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3. ANÁLISE LITERÁRIA DA PERSONAGEM “SATÔ

3.3 SATÃ E OUTROS ELEMENTOS DA NARRATIVA

3.3.2 História

“Se se considera o texto primariamente como o produto do uso de um meio, e a fábula primariamente como o produto da imaginação, a história poderia ser considerada como o resultado de uma ordenação75.” (BAL, 1997, p. 78, tradução nossa). A autora afirma que talvez

o princípio de ordenação mais fácil de se compreender seja o da apresentação dos eventos, diferente de sua ordem cronológica. Já foi mostrado que Paradise Lost, por ser in media res, exemplifica a diferença entre história e fábula da obra.

No capítulo 2, sobre os aspectos da história, Bal (1997) apresenta o conceito de anacronia de maneira técnica, ou ainda, quando se refere à anacronia, não quer lhe atribuir uma conotação negativa. Chama de desvios cronológicos ou anacronias as diferenças entre o arranjo na história e a cronologia da fábula.

Dentro do contexto da história, as duas possibilidades de direção apontadas por Bal (1997) – retroversão e antecipação – ocorrem relacionadas a Satã. No Livro IV, há na fala suspirada de Satã ao Sol uma retroversão. Satã diz que odeia os feixes do Sol porque lhe trazem à lembrança o estado glorioso no qual estava e do qual caiu, guerreando no Céu contra o Rei incomparável até que o orgulho e a pior ambição o lançassem para baixo (PL IV.37-41). Já no Livro VI, na fala do Pai ao Filho, há uma antecipação relacionada a Satã. O Pai diz que, conforme computam os dias no Céu, dois dias se passaram, Miguel foi domar os desobedientes e que os anjos estarão em perpétua luta sem que alguma solução seja encontrada. O Pai dispõe o terceiro dia ao Filho de modo que seja do Filho a glória de terminar a grande guerra, visto que ninguém senão o Filho poderia terminá-la (PL VI.680-703). O Pai antecipou o futuro, embora a sequência de eventos da narrativa tenha sido outra por causa da intervenção do Filho segurando dez mil raios (PL VI.836). Neste episódio de luta constante entre os anjos, pode-se observar o elemento ritmo da narrativa, que mede a velocidade de apresentação. Na narrativa, de acordo com a fala do Pai, Satã e os anjos rebeldes estavam lutando durante dois dias, tempo este próprio da narrativa e diferente do tempo de leitura real do texto narrativo.

75 “If one regards the text primarily as the product of imagination, the story could be regarded as the result of an

Outra relação que Bal (1997) aponta ainda no mesmo capítulo é entre atores (actors) e personagens (characters), de maneira que os primeiros são mais abstratos e os últimos mais específicos. “[...] empregarei o termo personagem para figuras antropomórficas sobre as quais o narrador nos conta. Disso, quero dizer o ator fornecido com características que juntas criam o efeito de uma personagem76.” (BAL, 1997, p. 114, tradução nossa).

As personagens se assemelham às pessoas. Não têm psique, personalidade, ideologia ou competência para agir reais, mas têm características que tornam possíveis descrições psicológicas e ideológicas. Assim, Satã, embora como personagem seja anjo, pensa, sente, fala, age como uma pessoa. Por exemplo, honrado pelo seu grande Pai e o Rei Messias proclamado ungido, Lúcifer não pôde suportar aquela visão pelo seu orgulho, e considerou-se prejudicado. (PL V.663-665)

Bal (1997) entende a personagem como mais ou menos previsível. A previsibilidade do Satã miltoniano é possível de ser conhecida pelo leitor à proporção que conhece a doutrina religiosa cristã sobre Satã. Assim, dado o credo puritano de Milton, pode-se prever que Satã é aquele que governa os demônios, que tem a intenção de realizar ações más, que sente orgulho, que em algum momento é derrotado, o que está de acordo com Paradise Lost. Por outro lado, é de menor previsibilidade o conteúdo do diálogo de Satã com Pecado sobre a chave dos portões adamantinos no Livro II ou com Abdiel em guerra no Livro VI.

A autora afirma que a repetição é um importante princípio de construção da imagem de uma personagem. Por exemplo, há uma repetição de expressões com carga semântica negativa relativas a Satã: arqui-inimigo (PL I.81), adversário de Deus e do homem (PL II.629), adversário (PL III.156), o tentador, o acusador da humanidade (PL IV.10), seu primeiro nome não é mais ouvido no Céu (PL V.658-659), soberbo (PL VI.131), apóstata (PL VII.44), inimigo (PL IX.274), antagonista do poderoso Rei do Céu (PL X.387), com seu mundo pervertido (PL XII.547). Desse modo, forma-se uma imagem de Satã que possui base no Cristianismo e que pode ser colocada num quadro de oposições como amigo/inimigo, bem/mal, soberbo/humilde etc.

No tocante, por fim, ainda à função de personagem, Bal (1997) levanta o problema do herói. “Muitas características problemáticas se acumularam no termo, de modo que é melhor deixá-lo sozinho. Às vezes, tentativas são feitas para definir o termo herói, mas essas não

76 “[...] I shall employ the term character for the anthropomorphic figures the narrator tells us about. By this, I

resultaram em nada particularmente concreto77.” (BAL, 1997, p. 131, tradução nossa). Dado o

gênero épico de Paradise Lost, Satã funciona como o herói, entretanto, dado que é associado ao mal, Satã não seria exatamente um herói, mesmo porque, como mostra Lewis (1961), ele sofre um processo degenerativo de transformação. Forsyth (2014, tradução nossa) afirma que “ele pode não ser um herói no sentido épico, mas é difícil negar-lhe o status de um herói trágico78.”. Dessa forma, Satã desempenha o papel típico do herói na épica, no entanto, como é

mau e derrotado no final, qualifica-se como “trágico”.

Outro elemento da narrativa é a localização ou lugar, que se refere à posição topológica onde os atores se situam e os eventos acontecem.

Em princípio, os lugares podem ser mapeados, da mesma forma que a posição topológica de uma cidade ou um rio podem ser indicados num mapa. O conceito de lugar está relacionado ao formato físico, matematicamente mensurável, das dimensões espaciais79. (BAL, 1997, p. 133, tradução nossa)

Nos três principais lugares de Paradise Lost – Inferno, Céu, Éden – Satã esteve. Partindo-se da colocação de Bal (1997) de que a construção do conteúdo semântico do espaço, assim como da personagem, se faz por uma combinação de determinação, repetição, acumulação, transformação, relações entre vários espaços, relacionam-se com Satã características dos lugares Céu, Inferno e Éden.

O primeiro problema relativo ao espaço é a estrutura do universo80 em Paradise Lost.

Warren (1915) apresenta as imagens de intérpretes variados do universo de Milton: David Masson, George H. Himes, Homer B. Sprague, Thomas N. Orchard. Em todos eles, de todo modo, o Inferno ocupa uma posição inferior, o Céu, uma superior, e a Terra, uma intermediária, o que transmite uma ideia de hierarquia. Por exemplo, segue a interpretação do universo em Paradise Lost de David Masson em Warren (1915, p. 73):

77 “Lots of problematic features have accrued to the term, so much so that it is better left alone. Sometimes attempts

are made to define the term hero, but these have not resulted in anything particularly concrete.”

78 “He may not be a hero in the epic sense, but it is hard to deny him the status of a tragic hero.”

79 “In principle, places can be mapped out, in the same way that the topological position of a city or a river can be

indicated on a map. The concept of place is related to the physical, mathematically measurable shape of spatial dimensions.”

80 Uma obra recente sobre o tema: DANIELSON, Dennis. Paradise Lost and the cosmological revolution. Nova

Outra questão relativa ao espaço em Paradise Lost é se Milton adotou o geocentrismo ou o heliocentrismo. Em nota ao texto do Livro VIII, afirma-se: “A terra nunca é descrita explicitamente como no centro do sistema: no Livro III, 722, diz-se que é ‘downward’ com respeito ao sol. No Livro VII (372-3) parece que o sol circunda a terra81.” (MILTON, 1984, p.

621, tradução nossa).

Edwards (2014), por sua vez, afirma que é possível argumentar que Paradise Lost adota o heliocentrismo, enquanto que a versão satânica da dança cósmica82, ao contrário, é

geocêntrica pelos seguintes versos:

Céu terrestre, p’ra dança de outros céus Que brilham, mas p’ra ti tochas solícitas Luz sobre luz, carregam só, parece, Concentrando em ti seus preciosos raios De sacros sopros: como Deus que é centro No Céu, e a tudo estende, assim tu centro Recebes desses orbes; [...]83; (PL IX.103-109)

81 “La terra non è mai descrita explicitamente come al centro del sistema: in Libro III, 722, è detto che è

«downward» rispetto al sole. Nel Libro VII (372-3) sembra che il sole circondi la terra.”

82 “Derivada, em última análise, do Timeu de Platão e elaborada ao longo dos séculos, a noção de dança cósmica

prevê as estrelas e os planetas se movendo harmonicamente em torno do sol.” (EDWARDS, 2014, tradução nossa)

83 “Terrestrial heaven, danced round by other heavens

That shine, yet bear their bright officious lamps, Light above light, for thee alone, as seems, In thee concentring all their precious beams Of sacred influence: as God in heaven Is centre, yet extends to all, so thou

O último elemento da narrativa no capítulo sobre história é a focalização. “Referir-me- ei às relações entre os elementos apresentados e a visão através da qual eles são apresentados com o termo focalização84.” (BAL, 1997, p. 142, tradução nossa). Assim, sobre a mesma personagem Satã, pode-se listar pontos de vista como os do narrador, do Pai Eterno, de anjos como Rafael e Abdiel, de Adão e Eva, e também do próprio Satã.

Em todas essas focalizações, que ocorrem no nível da história, há uma qualificação negativa de Satã. O narrador denomina Satã de “arqui-inimigo” (PL I.81), “adversário de Deus e do homem” (PL II.629), “Inimigo da humanidade” (PL IX.494). O Pai Eterno ordena que Rafael converse com Adão para contar-lhe o perigo, o que o inimigo está tramando (PL V.230- 240). Rafael chama Satã de falso arcanjo (PL V.694). Abdiel o chamou de ingrato pelos argumentos blasfemos, falsos e orgulhosos (PL V.809-811), como também de soberbo (PL VI.131). Adão tem ciência da má intenção de Satã, por exemplo quando diz a Eva que ambos foram avisados de que o inimigo malicioso, invejando sua felicidade, procura causar-lhes infortúnio e vergonha por assalto astuto (PL IX.253-256). E Eva também tem ciência de que eles têm um inimigo que procura sua ruína (PL IX.274-275). Por fim, Satã diz ser o próprio inferno (PL IV.75), ainda que logo em seguida afirme que o inferno que sofre pareça um céu (PL IV.78). No entanto, segundo o narrador (PL IX.463-473), quando Satã viu Eva, permaneceu “estupidamente bom”, ficou abstraído de seu próprio mal, desarmado de inimizade, de malícia, de ódio, de inveja, de vingança, mas o inferno quente que arde em si logo terminou seu deleite e então o torturou quanto mais ele via o prazer não ordenado para si. Esse ponto de vista do narrador sobre Satã é confirmado por uma fala do próprio Satã, em que dialoga consigo mesmo sobre dever ser movido pelo ódio e não pelo amor, sobre a destruição do prazer, sobre a perda do júbilo (PL IX.473-479).

Um caso especial de focalização é a memória.

84 “I shall refer to the relations between the elements presented and the vision through which they are presented

A memória é um ato de “visão” do passado, mas, como um ato, situada no presente da memória. É frequentemente um ato narrativo: elementos soltos vêm a aderir à história, de sorte que eles podem ser lembrados e finalmente contados. Mas como é bem sabido, as memórias não são confiáveis – em relação à fábula – e quando posta em palavras, elas são retoricamente trabalhadas excessivamente de modo que elas possam se conectar a um público, por exemplo, um terapeuta. Portanto, a “história” de que a pessoa se lembra não é idêntica àquela que ela experimentou85. (BAL, 1997, p. 147,

tradução nossa)

Pode-se aplicar essa explicação de Bal (1997) ao relato que Rafael faz a Adão sobre a revolta de Satã no Céu. No Livro V,Rafael relata quem é o inimigo e como veio a se tornar assim, começando pela sua primeira revolta no Céu incitando suas legiões a se rebelarem com ele contra o Eterno. No Livro VI, continua o relato de como Miguel e Gabriel foram enviados para batalhar contra Satã e seus anjos.

Rafael é ordenado pelo Pai Eterno a fazer Adão saber que o inimigo caído do Céu está tramando a queda de outros em estado semelhante de bem-aventurança não por violência, mas por enganos e mentiras (PL V.239-243). O relato de Rafael sobre as proezas invisíveis aos sentidos humanos (PL V.565) advém de sua memória. Pela colocação de Bal (1997) a respeito da memória, a fala de Rafael pode estar sendo infiel à fábula, no entanto pode-se assumir que seu relato é fidedigno à fábula, porque Rafael foi enviado a Adão pelo Pai e porque a história (queda e intenção de Satã) se mostra coerente a esse respeito.

Finalmente para Bal (1997, p. 160, tradução nossa), o suspense é um processo psicológico, “os resultados dos procedimentos pelos quais faz-se o leitor ou a personagem fazer perguntas que são respondidas somente mais tarde86 [...]”. É possível que nem o leitor nem a

personagem possa responder às perguntas. Com relação a Paradise Lost enquanto épica, o suspense sobre o leitor não se mantém durante a leitura dos versos de um Livro, pois logo antes de cada primeiro verso Milton expõe o assunto (argument) do Livro de modo que o leitor leia em poucas linhas um resumo da sucessão dos eventos no respectivo Livro. Relativamente à trama inteira, pode-se considerar a existência de suspense durante a leitura dos resumos introduzidos no início de cada Livro. Contudo, com base nesses fatos, deduz-se que a manutenção do suspense não é o objetivo do autor durante a leitura da obra completa.

85“Memory is an act of ‘vision’ of the past but, as an act, situated in the present of the memory. It is often a

narrative act: loose elements come to cohere into a story, so that they can be remembered and eventually told. But as is well known, memories are unreliable – in relation to the fabula – and when put into words, they are rhetorically overworked so that they can connect to an audience, for example, a therapist. Hence, the ‘story’ the person remembers is not identical to the one she experienced.”

86 “[...] the results of the procedures by which the reader or the character is made to ask questions which are only

Sob a hipótese da exclusão da leitura dos resumos no início de cada Livro para que assim houvesse suspense ao longo da leitura de todos os versos de Paradise Lost, Milton inicia um suspense no Livro I. Em diálogo com Belzebu no Inferno, Livro I, Satã afirma que – após terem sido expulsos do Céu – não está tudo perdido (PL I.106), que Belzebu esteja certo de que fazer qualquer coisa boa nunca será sua tarefa, mas que sempre fazer mal é seu único deleite; que, se a Providência procurar gerar o bem, seu trabalho deve ser perverter esse fim (PL I.158-164). Demônios (Moloque, Astarte dentre outros) se reuniram com Satã no Inferno e ele diz que o espaço pode produzir novos mundos, que havia um rumor (fame) no Céu de que há muito tempo o Monarca no Céu pretendia criar e lá introduzir uma geração que escolheu favorecer como os filhos do Céu. Lá será talvez seu primeiro ataque (PL I.650-656). Faz-se assim no Livro I o início do suspense: a intenção de Satã vingar-se do Céu. Esse primeiro suspense se mantém até que o leitor saiba se Eva come ou não a maçã proibida – o clímax – no Livro IX.

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