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3. ANÁLISE LITERÁRIA DA PERSONAGEM “SATÔ

3.3 SATÃ E OUTROS ELEMENTOS DA NARRATIVA

3.3.3 Fábula

Bal (1997) apresenta três critérios para o evento: mudança (change), escolha (choice) e confrontação (confrontation).

O trimorfismo de Satã, como já exposto, é uma mudança significativa de Satã. Mudam- se: seu nome, de Lúcifer (Lucifer) para Satã (Satan); sua posição social, de arcanjo (dos primeiros, se não o primeiro – PL V.659-660) para chefe dos demônios; seu lugar, de Céu para Inferno; sua forma, quando entra na serpente que dormia; etc.

Com relação à escolha, distinguem-se eventos funcionais e não funcionais. “Eventos funcionais abrem uma escolha entre duas possibilidades, realizam essa escolha ou revelam os resultados de tal escolha. Uma vez que uma escolha é feita, ela determina o curso subsequente de eventos nos desenvolvimentos da fábula87.” (BAL, 1997, p. 184, tradução nossa). Um

exemplo de evento funcional é quando Satã escuta Adão dizer que o Poder que os criou exigia deles que, dentre todas as árvores no Paraíso que carregam vários frutos deliciosos, não provassem a única Árvore do Conhecimento, plantada junto à Árvore da Vida (PL IV.412-424). Assim sendo, porque soube dessa proibição – evento funcional –, o Tentador subiu pelo tronco

87 “Functional events open a choice between two possibilities, realize this choice, or reveal the results of such a

musgoso da árvore (que outros animais não podiam alcançar88 e que exigiria o máximo alcance

de Eva ou Adão) para tentar Eva (PL IX.589-593).

A confrontação ocorre quando se contrapõem dois atores ou grupos de atores. “Toda fase da fábula – todo evento funcional – consiste em três componentes: dois atores e uma ação; [...] numa outra formulação, dois objetos e um processo89. [...]” (BAL, 1997, p. 186, tradução

nossa). Pode-se selecionar a fala da serpente a Eva (PL IX.679-732) como um exemplo de confrontação, pois há dois atores, a serpente e Eva, e uma ação, a fala da serpente para convencer Eva de comer o fruto proibido, incluindo-se o intertexto de Gênesis 3:4, “vós não morrereis”. O resultado dessa confrontação é o sucesso da serpente criminosa, que voltou à mata furtivamente (PL IX.784-785).

Bal (1997) trata também do ciclo narrativo:

Uma fábula pode ser considerada como um agrupamento específico de séries de eventos. A fábula como um todo constitui um processo, enquanto cada evento também pode ser chamado de um processo ou, pelo menos, parte de um processo. [...] De acordo com Aristóteles bem como com Bremond, três fases podem ser distinguidas em toda fábula: a possibilidade (ou virtualidade), o evento (ou realização) e o resultado (ou conclusão) do processo90. (BAL,

1997, p. 189, tradução nossa) Quanto a Satã, pode-se identificar estas três fases:

1. Possibilidade: Satã poderá atacar o novo mundo (PL I.654-655); 2. Realização: Satã tenta Eva (PL IX.473-781);

3. Resultado: a Terra sentiu a ferida e a Natureza deu sinais de angústia; tudo estava perdido (PL IX.782-784);

Assim, constata-se esse ciclo narrativo em Paradise Lost.

88 Obs.: aves ou esquilos poderiam ter alcançado a maçã na árvore, o que evidencia que a serpente

tentadora estava mentindo e Eva não percebeu a fraude. (THE JOHN MILTON READING ROOM: Paradise Lost. Disponível em: < https://www.dartmouth.edu/~milton/reading_room/pl/intro/text.shtml >, acessado em 9 de outubro de 2015.)

89 “Every phase of the fabula – every functional event – consists of three components: two actors and one action;

[...] in yet another formulation, two objects and one process.”

90“A fabula may be considered as a specific grouping of series of events. The fabula as a whole constitutes a

process, while every event can also be called a process or, at least, part of a process. [...] According to Aristotle as well as Bremond, three phases can be distinguished in every fabula: the possibility (or virtuality), the event (or realization), and the result (or conclusion) of the process.”

“Atores são agentes que realizam ações91.”, define Bal (1997, p. 5, tradução nossa) em

sua introdução. No capítulo sobre fábula, a autora afirma: “Em algumas fábulas, há atores que não têm parte funcional nas estruturas daquela fábula porque não causam ou passam por eventos funcionais92.” (BAL, 1997, p. 195, tradução nossa). Cita como exemplo porteiros e empregadas

que abrem portas da frente em muitos romances do século XIX, pois se enquadram na definição de atores por realizar a ação de abrir a porta, no entanto sua ação não pertence à categoria de eventos funcionais. Posto isso, pretende-se analisar Satã como ator funcional.

Pressupõe-se que há uma relação teleológica entre os elementos da história: que os atores têm uma intenção, aspiram em direção a um objetivo. No caso de Satã, como já dito, sabe-se que sua intenção é perverter o bem gerado pela Providência (PL I.158-164) como também enganar Eva, pelo seu longo diálogo no Livro IX, para que coma o fruto proibido.

Entrando em classes de atores, Bal (1997) explica o que admite como sujeito e objeto:

A primeira e mais importante relação é entre o ator que segue um objetivo e aquele objetivo mesmo. [...] As duas primeiras classes de atores a serem distinguidas, portanto, são sujeito e objeto: o ator X aspira em direção à meta Y. X é um sujeito-actante, Y é um objeto-actante93. (BAL, 1997, p. 197,

tradução nossa)

A autora acrescenta que o sujeito geralmente é uma pessoa ou um animal personificado (em fábulas de animais), não um objeto.

Seguem alguns exemplos de sujeito e objeto:

João quer casar com Maria.

“João” é sujeito, “Maria” é objeto e “querer casar”, a função. Anna Wulf quer se tornar uma mulher independente

“Anna Wulf” é sujeito, “uma mulher independente” é objeto e “querer tornar-se”, função.

91 “Actors are agents that perform actions.”

92 “In some fabulas there are actors who have no functional part in the structures of that fabula because they do

not cause or undergo functional events.

93 “The first and most importante relation is between the actor who follows an aim and that aim itself. [...] The first

two classes of actors to be distinguished, therefore, are subject and object: actor x aspires towards goal y. x is a subject-actant, y an object-actant.”

Assim, a relação entre Satã e Eva, que culminará no clímax da narrativa, pode ser expressa por:

Satã quer causar a morte de Eva.

“Satã” é sujeito, “a morte de Eva” é objeto e “querer causar”, a função. Essa estrutura se justifica na medida em que:

 Eva disse à serpente: “Não do fruto das árvores, mas desta / Tão bela que é no centro do jardim; / Do fruto, disse Deus, Não comerás / Nem nela tocarás, p’ra não morreres.”94.’” (MILTON, 2015, p. 633). Portanto, Eva tinha consciência da morte

como consequência do ato de comer a maçã.

 A serpente respondeu: “Não morrerás95.” (MILTON, 2015, p. 635), contradizendo

assim a afirmação de Eva.

Como Eva comeu a morte – não sabia que estava comendo a morte (PL IX.792) – depreende-se que a serpente mentiu para Eva com o fim de lhe causar a morte.

A intenção do sujeito não é suficiente para atingir o objeto, daí Bal (1997) definir o poder (power) e o receptor (receiver):

[...] Nós podemos, consequentemente, distinguir uma classe de atores – consistindo naqueles que apoiam o sujeito na realização de sua intenção, que fornecem o objeto ou que permitem que ele seja fornecido ou dado – a quem chamaremos de poder. A pessoa a quem o objeto é dado é o receptor96. (BAL,

1997, p. 198, tradução nossa)

A autora acrescenta que em muitos casos o poder não é uma pessoa, mas uma abstração como a sociedade, o destino, o tempo, a esperteza.

No caso de Satã, como Adão e Eva estavam cientes de que tinham um inimigo que procurava sua ruína (PL IX.275), Satã não poderia apresentar-se-lhes como tal, caso contrário

94 “[…] Of the fruit

Of each tree in the garden we may eat, But of the fruit of this fair tree amidst The garden, God hath said, Ye shall not eat

Thereof, nor shall ye touch it, lest ye die.” (PL IX.659-663)

95 “ye shall not die” (PL IX.685)

96 “[...] we can, consequently, distinguish a class of actors – consisting of those who support the subject in the

realization of its intention, supply the object, or allow it to be supplied or given – whom we shall call the power. The person to whom the object is ‘given’ is the receiver.”

logo o identificariam. Para dissimular-se, entrou na serpente dormente para esconder-se com sua intenção maligna (PL IX.162). Assim, a capacidade de entrar num animal é um poder necessário a Satã para enganar Eva, assim como a capacidade de fala da serpente que impressionou Eva (PL IX.554). Satã é o receptor desses poderes, como frequentemente coincidem o receptor e o sujeito (BAL, 1997, p. 199).

Em continuidade, Bal (1997) introduz mais dois conceitos: ajudante (helper) e oponente (opponent). “À primeira vista, eles não parecem necessários à ação. Na prática, no entanto, eles são frequentemente numerosos. Eles determinam as várias aventuras do sujeito, que às vezes deve superar grande oposição antes que possa atingir sua meta97.” (BAL, 1997, p. 201, tradução

nossa)

Devido à dificuldade de se diferenciar poder de ajudante, a tabela abaixo (adaptada de Bal, 1997) pode ajudar a resolver a dificuldade:

Poder Ajudante

Tem poder sobre o empreendimento inteiro

Pode dar somente auxílio acidental

Geralmente é abstrato Geralmente é concreto

Geralmente permanece no fundo Geralmente vem para a frente

Geralmente somente um Geralmente múltiplos

No Inferno, Satã decidiu ir sozinho à viagem temerosa ao novo mundo (PL II.426), isto é, não aceitou a companhia de demônios como ajudantes. Aproximando-se da Terra, encontra um claro oponente, o arcanjo Uriel, que não permitiria que ele entrasse no Éden, por isso disfarçou-se de querubim (PL III.636) para que pudesse entrar na Terra. Depois que Satã entrou no Éden, anjos como Gabriel, no Livro IV, e Rafael, no Livro V, funcionaram como oponentes seus, haja vista que visavam a proteger Adão e Eva.

Enfim, é preciso analisar se a serpente pode ser considerada ajudante de Satã. Como Satã entrou em seu corpo para melhor seduzir Eva, a serpente funcionou como ajudante, ainda que sua função no episódio do Éden não tenha sido deliberada por não ter livre-arbítrio: é animal bruto (PL IX.560). O auxílio prestado pela serpente a Satã não cobriu toda a trama na qual Satã participou, mas apenas ao segmento da trama correspondente ao Éden. A serpente é um animal

97 “At first sight they do not appear necessary to the action. In practice, however, they are often rather numerous.

They determine the various adventures of the subject, who must sometimes overcome great opposition before s/he can reach his or her goal.”

concreto, não abstrato como a capacidade de fala demonstrada por Satã posteriormente. A serpente, por fim, é visível na medida em que participa do diálogo com Eva, em particular no clímax da narrativa. Portanto, com base na tabela acima, pode-se afirmar que a serpente, enquanto animal, é bem classificada como ajudante de Satã para tentar Eva.

“Quando o sujeito parece antipático ao leitor, o ajudante, muito provavelmente, também será; e a simpatia do leitor irá em direção ao oponente do sujeito98.” (BAL, 1997, p. 202,

tradução nossa). Assim sendo, se o leitor provavelmente sente simpatia por Satã, sentirá pela serpente, e vice-versa.

Outro conceito é a competência, que é a possibilidade de um sujeito agir. Bal (1997) informa que Greimas subdivide a competência em “determinação ou vontade do sujeito de proceder à ação, o poder ou possibilidade, e o conhecimento ou habilidade necessário para executar o objetivo99.” (BAL, 1997, p. 204, tradução nossa). Posto isso, Satã tem a competência

necessária para realizar seu objetivo de fazer Eva pecar ou desobedecer a Deus:

1. Teve vontade de perverter o bem gerado pela Providência (PL I.158-164);

2. Teve o poder de fazê-lo, como a capacidade de entrar na serpente e falar por sua boca (PL IX.554);

3. Teve o conhecimento de como fazer Adão e Eva pecarem quando escutou Adão falar sobre o fruto proibido da Árvore do Conhecimento (PL IV.412-424);

Portanto, pode-se afirmar que Satã foi uma personagem competente para executar seu objetivo, pois cumpriu todos os três requisitos: vontade, poder e conhecimento.

“Por valor de verdade, quero dizer a ‘realidade’ dos actantes dentro da estrutura actancial100.” (BAL, 1997, p. 205, tradução nossa)

98 “When the subject seems unsympathetic to the reader, the helper will, most likely, be so too; and the sympathy

of the reader will go towards the opponent of the subject.”

99 “[...] determination or will of the subject to proceed to action, the power or possibility, and the knowledge or

skill necessary to execute the aim.”

No esquema acima, Bal (1997, p. 206) ilustra as posições possíveis dos atores com respeito à “verdade”:

Quando um ator é o que ele parece, ele é verdadeiro. Quando ele não coloca uma aparência, ou, em outras palavras, esconde quem ele é, essa identidade é secreta. Quando ele nem é nem coloca uma aparência, ele não pode existir como um ator. Quando ele parece ser o que ele não é, essa identidade é uma mentira101. (BAL, 1997, p. 206, tradução nossa)

Dado o esquema de valor de verdade, pode-se afirmar de Satã que, como arcanjo no Céu, parecia ser o que era, portanto Lúcifer era verdadeiro. Do mesmo modo, como chefe dos demônios no Inferno, parecia ser o que era, pois eram sabidos seus novos traços de identidade. Logo, Satã era verdadeiro. Como serpente tentadora, visto que é um anjo de intenção perversa, mas não parece ser, sua identidade é secreta, ou ainda, parece ser uma serpente boa, mas não é, logo sua identidade é uma mentira.

Finalmente, o tempo da fábula de Paradise Lost durante o qual a serpente dialoga com Eva pode ser comparado com seu correspondente bíblico, o Gênesis, ambos expressos linguisticamente. Em Gênesis 3 (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2003, p. 37), o diálogo entre a serpente e Eva não dura mais que 7 versículos, enquanto que no Livro IX de Paradise Lost o diálogo entre a serpente e Eva se estende do verso 532 ao 779 (MILTON, 2015, p. 625-641). Disso pode-se inferir – considerando-se o texto do Gênesis enquanto literatura, isto é,

101 “When an actor is what s/he appears, s/he is true. When s/he does not put up an appearance, or, in other words

hides who s/he is, this identity is secret. When s/he neither is nor puts up an appearance, s/he cannot exist as an actor; when s/he appears to be what s/he is not, this identity is a lie.”

independentemente de sua sacralidade ou expressão da Palavra de Deus – que o tempo desse segmento da fábula de Paradise Lost é mais longo que seu correspondente bíblico.

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