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A ANÁLISE DE LUZIA-HOMEM NA PERSPECTIVA DA ENUNCIAÇÃO

Neste capítulo, iremos examinar a possível construção de um simulacro de Luzia- Homem na perspectiva da enunciação enunciada, observando se há, no âmbito das relações entre narrador e narratário, a configuração de uma identidade para esse ator. Para isso, observaremos os temas e figuras associados a ele.

Nesta seção, as vozes dos personagens não serão consideradas, exceto quando ratificarem o ponto de vista da enunciação enunciada ou, quando embreadas, forem relevantes a esta análise. Deste modo, começaremos com a análise da debreagem enunciva presente na passagem a seguir:

Em plena florescência de mocidade e saúde, a extraordinária mulher, que tanto impressionara o francês Paul, encobria os músculos de aço sob as formas esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão. Trazia a cabeça sempre velada por um manto de algodãozinho, cujas ourelas prendia aos alvos dentes, como se, por um requinte de casquilhice, cuidasse com meticuloso interesse de preservar o rosto dos raios do sol e da poeira corrosiva, a evolar em nuvens espessas do solo adusto, donde ao tênue borrifo de chuvas fecundantes, surgiam, por encanto, alfombras de relva virente e flores odorosas. Pouco expansiva, sempre em tímido recato, vivia só, afastada dos grupos de consortes de infortúnio, e quase não conversava com as companheiras de trabalho, cumprindo, com inalterável calma, a sua tarefa diária, que excedia à vulgar, para fazer jus a dobrada ração. (OLÍMPIO, 2003, pp. 20 e 21).

Esta descrição fornece, primeiramente, uma apresentação de Luzia, como mulher jovem e bonita. Em seguida, a descrição constrói um simulacro marcado pela autopreservação, sob a forma de distanciamento, tanto em relação ao ambiente natural, considerado corrosivo, quanto em relação ao ambiente social, em que a única forma de contato seu com os demais actantes da narrativa decorre do trabalho na cadeia.

Porém, o que nos chama maior atenção é que o narrador retoma o adjetivo

“extraordinária” e inverte sua posição no sintagma utilizado por Paul. Esse torneio sintático faz de Luzia não mais uma “mulher extraordinária”, sintagma em que o adjetivo tem sentido predominantemente denotativo e significa “fora da ordem, fora do comum”, mas, sim, uma “extraordinária mulher”, expressão em que o adjetivo assume um sentido conotativo, vem

carregado de afeto e corresponde a uma avaliação subjetiva de Luzia operada pelo enunciador do texto. Esse segundo sintagma, a nosso ver, aponta em direção à feminilidade, que é corroborada por meio de outros conjuntos figurativos, como este, por exemplo: “formas esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão”.

Logo, neste primeiro fragmento, temos que a questão da feminilidade na construção deste simulacro tem maior destaque que a masculinidade. As figuras relativas à feminilidade

têm como principal tema a beleza, e as figuras que remetem à masculinidade, por sua vez, possuem como tema a força. Portanto é essa configuração complexa que se afirma no sintagma

“extraordinária mulher”.

Dado o modo de manifestação de Luzia e de suas relações sociais, o fragmento a seguir reitera sua masculinidade e sua força, além de dar pistas sobre o seu ser, pois ela, mesmo querendo migrar para se livrar do assédio degradante de Crapiúna, permanece na cidade para cuidar de sua mãe doente (OLÍMPIO, 2003, p. 29):

Subjugada pelo impossível evidente, inelutável, a moça estraçalhou com as unhas pontudas a carta fatal. A mãe tinha razão. Deus não queria. Era forçoso ficar, amarrada àquele poste de amor e sacrifício, onde morria, em lento martírio, a mãe adorada, arrostar o perigo pressentido, o acinte da paixão do lúbrico soldado. Era formoso ficar exposta ao insulto daquela atrevida e grosseira insistência repugnante; e sucumbir, talvez, assoberbada de vilipêndio e ultrajada como as outras desditosas, arrastadas pela miséria à crápula abjeta.

Sob os músculos poderosos de Luzia-Homem estava a mulher tímida e frágil, afogada no sofrimento que não transbordava em pranto, e só irradiava, em chispas fulvas, nos grandes olhos de luminosa treva.

Neste fragmento, Luzia se manifesta sob duas faces. A primeira passa de manifestação de resistência à manifestação de força, em que a isotopia da masculinidade é construída mediante a utilização de figuras que remetem a formas de marcação da força e tem como tema associado a ela o poder. A segunda face remete à construção da feminilidade da sertaneja, que passa a ter associada a ela uma nova isotopia figurativa, que se configura a partir do não poder, mediante a utilização de figuras que remetem à impotência e à fraqueza.

A partir dessas figuras, o narrador nos revela um novo simulacro que ainda não tinha se revelado para os atores do enunciado, uma vez que essa isotopia remete ao universo figurativo que se constrói para feminilidade, de um modo geral, dentro da narrativa. Se antes o simulacro Luzia tinha a configuração de um termo complexo, quanto a oposição feminilidade vs masculinidade, porque conjugava beleza e força, agora é construído um novo simulacro segundo a sua fragilidade, que fora tomada como um dado, assim como a sua beleza, e que se revela gradativamente, ao mesmo tempo em que a sua feminilidade se manifesta para os atores do enunciado.

Depreendemos, também, mediante a observação do fragmento acima, a instauração de uma nova oposição que pode concorrer para a configuração de um simulacro de Luzia na instância da enunciação enunciada: luz vs trevas, convocada no último parágrafo, e que se refere à manifestação do sofrimento de Luzia, mesmo que de modo fugidio e obscuro, quase inapreensível, por meio de seus “grandes olhos de luminosa treva”.

Assim, para os atores do enunciado temos aparentes os músculos de Luzia-Homem, figura de masculinidade, força, e poder. Ao mesmo tempo, há, imanente e oprimida, a “mulher

tímida e frágil”, figura de feminilidade e fraqueza (impotência), cujo sofrimento é praticamente inacessível no nível do enunciado enunciado. Esse simulacro é aparente apenas mediante a observação da cor dos olhos de Luzia, que “irradiava, em chispas fulvas, nos grandes olhos de

luminosa treva”, um termo complexo de luz e sombra que também se manifesta no simulacro

de Luzia construído sob o domínio da enunciação enunciada.

Sendo assim, até este momento, temos a configuração de um simulacro dúbio:

feminilidade e masculinidade, fraqueza e poder, luz e treva, coexistem em uma mesma configuração discursiva de Luzia, do mesmo modo que a sua alcunha “Luzia-Homem” nos remete a configuração conflituosa.

Já o fragmento a seguir trata da descrição do banho de Luzia, ocasião em que a

feminilidade dela foi revelada a Teresinha, e por meio da qual surgem então figuras que remetem à temática do sobrenatural. Entretanto, essa remissão também ocorre de modo dúbio, uma vez que o narrador esboça a figura lendária, e sensual, da mãe-d’água, e, concomitantemente, convoca a figura de uma santa, que se delineia a partir do surgimento de um manto construído por meio do modo pelo qual o cabelo de Luzia está disposto em seu corpo:

Estava ainda longe o dia. As barras apenas despontavam no levante em pálido clarão e alguns farrapos de nuvens rubescentes. Exposta à bafagem da madrugada, Luzia de pé, em plena nudez, entornava sobre a cabeça cuicas d'água que lhe escorria pelo corpo reluzente, um primor de linhas vigorosas, como pintava a superstição do povo o das mães-d'água lendárias, estremecendo em arrepios à líquida carícia, e abrigado em manto da espessa cabeleira anelada que lhe tocava os finos tornozelos. Ao perceber desenhar-se no lusco-fusco da nebrina matinal, já perto, o vulto da moça a contemplá- la, soltou um grito de espanto e agachou-se, cruzando os braços sobre os seios. (OLÍMPIO, 2003, p. 31).

Desse modo, percebem-se duas transformações do simulacro de Luzia. A primeira diz respeito à questão da masculinidade, que é mais predominante no âmbito do enunciado enunciado e que é o lugar a partir do qual é construído o ponto de vista da enunciação enunciada nesta cena, a qual se desconfigura gradativamente. Dessa maneira, os “poderosos músculos”

dão lugar às “linhas vigorosas”, que são, por sua vez, associadas à sensualidade e à feminilidade

das mães-d’água. Assim, nessa primeira transformação tivemos a passagem da manifestação da masculinidade para a aparição da feminilidade, mediante a conversão de uma isotopia figurativa em outra. Porém, à medida que o simulacro vai se configurando e a isotopia da feminilidade se constrói a partir do universo figurativo das mães-d’água, ocorre a segunda transformação, simultaneamente ao momento em que se constrói um esboço, segundo a qual a configuração da mãe-d’água cede gradativamente lugar à imagem de uma santa, como que por uma oscilação

da luz solar. Para que essa transfiguração ocorra, a figura que remete ao cabelo de Luzia atua como conector de isotopias, remetendo ao mesmo tempo à isotopia figurativa, a partir da qual se constrói a mãe-d’água, e à isotopia figurativa, por meio da qual a figura da santa se esboça.

No âmbito do enunciado enunciado, apenas dois atores pareceram perceber esse modo de manifestação do simulacro de Luzia: Raulino e Crapiúna. Raulino associa os cabelos de Luzia à figura da mãe-d’água e narra, inclusive para a própria Luzia, um dos causos em que a figura lendária aparece e seduz uma mulher ciumenta, conduzindo-a em direção à morte. Já Crapiúna, ao visualizar Luzia alguns momentos após esta cena, parece captar essa dubiedade presente no simulacro de Luzia, quando o flagramos, debreado enunciativamente, chamar

“Luzia, milagrosa santa dos meus olhos pecadores...” (OLÍMPIO, 2003, p. 33), e em seguida

quando lhe concede o seguinte tratamento: “feiticeira soberba que furtou meu coração...” (OLÍMPIO, 2003, p. 33).

Ainda quanto a esta nova isotopia de leitura, temos, no fragmento a seguir, mediante a descrição de Luzia ao tratar dos cabelos, o desenhar da figura das s mães-d’água associadas à sertaneja:“Enquanto tentava demover a mãe a empreender a viagem, a moça torcia as madeixas dos fartos cabelos negros, embebidos d'água, até secarem à pressão de suas mãos, mãos delicadas de mestiça, pequeninas e elegantes” (OLÍMPIO, 2003, p. 36).

Nesta outra passagem, Luzia parece exercer sobre os atores do enunciado enunciado o mesmo encanto provocado pelas mães-d’água quando seduzem. Esse modo de manifestação da sertaneja decorre tanto de suas belas formas, quanto do discurso que profere. Enquanto as formas de Luzia remetem à beleza dessas figuras lendárias, o seu discurso lembra o (en)canto sedutor das mães-d’água. Assim, o discurso proferido por Luzia finda por seduzir o promotor:

Ela, animando Alexandre com a protetora carícia de um olhar inefável, voltou-se resoluta e calma para os circunstantes. Do desalinho das roupas, o lençol pendido do braço a arrastar pelo chão, o cabeção de renda emoldurando o seio nu e palpitante, as desgrenhadas madeixas a lhe caírem em ondulações fulvas de serpentes negras; dos olhos, do gesto e da voz, um concerto de convicção e firmeza, irradiava sobrenatural encanto, empolgando o auditório, subjugado pela esplêndida e fascinante exibição da força e da beleza, harmonizadas naquela admirável criatura.

- Saberão vossas senhorias – exclamou, em vibrações fortes e sonoras – que este homem não é nada meu!... Nem parentes somos, senão por Adão e Eva. Posso morrer sem confissão. Meu corpo não tem pechas, nem pecados a minh'alma... (OLÍMPIO, 2003, pp. 49 e 50).

As figuras utilizadas aqui remetem a uma imagem sensual de Luzia e formam um simulacro marcado pela tentação, convocada pela figura da serpente na expressão “madeixas a

lhe caírem em ondulações fulvas de serpentes negras”, e pela sedução de seu discurso (canto),

isotopia do sobrenatural evocado pelas mães-d’água, que se reconfigura mais uma vez pela conjunção de força e beleza presentes em um só corpo.

Se tomarmos os fragmentos em conjunto, percebemos que a manifestação de Luzia sob essas formas é fugaz para o enunciatário, uma vez que as suas formas se alternam, ao se alternarem os olhares. Assim, as imagens produzidas, embora distintas, tendem a ratificar a delicadeza e a feminilidade do simulacro de Luzia, uma vez que, mesmo quando se manifesta sob a forma Luzia-Homem, suas formas esbeltas se sobressaem em detrimento dos músculos. Parece-nos, então, que o poder de Luzia, além de sua força física, é seu poder sobrenatural de sedução, conforme foi ilustrado acima. Outra passagem que mostra essas transfigurações de Luzia, temos no trecho a seguir:

Tanto que o preso partiu escoltado pelos soldados Belota e Cabecinha, Crapiúna assomou na sala, mesmo em frente de Luzia, cujo olhar dolente acompanhava o moço e se fixava na porta por onde o levaram. A figura do soldado, detestável de arrogância triunfante, substituindo o preso, no campo da visão desvairada, interrompeu imediatamente a aniquiladora impressão de mágoa; e a moça, transformada por encanto, estremeceu num esto de ódio, que lhe faiscou no olhar, como um corisco. (OLÍMPIO, 2003, p. 52).

Entretanto, nas passagens anteriores em que essa transfiguração ocorreu, tivemos uma transformação da manifestação de Luzia, de suas formas que parecem se realinhar para compor novas figuras. Porém, o que temos aqui é a oscilação do seu ser, manifestada exclusivamente por meio do olhar de Luzia, que de expressão dolente passa a faiscar o ódio imanente, em uma reação ao surgimento de Crapiúna no seu campo de visão.

Já a embreagem a seguir, por meio da qual as fronteiras entre as instâncias da enunciação e do enunciado encontram-se turvas, assim como as vozes do narrador e de Luzia, apresenta-nos o interior de Luzia e a imanência de seus sentimentos e pensamentos, tomados pela dúvida e pelo medo de que Alexandre seja um criminoso:

Quanto tempo teria ainda de esperar? Quantos dias e quantas noites seria ainda o mísero obrigado a passar entre aquelas quatro paredes infectas?... E se não fosse possível salvá-lo; se a justiça descobrisse provas contra ele; se, na verdade, fosse o culpado de tão feio crime?!...

Tais dúvidas empanavam, como nuvens fugaces, o atribulado espírito de Luzia. Alexandre teria energia para suportar a prisão, o vilipêndio da pena infamante; ela, porém, não se podia conformar com a ideia de reconhecê-lo criminoso, acusado de ladrão e maculado para sempre. Preferiria vê-lo morto, estirado no chão, fulminado por um corisco. (OLÍMPIO, 2003, p. 75).

A partir do trecho acima, nota-se que a dúvida define o ser de Luzia e o macula. Já no próximo fragmento, tem-se a retomada dessa questão que assola o ser de Luzia e a instauração de uma nova isotopia de leitura sobre a dúvida por ela vivenciada. A dúvida, aqui,

está associada à treva e opõe-se à razão que, por sua vez, está associada à luz. A partir dessa oposição, o ser de Luzia estaria imerso na treva da dúvida, caracterizada pelo não saber não ser, e que passa a dominar não só seus pensamentos, mas o seu corpo, sob a condição de fraqueza. Assim, a isotopia figurativa da dúvida realiza um percurso segundo o qual, da imanência do ser de Luzia, a dúvida se converte em fraqueza e passa progressivamente a assumir formas menos vigorosas em seu corpo:

A razão é a luz; a dúvida é a treva, congeminação de contrastes engendrados pela mesma causa. Felizes os irracionais, porque não duvidam.

Apesar da sua energia máscula, ela se sentia aniquilada, num colapso de nervos enrijados à contínua tensão de tantas amarguras e cuidados, vexames, a pobreza, duras privações de haveres, a moléstia da mãe, o pressentimento de perdê-la a qualquer momento e a obsessão do soldado, além da orfandade, o desamparo pela prisão de Alexandre, a única pessoa que a poderia ajudar a viver... (OLÍMPIO, 2003, p. 76). Tais pensamentos, bons e maus, perversos ou generosos, acudiam, em tumulto, disparatados e contraditórios, ao seu cérebro perturbado pela dúvida. Acariciava-os ou lutava para expungi-los; e vinha-lhe, por fim, o remorso de haver pecado por soberba, por falta de caridade, julgando mal Alexandre, quando, em verdade, os sofrimentos dele repercutiam no seu coração com dobrada intensidade, como se ele fora parte de seu ser, porção de sua alma. (OLÍMPIO, 2003, p.77).

Entretanto, a dúvida é desdobrada em dois aspectos, o primeiro, demonstrado acima, quando recai sobre a inocência de Alexandre, sobre a integridade e as intenções dele em relação a ela. Já o outro desdobramento da dúvida que assola Luzia incide sobre a adesão ou não do contrato de casamento proposto por Alexandre:

Sentia-se incapaz de amar; carecia-lhe a fraqueza sublime, essa languidez atributiva da função da mulher no amor, a passividade pudica, ou aviltante da fêmea submissa ao macho, forte e dominador, irresistível, como aprendera na intuitiva lição da natureza; essa comovente timidez de novilha ante a investida brutal do touro lascivo, sem prévios afagos sedutores, sem carícias de beijos correspondidos, como nos idílios das rolas mimosas. Não; não fora destinada à submissão. Dera-lhe Deus músculos possantes para resistir, fechara-lhe o coração para dominar, amando como os animais fortes: procurar o amor e conquistá-lo; saciar-se sem implorar, como onça faminta caindo sobre a presa, estrangulando-a, devorando-a. Não era mulher como as outras, como Teresinha, para abandonar a família, o lar, a honra, por um momento de ventura efêmera, escravizando-se ao homem amado, contente do sacrifício, orgulhosa do crime, insensível ao vilipêndio, sem olhar para trás onde ficaram os tranquilos afetos, para sempre perdidos; e, por fim, consolada à torpeza do repúdio infame, à margem da estrada da vida, como um resíduo inútil, condenado a vis serventias, trapo que foi adorno cobiçado, molambo que vestiu damas formosas, casca de fruto saboroso e aromático. (OLÍMPIO, 2003, p. 77).

Na embreagem acima, a figura “músculos” atua como conector de isotopias: a do poder fazer e a do não poder fazer. A isotopia do poder fazer se configura tanto como competência modal para o trabalho na cadeia (poder fazer), para o qual Luzia precisava de força, quanto como competência modal para a autodefesa, configurando-se como um poder não fazer, também mediado pela força. Por sua vez, a partir da mesma figura, a isotopia do não

poder fazer, concede certa impotência ao simulacro de Luzia, à medida que seus músculos manifestariam o fato de que a sua natureza não seria compatível para a realização do amor:

“Não; não fora feita para amar. Seu destino era penar no trabalho; por isso, fora marcada com

estigma varonil: por isso, a voz do povo, que é o eco da de Deus, lhe chamava Luzia-Homem” (OLÍMPIO, 2003, p. 77).

Outra temática suscitada pelo fragmento acima é a questão da integridade moral de Luzia, a qual, para ela, era incompatível com a possibilidade de ser subjugada por uma figura masculina.

Nota-se, então, que a configuração da competência modal de Luzia retoma a isotopia que remente à Santa Luzia, uma vez que ambas são dotadas de uma configuração modal que as impediria de realizar o contrato do casamento, e que resistem aos ímpetos masculinos que as impele em direção ao matrimônio ou à degradação. Para Luzia-Homem, os músculos são o empecilho (marca de sua má sina), já para a Santa, é uma promessa que a impede de casar.

Ao retomarmos a gradação segundo a qual a isotopia da dúvida estava relacionada ao âmbito do ser de Luzia e passou a se configurar no nível de sua manifestação, a partir da qual percebemos que seus músculos foram atenuados, verificamos que no trecho a seguir essa gradação continua e estabelece uma progressão em que a fragilidade, outrora apenas dúvida, converteu-se em feminilidade. Isto é, a dúvida se manifestou pela fragilidade e por fim se transfigurou em feminilidade, que agora está manifestada no âmbito do enunciado enunciado:

Quando Luzia se apresentou ao apontador, houve um movimento geral de surpresa e curiosidade. Ninguém a esperava ver de novo; era considerado morto ou emigrado o trabalhador que desaparecia da obra. Notavam que estava mais esbelta, graciosa, a cor mais clara pelo repoiso de alguns dias. Havia misteriosa alteração no seu semblante. As vigorosas linhas de energia máscula se contraíam em curvas melancólicas, e, nos olhos meigos, flutuava a sombra do ideal morto entre chispas fulvas de anelos incontentados. As atitudes lânguidas e os gestos lentos denunciavam fadiga moral, ou a preguiça voluptuosa das felinas amorosas. Dir-se-ia que se lhe haviam atenuado os tons varonis, e, da crisálida Luzia-Homem, surgira a mulher com a doçura e fragilidade encantadora do sexo em plena florescência suntuosa. Irradiavam dela fluidos de simpatia, empolgando os companheiros de infortúnio, como prestigiosa transfiguração. Estes não experimentavam já a repulsa que lhes causava a moça bisonha, arredia, taciturna, sempre enrolada no amplo lençol de mandapolão branco. - Como está mudada! – murmuravam as mulheres.

- E não é que a Luzia está ficando bonita! – diziam os rapazes, mutuando olhares sensuais. - Parece que esteve doente.

- Só se foi de mal de amores.

- Quem sabe? Amor não mata, mas maltrata.