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3 METODOLOGIA

4.9 Discussão Geral do “Epílogo”

A análise da Transitividade – em termos de quantidade – mostra os seguintes resultados, de acordo com o Gráfico 3.

Há 51 Processos Verbais no trecho, dos quais 35 são Materiais (Ma), 3 Mentais (Me), 8 Relacionais (Re), 1 Verbal (Ve), nenhum Comportamental (Co) e 4 Existenciais (Ex).

Gráfico 3 – Ocorrência de Processos Verbais no trecho analisado do “Epílogo”:

Processos Verbais 69% 6% 16% 0% 8% 2% 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80%

Material Mental Relacional Comportamental Existencial Verbal

No último trecho analisado de , vê se a conclusão da construção linguística do processo de idealização, com a construção do espaço extraordinário habitado pelo herói ao fim do romance, e o estabelecimento de um vínculo entre ele e a comunidade brasileira do século XIX, tempo de José de Alencar. A natureza do processo de idealização e os valores principais exaltados tornam se claros.

Segundo Halliday, a língua tem uma função representativa, que serve para exprimir conteúdos, e o falante ou o escritor a utiliza “para dar forma à sua maneira de olhar os fenômenos do mundo” (FOWLER, 1994, p. 252). O vínculo entre o herói e a comunidade é representado, no texto, por meio dessa Metafunção Ideacional, que possibilita ao narrador fazer o entrelaçamento entre o tempo e espaço da narrativa e o

tempo e espaço da comunidade, sugerindo por meio das Circunstâncias de espaço e tempo, principalmente, que criam a ilusão de planos espaciotemporais diversos no interior da obra – uma continuidade entre ficção e realidade, entre o mito do herói e a história da comunidade, de onde fala o autor narrador. Expressões como “Há bem pouco tempo ainda” e “nas cercanias da linda Baía de Camamu” contribuem para a construção desse vínculo.

De forma mais complexa, a Metafunção Ideacional também constrói o vínculo entre o herói e a comunidade por intermédio da aura intertextual – a expressão é de Fairclough – que traspassa . A propósito cita Foucault, para quem “não pode haver enunciado que de uma maneira ou de outra não reatualize outros” (FAIRCLOUGH, 2008, p. 133). As escolhas feitas por José de Alencar ao estruturar o enredo do romance em torno de uma caça ao tesouro, e ao esboçar um de visão do paraíso, para construir o espaço especial habitado pelo herói no fim da obra, são sugestivas para um leitor com algum conhecimento da história do Brasil, pois, como diz Fairclough, citando Kristeva, a intertextualidade implica “a inserção da história (sociedade) em um texto e deste texto na história” (2008, p. 134).

A caracterização do espaço habitado pelo herói (em termos de Avaliatividade, toda a descrição é marcada por Afeto, Apreciação e Avaliação Social positivos) é feita com a justaposição de elementos lexicais mais ou menos precisos semanticamente. Embora se faça referência a uma localidade próxima à cidade do Salvador (“Baía de Camamu”) e à natureza típica circundante, a presença de um de visão do paraíso (cujos elementos são: natureza vigorosa, clima ameno, canto de pássaros, eterna primavera, ausência de necessidades materiais, juventude e beleza viçosa dos amigos, forma da habitação do herói)4, faz desse espaço um lugar mítico idealizado. De fácil acesso ao leitor, como deve ser um ou roteiro cultural (CHANG; MEHAN, 2006), a casa ilha coração, às margens do rio comunidade, a um tempo natural e sobrenatural, vincula o herói à comunidade e, ao mesmo tempo, coloca o num outro mundo, onde os seus valores – que vimos sendo construídos nas duas primeiras análises deste trabalho, e que são confirmados nesta terceira – se realizam plenamente.

Trazendo para outro contexto uma frase de Sérgio Buarque de Holanda (2002, p. 4), que a utiliza ao se referir a pensadores do século XVII (tempo da narrativa de

): José de Alencar não pode ser contado entre aqueles que “não hesitam em ataviar, idealizar ou querer superar a qualquer preço o espetáculo mundano.” O seu herói não logra mudar as relações sociais existentes no mundo representado na obra: continuam a existir a fidalguia de linhagem, os privilégios de raça, a cobiça e os lugares sociais privilegiados. Porém, em sua aventura, constrói valores como o amor, a religiosidade, a fidalguia de caráter, e, sobretudo, constrói a dignidade para o homem brasileiro comum, mestiço e modesto. Passando a um outro mundo, à sua edênica casa ilha coração, à margem do rio comunidade e da própria vida, o herói é proposto como um modelo moral, um ideal.

O processo de idealização envolve, portanto, a construção do herói, personificação de valores tidos como ideais, e a sua proposição à comunidade, como ideal moral. Para Fairclough, o discurso é socialmente construtivo, e constitui sujeitos e relações sociais, sistemas de conhecimento e crença. (2008, p. 58). Falar de idealização em – considerando os contextos situacional, cultural e ideológico da obra é falar de deslocamentos no processo de construção desses sujeitos e relações sociais, no sentido da tentativa de construção de uma identidade desejável para o povo de um país que se formava.

O estudo da microestrutura do texto, com a análise das Metafunções Ideacional (Sistema de Transitividade) e Interpessoal (Avaliatividade), relacionadas à construção da experiência e da interação, permite ao leitor acompanhar esse processo e formular um juízo sobre ele, do qual juízo, como diz Fowler (1994, p. 3), pode se, eventualmente, discordar, mas, graças ao fato de partir de estruturas objetivas da língua, torna se, pelo menos, possível examinar e discutir a sua pretensão em relação ao texto.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta desta dissertação de mestrado foi empreender uma análise linguística do processo de idealização do herói do romance , publicado pelo escritor cearense José de Alencar, na década de 1860, no contexto cultural do Romantismo e da independência política do Brasil. Justificou a pesquisa o interesse, por parte do seu autor, de estudar a categoria da idealização (potencial reveladora de aspectos da história do Brasil) a partir do exame da microestrutura do texto. O apoio teórico metodológico veio da Gramática Sistêmico Funcional, da Linguística Crítica e da Análise do Discurso Crítica; mais precisamente, foram estudadas as Metafunções Ideacional (Sistema de Transitividade) e Interpessoal (Sistema de Avaliatividade). A pesquisa deveria responder às seguintes perguntas: (a) Como se realiza a idealização do herói em ? (b) Que escolhas léxico gramaticais são feitas, em termos das Metafunções Ideacional e Interpessoal para expressar essa idealização?

Os resultados mostram que a idealização, em , é um processo complexo que envolve não só a construção do herói, personificação de valores tidos como ideais, mas também a sua proposição à comunidade os brasileiros contemporâneos do autor, e também os da posteridade, preocupação constante de José de Alencar na forma de um ideal moral. As escolhas léxico gramaticais feitas para construir a experiência do herói (Metafunção Ideacional) e avaliá la (Metafunção Interpessoal) são fundamentais para a construção do processo de idealização pelo autor, e para a sua compreensão pelo leitor.

Segundo Fowler (1994, p. 22), “o papel que as estruturas linguísticas desempenham na literatura é uma função das relações entre a construção textual e as condições sociais, institucionais e ideológicas da sua produção e recepção”. Em seu desejo de construir uma identidade para os brasileiros no momento da formação do seu país, José de Alencar, cuja vida “era uma perpétua oficina” (Machado de Assis apud VIANA FILHO, 2008, p. 399), propõe se a construir, por meio do seu herói idealizado, uma dignidade para o brasileiro comum, mestiço e modesto; e, em oposição à fidalguia de linhagem, aos privilégios de raça, à ambição e à cobiça, propõe os valores da simplicidade, do amor romântico, da religiosidade e da fidalguia de caráter como ideais.

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APÊNDICE

A noção de idealização

Para falar sobre a construção da idealização no romance , de José de Alencar, adoto como ponto de partida a obra de Antonio Candido. O eminente historiador da literatura brasileira usa em diversas passagens de sua interpretação de obras do Romantismo brasileiro em geral, e da obra de José de Alencar em particular, o termo “idealização”, tanto na forma do substantivo mencionado, como na dos verbos “idealizado” e “idealizar”, ou ainda na do substantivo ou adjetivo “ideal”. Assim, referindo se à obra de Alencar, dirá que nela “reponta a aspiração de heroísmo e o desejo eterno de submeter a realidade ao ideal.” (1981, vol.2, p. 224); que toda ela, “por vinte anos, será variação e enriquecimento dessas duas posições iniciais: a [...] e a idealização heroica dA .” (1981, vol.2, p.221); e por fim, que ela significa, em nosso Romantismo,

“o advento do herói [...] Peri, Ubirajara, Estácio Correia (

), Manuel Canho ( C 3 ), Arnaldo Louredo ( 8 )

brotam como respostas ao desejo ideal de heroísmo e pureza a que se apegava, a fim de poder acreditar em si mesma, uma sociedade mal ajustada, em presa a lutas recentes de crescimento político.” (1981, vol.2 ,p.223).

A noção de idealização, nos fragmentos citados, aparece primeiramente em oposição à de realidade; e, na sequência, associada à constituição do herói na obra de José de Alencar, o que implica uma relação com os valores que esse herói representa.

Na obra de Antonio Candido, o termo idealização aparece a par de outros que a ele se referem, tais como aspiração, anseio, imaginação, fantasia, sonho e fuga – a esse respeito, ver principalmente o texto “Os três Alencares” (1981, vol.2, p.221 235) ; em contraposição aos termos realidade, realismo, documento e documentário. No entanto, o autor sugere que não se deve, em se tratando de literatura, entender idealização apenas como fuga ao real, ou como simples oposição à fidelidade realista, mesmo porque, em sua concepção, “não há literatura sem fuga ao real, e tentativas de transcendê lo pela imaginação” (1981, vol.1, p.27). A literatura, que é “uma das

modalidades mais ricas dessas formas de sistematizar a fantasia” (2002, p.81), constrói as suas obras nesta tensão: se o romancista “é incapaz de reproduzir a vida, seja na singularidade dos indivíduos, seja na coletividade dos grupos” (2011, p.67), por sua vez “a imaginação nunca é livre como se supõe” (2011, p.68).

O sentimento de realidade na obra de literatura não depende da sua adesão ao real (2011, p.66), mas da coerência interna da obra; da organização dos seus elementos nasce o sentimento de verossimilhança (o parecer com o real) (2011, p.75). Assim, o que se chama normalmente de inverossímil – muito frequente no romance heroico de Alencar – é, segundo Antonio Candido, perfeitamente verossímil, desde que esteja em acordo com a proposta da obra. Inverossímil de verdade seria a incoerência, o desajuste de uma parte com a proposta do todo (2011, p.76). A verdade da obra literária é convencional (1993, p.123) e, sendo assim, a aparente inverossimilhança não é suficiente para explicar a noção de idealização. Não obstante, para Antonio Candido, a realidade na obra de literatura pode aparecer “mais ou menos elaborada, transformada, modificada” (2011, p.69), segundo a concepção, a tendência estética e as possibilidades criadoras do escritor. No caso de José de Alencar, os seus romances indianistas “parecem baseados no trabalho livre da fantasia, a partir de dados genéricos, o que se coaduna com a orientação romântica” (2011, p.70). Nos seus romances heroicos, entre os quais está , “o sonho voa célere sem dar satisfação à vida, a que se prende pelo fio tênue, embora necessário, da verossimilhança literária” (1981, vol.2, p.223). A fuga ao real, portanto, pode ser entendida, quando muito, como um aspecto do que Antonio Candido chama de idealização, não sendo suficiente para explicar a noção em sua complexidade.

Já ficou dito que a idealização, na visão de Antonio Candido, é feita da matéria dos sonhos, da aspiração, da fantasia. Espalhadas por sua obra, há uma série de expressões igualmente relacionadas à noção de idealização, as quais podem ajudar a entender a já referida relação entre a idealização e o advento do herói na obra de José de Alencar. Assim, Antonio Candido dirá que José de Alencar concebe o romance como “uma visão lírica da realidade [...] oferecendo nos, portanto, uma realidade idealizada” (1973, p.256 57); que o indianismo é uma “transfiguração do aborígene” (2007, p.50), e que a sua importância histórica e psicológica se deve ao fato de ter “idealizado com

arbítrio” (2007, p.50), satisfazendo, dessa maneira, “a necessidade que um país jovem e em grande parte mestiço tinha de atribuir à sua origem um cunho dignificante” (2007, p.50): são os românticos do XIX que dão aos índios o “retoque decisivo” (2007, p.50), “assimilando os ao cavaleiro medieval, embelezando os seus costumes, emprestando lhes comportamento requintado e suprema nobreza de sentimentos” (2007, p.50), em suma, consolidando o seu papel de “elemento simbólico da pátria” (2007, p.50); por fim, do nacionalismo artístico que marca a literatura brasileira de meados do século XIX, à época em que Alencar escreve, dirá que exigiu dos vários setores da vida mental e artística “um esforço de glorificação dos valores locais” (1981, vol.1, p.27).

A idealização, nos fragmentos citados, aparece como o processo que preside à construção do romance heroico de Alencar. Consiste em transfigurar ou metamorfosear (a natureza, os fatos, os conflitos, o cotidiano, a realidade da terra, o real, a vida) Antonio Candido usa também, em pelo menos três passagens de sua obra, a ideia de deformar: assim, dirá que o indianismo operou uma “deformação cavalheiresca” nos selvagens (2002, p.44), ou que sujeitou a nossa realidade a uma “deformação bovarista” (1973, p.251); ou ainda que a ideologia do nativismo representou “a formação do sentimento de apreço pelo país e a tendência para compensar as suas lacunas por meio da deformação redentora” (2007, p.30). Essa transfiguração, ou deformação, ocorre numa direção determinada, que pode ser mais bem entendida se atentarmos às ações referidas nas passagens citadas: assimilar, emprestar, embelezar, retocar, enobrecer, glorificar; em suma, tornar símbolo, por meio de uma visão lírica da realidade, num processo de idealização. A resultante do processo é o herói alencariano, os “admiráveis bonecos da imaginação”, no dizer do Antonio Candido (1981, vol.2, p.224), que também os chama de “imaculados Parsifais, puros, inteiriços, imobilizados pelo sonho em meio à mobilidade da vida e das coisas” (1981, vol.2, p.223). Esse herói é marcado pelo “esquematismo psicológico” (1981, vol.2, p.232), na medida em que sua moralidade, sua ação e sua presença se reduzem à expressão de certos valores – no caso de Estácio Correia, o herói de , os valores são, entre outros, beleza física, coragem, destreza bélica, pureza e nobreza de caráter, honradez a toda prova, lealdade, culto à pátria, religiosidade, culto à imagem paterna, amor, e desejo de ser grande na sociedade.

Na obra de Antonio Candido, portanto, a noção de idealização engloba o aspecto de fuga da realidade, mas vai além, apresentando se também como processo construtivo que opera com transfiguração ou deformação da realidade, principalmente no sentido de elevar e glorificar valores, constituindo, desse modo, a imagem do herói, personificação desses valores e pretendente a símbolo da comunidade que o gerou. A idealização, por conseguinte, diz respeito a certas escolhas nas quais se mostram certas coisas ao mesmo tempo em que se ocultam outras, o que explicita a sua natureza ideológica; a constituição linguística dos valores é o aspecto que nos interessa particularmente neste trabalho. Segundo Antonio Candido, “enredo e personagens exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam.” (2011, p.53 54); considerando a relação existente entre idealização e valores no romance heroico de Alencar, nota se que a idealização é, ao cabo, um modo de ver a vida, que se propõe ao leitor na linguagem encantatória – “sistematizadora da fantasia” do romance. O próprio Antonio Candido lembra que “a personagem é, basicamente, uma composição verbal, uma síntese de palavras, sugerindo certo tipo de realidade” (2011, p.78), daí o nosso interesse em analisar a contribuição de certas estruturas linguísticas os Processos Verbais e os recursos que compõem a Avaliatividade – para compreender a construção da idealização em