa a presença de Satã no Inferno, onde realizou o conselho solene (desconhecido por Adão e Eva) no Pandemônio. Após debate no conselho, propôs-se que fosse verificada a profecia no Céu sobre a existência de criatura semelhante a eles mesmos ou não muito inferior. Em Paradise Lost, Pecado é uma personagem feminina, gerou Morte (personagem masculina), guardava os portões do Inferno, era filha de Satã e com ela Satã praticou incesto. Dado que a serpente em posição de pé se assemelha a um falo e isso pode significar seus poderes sexuais, o erotismo ou a sexualidade representados por esse formato remetem o leitor ao evento do incesto entre Satã e Pecado.

Finalmente, Satã voou sozinho em direção aos portões do Inferno sem que nenhum demônio tomasse parte desse empreendimento. Isso mostra como ele age de maneira socialmente independente. Por outro lado, ele estava em grupo no seu local de origem, o Céu, junto aos anjos, bem como no Inferno em posição elevada como chefe dos demônios. De maneira semelhante, a serpente não vive em grupos, mas caça sozinha. Ela é vista em grupos somente no nascimento, que corresponde a Lúcifer no Céu, ou na culminação da hibernação, que corresponde ao período em que Satã não representava perigo à humanidade assim como a serpente não representa enquanto dorme.

4.2.3 Na Terra

As serpentes são carnívoras e podem engolir animais inteiros que superem o seu próprio peso. Da mesma forma que a serpente pode comer suas presas maiores que si mesma, e assim causar a sua morte, Satã tem a capacidade de corromper a raça humana inteira, que é em quantidade maior que ele mesmo, e assim provocar sua morte, isto é, destiná-la ao Inferno.

Mesmo que o primeiro casal tenha se arrependido e recebido a promessa de redenção, Satã tem essa capacidade de corromper a humanidade.

A serpente se move rapidamente e sem som, o que simboliza agilidade e destreza. A destreza é uma qualidade de Satã que se observa quando examinou minuciosamente cada criatura do globo da Terra para que servisse suas artimanhas e então encontrou a serpente, a mais sutil das bestas. Além disso, a penetração em jardim é uma característica da serpente que simboliza a entrada de Satã no Paraíso terrestre.

A serpente é um animal que não possui pálpebras. Ter os olhos abertos sem interferências na visão (portanto, uma visão mais perfeita) simboliza sabedoria ou astúcia. Conforme Santo Agostinho (2012, p. 388), “na língua latina são denominados sábios com propriedade e pelo uso geral quando merecem louvor, mas por astutos se entendem os de mau caráter.”. Assim, pode-se afirmar que a ausência de pálpebras da serpente tentadora simboliza a astúcia de Satã. Como ainda há serpentes deficientes de visão, se se admite a serpente tentadora como tal, sua ausência de visão se refere à recusa de Satã de ver o bem da criação de Deus como a beleza de Eva, que por um tempo o deixou estupidamente bom, mas em seguida o inferno tornou a queimar dentro de si. Apesar disso, recobrou o ódio feroz e despertaram-se todos os seus pensamentos de ofensa. A serpente ser de sangue frio remete o leitor a essa insensibilidade de Satã ao gênero humano.

Em Paradise Lost, Satã é uma personagem que assume formas diferentes ao longo da trama. No espaço do Éden, assumiu a forma de corvo-marinho, de sapo e de serpente. A ecdise (mudança de pele) da serpente aponta para a mudança de formas pelas quais passou Satã. Quanto à serpente, ser elusiva e quase invisível são características suas que indicam a habilidade de Satã de se esconder na serpente dormente para que Eva não percebesse as suas intenções sombrias por estar naquele corpo.

A serpente é um animal misterioso, assim simboliza bem os mistérios que circundam as vidas humanas. Da mesma forma, Satã também é misterioso para Adão e Eva, pois planeja causar sua queda não por violência, mas por enganos e mentiras, conforme Rafael conversou amigavelmente com Adão, alertando-o do perigo no Éden devido a Satã. Foi uma ação misteriosa a serpente tentadora colocar Eva em dúvida a respeito da língua utilizada para persuadi-la a comer a maçã, haja vista que os animais não têm a língua dos homens.

Ainda que a serpente se comunique de algum modo com os homens, supor que a serpente tentadora tenha ganhado a fala humana é uma estratégia para que Eva fosse persuadida pela serpente tentadora. A serpente é um animal antissocial – usando esse termo de Charlesworth (2010) – no sentido de que não desenvolve uma relação boa com os homens, ou

ainda, lhes é uma companhia estranha. De modo semelhante, não há o prazer de se ter uma vida em companhia de Satã, como tinham Adão e Eva em seu amor conubial de pureza e inocência. A serpente não tem braços e pernas e seu movimento serpentino de ritmo quase circular pode ser visto como simbólico do tempo. A serpente tentadora, quando se dirigiu a Eva, moveu- se em base circular. Considerando que o círculo não tem começo e fim, ele simboliza a eternidade, que não tem começo e fim. Assim sendo, a base circular de dobras ascendentes da serpente tentadora sinaliza a mensagem de eternidade levada por Satã e prometida a Eva: “não morrerás.” (PL IX.685)

Frequentemente a serpente possui veneno mortal, o que a torna um ser que causa a morte. Admitindo-se a serpente como peçonhenta, o veneno mortal da serpente se refere ao discurso realizado a Eva pela serpente tentadora no Livro IX, cujo propósito foi provocar a queda do homem, desde a tentação fraudulenta até sua retirada furtiva.

Por fim, a serpente possui língua bífida, que simboliza a mentira – que se compõe em parte de verdade, em parte de falsidade. A mentira dita pela serpente tentadora se comprova pela fala de Adão: que em má hora Eva deu ouvidos ao falso verme, e, por causa do mau fruto do conhecimento, perderam o bem e ganharam o mal.

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