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3 METODOLOGIA

4.3 Discussão geral de “O círculo vicioso da fortuna adversa”

A análise da Transitividade – em termos de quantidade – mostra os seguintes resultados, de acordo com o Gráfico 1.

Há 152 Processos Verbais no trecho, dos quais 68 são Materiais (Ma), 32 Mentais (Me), 33 Relacionais (Re), 12 Verbais (Ve), 5 Comportamentais (Co) e 2 Existenciais (Ex).

Gráfico 1 – Ocorrência de Processos Verbais no trecho analisado de “O círculo vicioso da fortuna adversa”:

Processos Verbais 45% 21% 22% 3% 1% 8% 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80%

Material Mental Relacional Comportamental Existencial Verbal

É possível acompanhar, nas análises feitas a cada movimento significativo do texto, a construção e hierarquização de diversos valores, sem os quais não se pode

entender o processo de idealização do herói de . O Sistema de Transitividade mostra a construção de uma realidade pela língua, e a sua análise oferece intravisões sobre a natureza das relações estabelecidas entre as personagens, as percepções do escritor sobre ações, eventos e situações narrados, bem como sobre os modos pelos quais a interpretação do leitor é orientada em determinada direção.

Pode se dizer, após essas análises, que o herói busca um lugar social privilegiado, entendendo se por isso a posse de riquezas e honras, sintetizada na palavra “casa”, cuja posse, todavia, é perseguida, ao menos em parte, por ser a condição para que o herói possa ter o seu amor (o valor fundamental do amor é construído no decorrer de todo o romance e aparece nos três trechos analisados neste trabalho). O fidalgo espanhol, pai da jovem com quem o herói deseja casar se, o qual tem como valor supremo a fidalguia de linhagem, o rejeita apesar das fabulosas riquezas e do poder e prestígio que a posse das minas de prata promete dar à casa do herói por ser ele descendente de português com gentio. O herói mestiço não fará a defesa da mestiçagem não diretamente , em vez disso, proporá o valor da fidalguia de caráter.

Destaco, neste primeiro trecho analisado, os valores do lugar social privilegiado e da fidalguia de caráter como fundamentais para a compreensão do modelo moral que o herói representa, e que é proposto à comunidade, no romance de José de Alencar, como idealização.

A construção do valor do lugar social privilegiado é feita, predominantemente, com verbos de Processo Material (ex.: “adquiridas”, “saberei conquistar” e “vestirá”), com Ator representado pelo próprio herói ou por expressão referente à sua ascendência (ex.: “por seus ascendentes”, “eu”, “a memória de meu pai”) e Meta referindo se ao valor almejado (ex.: “os haveres abastados e as honras”, “grandes honras” e “novo lustre”). Aparecem também, em menor número, verbos de Processo Relacional, que estabelecem, em termos de Possuidor e Possuído, o vínculo almejado entre a casa do herói e aquilo que ele tem como valor (“A minha casa terá outro esplendor”), ou, em termos de Portador e Atributo, realizam o objetivo de atribuir certa característica a uma entidade (“Suas riquezas serão incalculáveis”), nesse caso, o Atributo tem também, em termos de Avaliatividade, a função de reforçar a Graduação, ou seja, de aumentar a

intensidade da avaliação, o que acontece, pontualmente, nos outros exemplos mencionados, já que o herói necessita persuadir o fidalgo; a esse respeito, Fairclough (2001) cita Halliday, para quem “a linguagem é como é por causa de sua função na estrutura social”.

A Avaliatividade, com predomínio da Avaliação Social positiva, ora inscrita, ora evocada, é essencial à construção do valor do lugar social privilegiado e para guiar o leitor quanto à atribuição de valor. Segundo Chang e Mehan (2006), as representações políticas ressoam com o conhecimento de mundo do público ou audiência; neste caso, possivelmente por se tratar de valor compartilhado pelos interlocutores, o herói e o fidalgo – e, possivelmente, até pelo leitor , há uma concentração de avaliações idênticas, o que não deixa, ao leitor, margem para dúvidas quanto ao seu teor. Deve se ter em mente, também, que o fio condutor do enredo do romance é a busca por um tesouro fabuloso, e que aqueles que o procuram, fazem no por aquilo que esse tesouro poderia comprar: um lugar social privilegiado.

A proposta de uma fidalguia de caráter como valor surge, no trecho analisado, do debate sobre a questão da mestiçagem, possivelmente a questão ao largo da qual José de Alencar não passaria, já que pretendeu propor, em meados do século XIX, um herói para representar, num plano de idealização, a identidade nacional de um país marcado pela miscigenação racial. Caio Prado Júnior (2004, p. 274) diz que a “diferença de raça”, no Brasil Colônia, “vem, se não provocar, pelo menos agravar uma discriminação já realizada no terreno social”. Ela “rotula o indivíduo, e contribui assim para elevar e reforçar as barreiras que separam as classes.” À época de José de Alencar, começavam a aparecer os discursos – que se tornariam muito populares no Brasil de teóricos das raças e darwinistas sociais, como E. Renan (1823 92) e o conde Gobineau (1816 82): para este, os mestiços representavam uma “sub raça decadente e degenerada”; para aquele, os grupos negros, amarelos e miscigenados “seriam povos inferiores não por serem incivilizados, mas por serem incivilizáveis, não perfectíveis e não suscetíveis ao progresso” (SCHWARCZ, 2014, p. 82 84). Gilberto Freyre (2004, p. 104), quase um século depois da publicação de , proporá as suas teses contra “os alarmistas da mistura de raças ou da malignidade dos trópicos”, que

colocam a sociedade brasileira como exemplo de sua tese de “degeneração do homem por efeito do clima ou da miscigenação”.

No romance, o fidalgo espanhol recusa a mão da filha ao herói, porque ela “pertence à melhor nobreza das Espanhas para se aliar com a descendência bastarda de um simples cavalheiro português, em cujas veias corre uma mistura de sangue gentio”. No argumento do fidalgo, de cunho aristocrático e racista, contrapõem se grupos sociais por meio da Avaliação Social (positiva e negativa) e da Graduação de força (ascendente e descendente). O valor da fidalguia de caráter será construído como resposta a esse argumento e as escolhas que realizam as Metafunções Ideacional e Interpessoal constroem essa resposta por diferentes modos: primeiro, pela fala do herói, que se vale de Atributos tanto ao chamar o fidalgo de “neto de reis Godos”, questionando, assim, a validade de uma fidalguia de linhagem e, de certo modo, desqualificando a discussão sobre a mestiçagem, como ao dizer que o fidalgo não será pai do “mancebo órfão e honrado“, mas, sim, do “traidor que vendeu a pátria e seu rei ao estrangeiro”, patenteando, por meio da Avaliatividade, a superioridade do valor do caráter sobre o da linhagem. Segundo, pela ação do herói (“O mancebo despedaçou o papel e lançou ao chão os fragmentos.”), como ao destruir a prova do crime do filho do fidalgo, por respeito à honra do pai de sua amada, embora este o rejeite. Na estrutura, o herói é Ator de um Processo Material e sua ação recebe um Julgamento positivo. Terceiro, enfim, pela fala do narrador, que para orientar a atribuição de valor por parte do leitor, faz Julgamentos positivos relacionados ao herói, e o contrário em relação àquilo que se lhe opõe (“Estácio retirou se dessa casa, deixando a admiração no ânimo soberbo do inflexível fidalgo”). Na estrutura, de Processo Material, destacam se o Escopo (“admiração”) e os Atributos (“soberbo” e “inflexível”).

Como se dá no trecho analisado, o contraste entre avaliações relativas ao herói e aos vilões, ao longo de todo o romance, acumula Julgamentos e Avaliações Sociais positivos a favor do herói. A fidalguia de caráter, proposta como resposta à delicada questão da mestiçagem, refere se a algumas das características do herói: discrição, espírito observador, agilidade mental, capacidade de discernimento, vivacidade de ânimo, tenacidade, autocontrole, astúcia, habilidade de interrogar, autoridade nata, coragem, destreza bélica, beleza física, busca de fama e fortuna, lealdade, honradez a

toda prova, senso moral, respeito à vida, defesa da justiça, culto à pátria, culto à imagem paterna, cavalheirismo, linguagem polida, gosto requintado, nível cultural elevado, cultivo da amizade, presteza no servir aos amigos, cultivo do respeito, defesa da verdade, religiosidade, cultivo do amor romântico. Marczyk (2006, p. 27 9) relaciona algumas dessas características ao caráter prudente, “conduta pragmática valorizada na literatura do XVII”, conforme consta na obra de Baltasar Gracián ( 0 , 1647). Creio que também poderiam ser relacionadas às características que o discurso racial nascente negará ao mestiço, considerado degenerado, física e moralmente; afinal, Estácio é idealizado como possuidor de beleza física, inteligência incomum e valores morais sólidos.

Lemke (1998) mostra que as avaliações se propagam ou se ramificam de um elemento a outro da estrutura textual, podendo, inclusive, mudar de sinal; a avaliação positiva do lugar social privilegiado será, no segundo trecho que analisarei, relativizada, com um consequente reforço do valor da fidalguia de caráter. A idealização se relaciona com a construção de valores no texto, que é dinâmica, por isso se revela aos poucos e à luz dos contextos cultural e ideológico.

Prossigo com a análise de um segundo trecho do romance, do capítulo “À beira de um esquife”.

4.4 Análise das variáveis de Registro de “À beira de um esquife” (capítulo XXVII,