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3 METODOLOGIA

4.4 Análise das variáveis de Registro de “À beira de um esquife”

Campo

Na cena analisada, o herói já sabe que as minas de prata não existem, fora uma ilusão de seu avô, o Moribeca, e de seu pai, Robério Dias. Ambos, cegos pela ignorância e pela ambição de descobrir riquezas imensas, viram, onde de fato só havia as paredes úmidas de uma caverna erma, banhadas pela luz do luar, filtrada por frestas, um portentoso palácio todo feito do metal precioso. A epígrafe utilizada neste trabalho alude a essa passagem do romance, onde José de Alencar parece sugerir que a riqueza de que o Brasil precisa não é aquela, fácil e material, mas outra, relacionada

aos valores que o herói representa. Foi o herói, com a sua capacidade de discernimento e, significativamente, “no dia em que Pedro Álvares Cabral avistou a terra brasileira” (ALENCAR, 1967, p. 509) , quem deu pelo engano, que inocentava o seu pai da acusação de traição, mas o deixava, a ele, Estácio, na mesma situação de miséria, e mais distante do seu amor. Ao retornar da expedição frustrada ao sertão, morrem o seu mestre Vaz Caminha e a sua amada Inesita, que tomara veneno para não ser esposa de outro. É nesse momento de desespero que o herói finalmente encontra as imensas riquezas que tanto perseguiu, as quais lhe vêm pelas mãos do vilão, o Padre Gusmão de Molina.

Relações

No capítulo, é estabelecido um contraste, importante para a compreensão do processo de idealização do herói, entre os seus valores e os do vilão do romance, cuja ação fora, pelo menos até esta parte da obra, motivada por ambição e cobiça.

A posse das minas de prata – que representava riqueza, poder e prestígio interessava tanto ao herói como ao vilão. Ao descobrir o paradeiro do roteiro perdido, o herói exclamara, “como acordando de um sonho”: “Assim, eu sou rico!” (ALENCAR, 1967, p. 27); em outra passagem, diante da antiga morada de Diogo Álvares, o Caramuru, e de sua esposa, Catarina Álvares, tronco de muitas das principais famílias da Bahia, o herói lamentara que todos tivessem “nobres casarias com muitas alfaias e trem de criados e cavalos, e engenhos famosos com grandes fábricas ou granjearias arrendados em mil arrobas de açúcar por ano”, alguns ocupassem “cargos importantes na governança do Estado”, e vivessem todos “à lei da grandeza”, enquanto ele, estranho para os de seu sangue, que nem o conheciam, fosse “pobre, decaído, proscrito da sua casa”, e tivesse como única herança “vergonha e miséria” (ALENCAR, 1967, p. 252). Todavia, a busca do precioso tesouro pelo herói, segundo o seu mestre Vaz Caminha, deve se a que “ele representa a reabilitação de vosso pai, a honra de vosso nome, e a felicidade de vosso amor”, ao que o herói responde: “Três coisas santas, por uma só das quais dera minha vida”. (ALENCAR, 1967, p. 186).

Já o Padre Gusmão de Molina, o vilão, é um ambicioso e inteligente espanhol; órfão, como o herói, porém de família pobre, viveu aventuras picarescas (narradas na segunda parte do romance) em busca de descobrir “um terceiro mundo” (ALENCAR, 1967, p. 150), como Colombo descobrira um segundo. Torna se jesuíta ao saber que é o Geral da Companhia quem “Move o mundo” (ALENCAR, 1967, p. 163), e o “terceiro mundo” materializa se ao saber da história das minas de prata, que passa a buscar, utilizando se de todos os recursos que a condição de jesuíta lhe dá, e de todos os meios que a ambição lhe inspira: a manipulação, a falsidade, o roubo, a crueldade – e quase o assassinato – são usados por Molina para alcançar o seu objetivo, que “era o segredo das minas de prata, esse pedestal que ele pretendia assentar à sua glória, e sobre o qual baseava a esperança ao generalato da Ordem, e talvez mais tarde ao pontificado”. (ALENCAR, 1967, p. 471).

Há, portanto, uma ambição que enobrece, e uma que envilece. O principal centro de interesse, na cena que analisarei, diz respeito à relação do herói com as riquezas e com as pessoas do seu círculo afetivo mais próximo. Essas duas relações representam valores fundamentais para entender a construção da idealização.

Modo

O trecho analisado é composto, à exceção de uma única fala, pela voz do narrador, que constrói, linguisticamente, a experiência do herói e, em certos momentos, parece pretender fundir a sua voz e a dele numa só, construindo, diante do leitor, a avaliação dessa experiência, traduzida na forma de valores.

4.5 Análise da Transitividade e da Avaliatividade / Modalidade (disponho o texto do capítulo na íntegra, para facilitar a compreensão da análise).

Repito a codificação utilizada:

Caixa Alta Processos:

MATERIAL (Ma), RELACIONAL (Re), MENTAL (Me), COMPORTAMENTAL (Co), VERBAL (Ve) e EXISTENCIAL (Ex).

Sublinhado Participantes e Circunstâncias

Negrito Avaliatividade e Modalidade

(+) ou de ( ) Avaliatividade, positiva ou negativa.

(↑) ou (↓) Graduação, com intensificação ou com atenuação da Avaliatividade.

À beira de um esquife

O fogo lavrava ainda na casa que fora do bom Vaz Caminha.

Sem desígnio, trazido por uma espécie de atração, voltara Estácio direito ao lugar sinistro, então deserto. Perdida a esperança de salvar o advogado e aplacada a curiosidade selvagem da turba, cada um tratara de recolher.

O mancebo entrou pela portinha do quintal, como outrora, durante a infância, nas diurnas visitas que fazia a seu padrinho e mestre. No horto, próximo ao oitão, estava a cacimba, em cuja borda de tijolo o velho doutor, quando saía fora por tarde, costumava sentar se.

Estas recordações da infância flutuavam entre a dor na alma do mancebo, como as ondulações da sombra no seio de uma treva espessa. Eram raios de mel, tênues e sutis, que mais contrastavam o amargor do presente.

Tempo esquecido esteve ali sentado à beira do poço, já recordando o passado, já contemplando com uma curiosidade incompreensível o jogo das chamas sobre as ruínas do edifício. Essa labareda, a crepitar alegremente, a espreguiçar se em ondulações voluptuosas, o estava enamorando. Como que a flama lhe abria os braços sensuais; e desfazia se já em carícias para recebê lo. Ferviam ali sorrisos em brasa, beijos em combustão para o consumirem num só e rápido afago.

Ainda o mancebo ergueu se para acudir ao aceno da labareda palpitante; mas o reteve uma lembrança. Desejava contemplar ainda uma vez a beleza material daquela que tanto amara em vida.

Com o movimento, que fizera para erguer se, caiu um objeto, e produziu rumor. Há no meio das dores acerbas, curiosidades frívolas, sintomas de uma caducidade moral. Estácio foi presa de um impulso igual: ergueu o objeto, que examinou atenta e minuciosamente. O que era? Como ali se achava?

A pouco e pouco as reminiscências espedaçadas se foram reatando; lembrou se vagamente da imagem encanecida do P. Molina e das palavras que ele proferira entregando lhe o cofre. No começo a cena se desenhou como um quadro secular despregado dos muros de vetusto castelo; depois avivou se ao pungir dos recentes golpes. Revistando o cofre, viu o mancebo uma pequena chave pendente; experimentou a no fecho; deu a volta; abriu a tampa.

Um jorro fulgurante de límpidas centelhas ESGUICHOU de dentro, Ator Atributo Atributo Ma Circunstância Graduação Força () Apreciação (+) Graduação Força () e DESLUMBROU a vista de Estácio. O cofre ESTAVA cheio de grandes

diamantes;

Ator (Ele) Ma Meta Portador Re Atributo

HAVIA ali encerrada, naquele estreito vão de algumas polegadas, uma riqueza

estupenda.

Ex Circunstância Atributo Circunstância Existente Atributo

Graduação Força () Polaridade Polaridade

Mais uma ironia amarga da fortuna, Atributo Atributo

Afeto ( )

que o ESBOFETEAVA assim com a opulência, quando dela não CARECIA, Ator Meta Ma Circunstância Fenômeno Circunstância Experienciador (Ele) Me Circunstância

Afeto ( ) Tempo Polaridade Av. social ( ) Token HAVENDO antes, nos dias da ambição, nas horas de esperança,

Ator (Ela) Circunstância Circunstância Tempo Polaridade

ABATIDO seu pundonor com a carranca da indigência!

Ma Meta Circunstância Afeto ( ) Graduação Força ()

Av. social ( )

Discussão: As linhas iniciais, em termos de Avaliatividade, mostram, pela

repetida utilização do recurso à Graduação de força ascendente, a intenção do narrador de realçar a grandeza da riqueza que chega às mãos do herói. As escolhas feitas na Metafunção Ideacional reforçam essa avaliação: assim, “jorro fulgurante” é Ator dos Processos Materiais “esguichou” e “deslumbrou”; “uma riqueza estupenda” é o Existente do Processo Existencial “havia”; e o Processo Relacional “estava”, que tem como Portador “O cofre”, tem como Atributo “cheio de grandes diamantes”. O herói fragmentado, reduzido a um olhar (“deslumbrou a vista de Estácio”), e olhar embaciado, turvado, ofuscado pelo fulgor das riquezas – aparece como Meta do Processo, ou seja, como aquele que recebe o impacto da ação. Na sequência do trecho, predomina o Afeto negativo na avaliação, feita pelo narrador, da “fortuna”, sorte ou destino do herói. O encontro com a riqueza é chamado de “ironia amarga” (dois Atributos negativos de um Processo Relacional em elipse, em termos de Transitividade). A ironia é que a “fortuna” (Ator) “esbofeteava” (Processo Material) o herói (Meta) “com a opulência” (Circunstância), “quando dela não carecia”, tendo antes, “nos tempos da ambição” (Circunstância), “abatido” (Processo Material) “o seu pundonor” (o herói, reduzido agora à sua altivez e ao seu sentimento da própria honra e valor, continua a ser Meta do Processo) “com a carranca da indigência” (Circunstância). Os dois verbos de Processo Material (“esbofeteava” e “abatido”) sugerem a violência sofrida pelo herói, Meta desses Processos. As Circunstâncias sintetizam a situação do herói, que aparece como uma “ambição altiva” entre dois extremos

sociais, a “opulência” e a “indigência”, esta última com Avaliação Social negativa à mostra devido ao seu Atributo, “carranca”, que indica ser ela sombria, feia, ameaçadora. Celso Furtado (2012, p. 76), analisando a economia do Brasil à época em que José de Alencar situa o seu herói, afirma que a atividade econômica principal, estimulada pelo governo metropolitano, concentra se nas mãos de poucos privilegiados, visa ao mercado externo e é obtida à custa da escravidão dos negros estrangeiros e dos índios nativos. O regime é segregador, violento, cruel, reduzindo a maior parte da população do país à condição de instrumento físico, mercadoria da outra parte, composta pelos senhores. À luz da análise feita em “O círculo vicioso da fortuna adversa”, este trecho parece, até este ponto, reafirmar o valor do lugar social privilegiado. No ponto a seguir, porém, o narrador explicará por que o herói “não carecia” mais de riquezas. A hierarquia dos valores será reproposta.

Estácio já não PERTENCIA à terra, suas núpcias ERAM do túmulo; Possuído Circunstância Re Possuidor Possuído Re Possuidor Tempo Polaridade Av. social ( ) Token Polaridade

o himeneu de sua alma com a de Inês DEVIA CELEBRAR se no céu.

Meta Ma Circunstância

Probabilidade Av. social (+) Token Lá HÁ as galas da bem aventurança e as irradiações da luz divina;

Circunstância Ex Existente

Av. social (+) Graduação Força () Av. social (+)

não se CARECEM das chispas e do brilho material.

Circunstância Experienciador (Indeterminado) Me Fenômeno Polaridade Graduação Força (↓) Av. social ( )

Ninguém mais lhe RESTAVA na terra a quem FAZER dom de tamanha riqueza; Ator Beneficiário Ma Circunstância Beneficiário Ator (Ele) Ma (DAR) Meta

Graduação Força () Graduação Força () todas as suas afeições TINHAM VOADO para o seio do Criador a ESPERÁ lo; Ator Ma Circunstância Comportante (Elas) Co Av. social (+) Token

e uma, uma das mais queridas, ESTALARA com violência. Ator Ma Circunstância Afeto ( )

Entretanto MURMURAVAM os lábios do mancebo:

Circunstância Ve Dizente Tempo

– Ímpia sorte!... DEVIAS CONHECER me, pois desde a infância contigo LUTO!...

Experienciador (Tu) Me Fenômeno Circunstância Meta Ma

Julgamento ( ) Token Obrigação Frequência

QUERES DEPRAVAR me o coração ACENDENDO nele a cobiça!...

Ator (Tu) Ma Meta Ator (Tu) Ma Beneficiário Meta

Inclinação Julgamento ( ) Token Av. Social ( )

PUDESSE eu, que DISPERSARA com um sopro todo este imenso tesouro por

ti ACUMULADO!...

Ma Ator Ator (Eu) Ma Circunstância Meta Ma Ator Atributo

Inclinação Graduação Força () Av. Social ( )

Discussão: O herói não carece mais de riquezas e sua obtenção, neste

momento, torna se uma “ironia”, porque “todas as suas afeições tinham voado para o seio do Criador a esperá lo”. O Processo Material utilizado (“voado”) e a Circunstância ou o destino das pessoas amadas pelo herói (“para o seio do Criador”) explicitam o valor da religiosidade, componente do herói, e que, certamente, em termos de avaliação, fazia eco na comunidade católica onde o autor de encontrava o seu público. Há uma Avaliação Social positiva implícita na frase, já que se avaliam o herói e seus entes queridos como dignos e escolhidos do “Criador”. O Ator do Processo (“todas as suas afeições”) fora antecipado na frase anterior do texto, na forma do pronome “quem”, como Beneficiário do Processo Material “fazer dom de” (equivalente a “dar”), cuja Meta é “tamanha riqueza”. Mortas na terra as suas afeições, o herói deixa de ter esse Beneficiário que justificava e dava sentido à sua luta por riqueza e lugar social privilegiado. Na exprobração que faz à sua “sorte” personificada, o herói, agora inteiro como Ator do Processo Material “luto”, a acusa, num Julgamento negativo, de querer “depravar” (ou seja, degenerar moralmente) o seu coração, “acendendo nele a cobiça”. A riqueza em si, portanto, não tem valor, serviria unicamente para gerar a “cobiça”, que recebe Avaliação Social negativa neste trecho e, pode se dizer, em todo o romance, quando se contrastam pensamentos, sentimentos e ações do herói e seus amigos e dos vilões. Nas primeiras linhas do trecho analisado, o herói aparece entre a terra (com Avaliação Social negativa) e o céu (com Avaliação Social positiva); é no céu, diz o narrador, que “o himeneu de sua alma com a de Inês devia celebrar se”. A passagem reforça a hierarquia de valores proposta e mostra, como sugere Pirolla (2002, p. 86), que “a problematização do ideal no plano amoroso é um dos recursos mais utilizados por Alencar para dar a conhecer a superioridade do amor espiritual”. Também no plano das riquezas, o narrador confrontará céu (espírito) e terra (matéria), valendo se da oposição entre Avaliações Sociais (positivas e negativas) e Graduações de força (ascendente e descendente): assim, referir se á às “galas da bem aventurança e irradiações da luz divina”, em termos de Transitividade, Existente do Processo Existencial “há”, que alude àquilo que se encontra no céu, onde “não se carecem das chispas e do brilho material”, Processo Mental com Experienciador indeterminado – ou seja, referindo se ao herói, como também ao leitor e a toda comunidade e Fenômeno, encabeçados pela Circunstância de negação. Entende se aqui o porquê de o narrador, no início do trecho anterior,

realçar a grandeza da riqueza que chega às mãos do herói. A Graduação de força ascendente de que faz uso lá repercute aqui na avaliação que se faz da Atitude, tanto do herói como do narrador, diante das riquezas materiais e espirituais. Dá se, desse modo, uma relativização do valor do lugar social privilegiado.

Uma lembrança atravessou o espírito de Estácio. Ouvira outrora no pátio uma renhida controvérsia sobre a combustão do diamante, então simples conjetura dos sábios que só mais tarde foi verificada por experiências repetidas. O mancebo aproximou se do edifício incendiado: a parede do oitão, de todo desmoronada, descobria o ladrilho do que fora gabinete de Vaz Caminha.

ENCHEU Estácio a mão de diamantes e ATIROU os sobre aquele pavimento abrasado;

Ma Ator Escopo Ator (Ele) Ma Meta Circunstância Julgamento (+) Token

umas após outras, lá FORAM as riquezas que ENCERRAVA o misterioso cofre. Circunstância Ma Ator Meta Ma Ator

Av. social ( ) Token

A todas DEVOROU o incêndio em poucos instantes:

Meta Ma Ator Circunstância Av. social ( ) Token Av. social ( ) Token Tempo

o carbono, que se CRISTALIZARA no seio da terra, VOLATIZOU se ao fogo e DERRAMOU se na atmosfera.

Ator Ator Ma Circunstância Ma Circunstância Ator (Ele) Ma Circunstância

Av. social ( ) Token

Naquela noite, os viventes, que HABITAVAM por aí acerca, RESPIRARAM um

ar miasmático

Circunstância Ator Ator Ma Circunstância Ator (Eles) Ma Escopo Atributo

Tempo

Av. Social ( ) Token

IMPREGNADO dessas exalações milionárias. Atributo

Av. Social ( ) Token

Discussão: O herói, que chamara de fogo a cobiça no trecho anterior, usa contra

ela o fogo. Exibindo toda a sua fortaleza moral, ele é Ator do Processo Material “atirou”, cuja Meta é o pronome “os” (referindo se aos diamantes, que representam as riquezas, instrumentos da cobiça), na oração que tem como Circunstância “sobre aquele pavimento abrasado”. Em termos de Avaliatividade, há um Julgamento positivo implícito da Atitude do herói, que marca a exaltação do valor da fidalguia de caráter. O herói mestiço é dono de um caráter inteiriço.

No romance, esse valor é avaliado positivamente em diversas passagens. Na primeira parte da obra, o mestre Vaz Caminha diz a Estácio: “Não conheceis um português!”, e justifica dizendo que, com a sede de ouro que traz ao Brasil tantos aventureiros, “os costumes dos nossos maiores se perderam; mas entre estes ainda há cavalheiros que sabem o que devem à sua honra e aos seus brios.” (ALENCAR, 1967, p. 28). Na terceira parte, há os diálogos do terceiro e sétimo capítulos, em que aparece o padrão cavalheiresco ideal na imagem do fidalgo D. Diogo de Mariz (também personagem em O ), que deseja a amizade do herói, ao reconhecer nele “um digno e valente coração” (ALENCAR, 1967, p. 382). Se em , o fidalgo português D. Antônio de Mariz diz ser Peri “um cavalheiro português no corpo de um selvagem”, ao louvar lhe o “caráter, nobreza e sentimento” (ALENCAR, 1967, vol. 1, p. 35 111); em , D. Diogo de Mariz, o seu filho, acolhe Estácio Dias Correia o herói mestiço como a um igual na fidalguia de caráter. Não se faz referência à raça do herói nesta passagem. O trecho analisado se encerra com o narrador corroborando a Avaliação Social negativa das riquezas materiais, ao dizer que “Naquela noite, os viventes, que habitavam por aí acerca, respiraram um ar miasmático impregnado dessas exalações milionárias.” O Atributo “miasmático” se refere ao vocábulo que, segundo Sérgio Buarque de Holanda (2002, p. 264), “durante tantos séculos servira de espantalho a navegantes e guerreiros”, que atribuíam às exalações pútridas de animais e vegetais em decomposição a contaminação das doenças infecciosas e epidêmicas.

Contaram depois alguns mesteirais, saídos na madrugada para a tenda, que viram Estácio adormecido na relva do horto, com a cabeça sobre o parapeito do poço. Ao sair do sol, porém, lá não era já. Foi essa a última memória que houve na cidade do Salvador do infeliz mancebo. Muita vez pelo tempo adiante deu ele matéria para longas práticas às velhas comadres baianas; muita suposição se fez; certeza de seu fim desgraçado, porém, nunca houve.

O seguinte dia foi de tristeza para a cidade do Salvador. A fidalguia naqueles tempos não tinha somente o privilégio da riqueza e fausto, nem somente enfeudava as festas e gozos da vida. Arrogava se também a tirania fúnebre do luto. Quando se finava alguma existência da nobreza, o nojo não ficava na família, nem mesmo na classe; a plebe devia participar dele, e sentir as penas e mágoas dos grandes.

Desde a alvorada que os sinos de todas as igrejas começaram a dobrar por finados e continuaram sem interrupção. Se alguma suave flor de alegria despontava nesse dia algures pela cidade, em casa de pobre, logo a finava o bafejo fúnebre que passava. O som vibrante do bronze traspassava o coração e nele vertia o pesar e o susto.

Nesta ocasião, porém, o luto da cidade do Salvador não é uma opressão da fidalguia; rebenta espontâneo d’alma do povo. Não há quem não pranteie com lágrimas sinceras a donzela infeliz, arrebatada na flor de sua idade e beleza. A esta lágrima acrescem as suspeitas sinistras sobre o infausto passamento da noiva, e também o terror pela nova, ainda vaga, mas exagerada, das outras catástrofes dessa noite angustiada.

Durante o dia não se viam nas ruas senão grupos de gente merencória, de passo arrastado e vozes soturnas. Praticavam em tom submisso do caso desventurado; uns conjeturando sobre as causas do fato; outros discorrendo sobre a pompa do saimento. Depois se dispersavam cabisbaixos para se formarem além em outra roda. Entanto cruzavam em diversos sentidos oficiais mecânicos , atarefados com a armação do catafalco e essa, assim como da armação da casa de Cristóvão.

Caiu enfim a noite.

A rua, da Sé chamada, onde era a casa de Cristóvão, estava a não poder de gente. O popular curioso de assistir ao fúnebre saimento, rebentava de uma e outra banda. Vinham chegando as

confrarias dos Defuntos, da Misericórdia, e outras com seus guiões na frente. Compareceu o governador D. Diogo de Menezes, sua comitiva, e os mais oficiais de El Rei.

Já o préstito se alinhava pela rua além.

Nesta ocasião o fluxo e refluxo da multidão aproximou duas pessoas que ali estavam imóveis para assistir ao triste espetáculo. Uma delas deve ser Zana, a feiticeira, envolta em seu longo tabardo vermelho, coberto de figuras cabalísticas. A outra mostra apenas o vulto de um cavalheiro, coberto de negros arneses e viseira caída. A espada lhe bate o flanco; esguia e longa adaga cruza a cinta; apoia o braço esquerdo sobre alto e pesado montante.

Quando a bruxa, impelida pela lufa lufa, bateu contra o ombro do cavalheiro, este abaixou para ela um olhar lento e inerte; enxergando a, porém, sentiu alguma emoção, que se revelou por ligeiro sobressalto. Seu guante cerrou com ímpeto o braço da mulher.