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3. A ANÁLISE DE LUZIA-HOMEM NA PERSPECTIVA ACTORIAL

3.10 Simulacros em relação

Nesta seção, realizaremos uma análise comparativa dos simulacros acima descritos. Para isso, cumpre-nos retomar o texto de Oliveira Jr. (1997), convocado já no início de nossa análise, segundo o qual o enredo do romance se desenvolve de modo semelhante a um tribunal. Dessa perspectiva, todos os atores analisados exerceriam o papel actancial de destinador- julgador.

Assim, percebemos que os atores investigados realizam um julgamento sobre Luzia sob regimes de apreensão do conhecimento distintos. No caso do francês Paul, esse conhecimento é o científico e decorre da objetivação de Luzia enquanto objeto de apreensão, após o momento intenso de sua visada (“assombro” – OLÍMPIO, 2003, p. 20). O fazer científico de Paul, porque dotado de um procedimento apurado, atribui ao ser de Luzia aquilo que ela manifesta para ele, o seu parecer, o que a constitui como um termo complexo.

Em Teresinha, processo semelhante ocorre, uma vez que o conhecimento do ser de Luzia se dá mediante a revelação da sertaneja nua diante dos seus olhos, o que nos remete ao conhecimento empírico obtido mediante a interação com o mundo sensível. Embora desprovido de metodologia científica, esta forma de apreensão de Luzia conduz à sabedoria popular que diz: “só acredito vendo”.

Por sua vez, o tema suscitado por Raulino convoca o conhecimento das narrativas míticas presentes no imaginário popular, e assim, o simulacro construído de Luzia ratifica a temática do folclore popular na medida em que é associado às mães-d’água. Do mesmo modo, o próprio surgimento de Luzia livrando Raulino da morte, despois de subjugar um “toiro

sanhudo” (OLÍMPIO, 2003, p. 127) e de realizar um feito épico, torna sua aparição digna de

figurar no folclore popular, reiterando a temática suscitada pelo sertanejo.

No que tange ao promotor de justiça e sua esposa, temos o tema da justiça, que se realiza por meio do procedimento jurídico, e que, por sua vez, consiste na realização de um julgamento a partir da observação da materialidade do discurso, mediante a tomada de depoimentos, e mediante a observação dos fatos. Esse modo de conhecimento agrega duas modalidades, que ocorrem concomitantemente: o saber, obtido pela observação dos fatos (do crime) e o crer, que incide sobre o discurso e é baseado no dever fazer (falar a verdade) de um determinado sujeito, o depoente.

Dito isto, percebe-se um fato curioso: o simulacro construído de Luzia pelo promotor de justiça, tomado individualmente, tem o crer como modalidade regente e se configura a partir do depoimento de Luzia que, manipulando-o, seduz o promotor e o faz crer na inocência de Alexandre (e se empenhar na investigação). Por sua vez, a esposa do promotor, Matilde, constrói o simulacro de Luzia regido pelo saber, a partir da observação de atitudes da sertaneja que não condizem com as suas palavras. Embora os parâmetros utilizados pelo promotor sejam os mesmos parâmetros utilizados por sua esposa, os quais são o discurso e a observação dos fatos (provas), a avaliação do promotor recai sobre a integridade moral de Luzia, na qual ela o faz crer, enquanto Matilde realiza seu julgamento observando a manifestação do sentimento de Luzia por Alexandre, não a sua integridade moral. Assim, é Matilde quem faz Luzia saber, revelando os sentimentos de Luzia em relação a si própria.

Já o simulacro de Luzia construído por Alexandre, que conheceu Luzia quando ela salvou Raulino, tem como base a experiência, a partir da qual viu manifestada “uma moça afoita e destemida que agarrou o bicho pelas galhadas e o sujicou que nem um cabrito” (p. 37). Tendo em vista esses elementos, verifica-se que as questões relacionadas à aparência foram

sobrepostas pelo fazer de Luzia, que tem na coragem e na bondade suas figuras, as quais, por sua vez, são valoradas euforicamente no âmbito da moralidade.

Logo, quando tomados em conjunto, os simulacros de Luzia descritos acima e construídos pelos atores supracitados se apresentam como predominantemente femininos, em que a forma física feminina de Luzia e a manifestação de seu discurso prevalecem em detrimento da sua força incomum, atribuída à masculinidade. Ao mesmo tempo, nota-se que a sanção incide predominantemente sobre o fazer de Luzia e, embora tenhamos a formação de um termo complexo no simulacro de Paul, entendemos que a figura da mulher é predominante,

uma vez que o termo “extraordinária” é dotado de certa ambiguidade.

Percebe-se também que, até este momento, a questão da sexualidade de Luzia tem menor relevo que a questão da moralidade, uma vez que Luzia não é observada sob essa ótica, nem mesmo enquanto objeto de apreensão, em que se sobressaem figuras atribuídas à beleza e à força. Esta última entendida como força física (competência para o trabalho) e como força moral, por meio da qual Luzia resiste à miséria que assola a todos com a seca.

Desse modo, temos o seguinte quadro que sintetiza as características comuns dos simulacros de Luzia construídos pelos referidos atores, constituindo o que chamamos a seguir de macrossimulacro. Ressaltamos ainda que o macrossimulacro esboçado no quadro abaixo se constitui enquanto uma abstração, uma vez que, na narrativa, não encontraremos nenhuma ocorrência fiel ao que segue descrito:

Quadro 17 - Macrossimulacro 1

Atores relacionados à construção do macrossimulacro:

1. Paul; 2. Teresinha; 3. Alexandre; 4. Raulino;

5. O promotor e sua esposa; 6. Luzia

Paixão(ões) do simulacro:

Curiosidade, admiração, gratidão, zelo e piedade.

Processo identitário predominante do macrossimulacro de

Luzia para os atores envolvidos: Assimilação

Temas que definem o simulacro de Luzia para ela própria: Integridade moral, feminilidade e beleza Estatuto fórico predominante do macrossimulacro de

Luzia para os atores envolvidos: Eufórico

Estatuto veridictório predominante do macrossimulacro de Luzia para os atores envolvidos:

No quadro acima, temos o primeiro macrossimulacro forjado a partir das relações de Luzia estabelecidas com alguns atores da narrativa. O critério sobre o estabelecimento de uma igualdade entre eles foi a constatação de que todos eles, ao sancionar Luzia, utilizaram como parâmetros elementos fornecidos pelo saber. Conforme foi descrito anteriormente, cada um desses atores está associado a uma forma do conhecimento, seja ele empírico, científico, jurídico, ou oriundo da sabedoria popular, cujos mitos e lendas constituem um rico acervo para se saber a respeito de uma determinada cultura.

Quanto às paixões, as elencamos no quadro para que possamos extrair delas seus traços modais comuns. Identificamos então a predominância de uma sanção positiva em relação à performance de Luzia que motiva os atores em direção a um querer fazer (algo em benefício da protagonista), exceto no caso do promotor e de sua esposa, que estão ambos modalizados pelo dever fazer (ainda que o fazer seja um agir em benefício de Luzia) e também no caso do francês, mobilizado pelo querer saber.

Os processos identitários apontam para a assimilação, constituindo também a exceção o ator que diz respeito ao promotor e sua esposa, cujo processo identitário é o de segregação, o qual decorre da objetividade necessária e inerente ao próprio papel temático- figurativo deste ator na narrativa.

Dessa maneira, os temas nos quais esse macrossimulacro está inserido (a beleza, a feminilidade e a integridade moral) reforçam a identificação de Luzia com o universo semântico dos atores com os quais ele se relaciona. Do mesmo modo, os simulacros de base utilizados, assim como o macrossimulacro aqui estabelecido, são considerados por tais atores eufóricos ao mesmo tempo em que gozam do estatuto de verdade.

Enquanto o macrossimulacro acima foi delimitado com base em parâmetros orientados pelo saber, a seguir trataremos de descrever um macrossimulacro oriundo de simulacros cujas relações foram regidas pela modalidade do crer. Tal fato se dá em virtude de que, ao contrário dos simulacros tomados como base para o esboço do macrossimulacro anterior, os simulacros dos quais nos apropriaremos foram forjados a partir de relações actoriais balizadas no senso comum.

Por outro lado, temos aqueles atores que julgam a protagonista conforme o senso comum, os quais são: moças infamadas pela miséria, as moças não infamadas pela miséria e o soldado Crapiúna. Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss (2009), senso comum é o de um

“conjunto de opiniões, ideias e concepções que, prevalecendo em um determinado contexto

social, se impõem como naturais e necessárias” e, que, consequentemente, é regido predominantemente pelo crer.

Tais atores, em seu julgamento, utilizam-se de determinados preceitos e (pré)conceitos sob os quais se apresenta Luzia. É então que surge a figura Luzia-Homem como um termo complexo, que associa os elementos da feminilidade e masculinidade, em que o parecer prevalece sobre o ser. Por isso, para a parte degradada da cidade, a questão da sexualidade é predominante para o julgamento de Luzia, segundo o qual o próprio simulacro de Luzia enquanto termo complexo, para estes atores, constitui índice de sua degradação.

Para estes últimos atores, tem-se a predominância da questão da sexualidade para a construção do simulacro de Luzia, exceto para Crapiúna que, no decorrer da narrativa tem o simulacro de Luzia transformado, e passa a associá-lo a figuras que remetem à questão da integridade moral. O simulacro aqui construído é disfórico (com a exceção do último simulacro configurado a partir da relação com Crapiúna), havendo destaque para as figuras associadas à masculinidade. Quanto à questão moral, Luzia é definida pela degradação.

A seguir, tem-se um quadro que demonstra a síntese dos elementos mobilizados para a construção desse macrossimulacro:

Quadro 18 - Macrossimulacro 2

Atores relacionados à construção do macrossimulacro:

1. Moças infamadas pela miséria;

2. Moças ainda não infamadas pela miséria; 3. Crapiúna.

Paixão(ões) do simulacro: Inveja, ressentimento, medo e vingança.

Processo identitário predominante do macrossimulacro de

Luzia para os atores envolvidos: Exclusão

Temas que definem o simulacro de Luzia para ela própria: Degradação moral, masculinidade (enquanto fator e estranhamento), sexualidade e soberba. Estatuto fórico predominante do macrossimulacro de

Luzia para os atores envolvidos: Disfórico

Estatuto veridictório predominante do macrossimulacro de

Luzia para os atores envolvidos: Segredo, mentira, verdade

Para a elaboração desse macrossimulacro, temos concorrentes a descrição das relações de Luzia estabelecidas entre os três atores descritos acima, cujo ponto de vista é regido pela modalidade epistêmica do crer, em virtude de o julgamento ter como parâmetro elementos do senso comum.

A partir das relações estabelecidas nessas condições, as paixões sofridas por tais sujeitos têm como base um querer fazer disjuntivo, ou, então, um não querer ser, em virtude da atribuição de um estado disjuntivo a Luzia. Os processos identitários aqui incorporados tendem à exclusão, uma vez que o distanciamento é acentuado ao longo da narrativa.

Quanto a Luzia, temos que o(s) simulacros de si por ela construído(s) decorre(m) inicialmente de seu auto(des)conhecimento, sofrendo também a interferência do julgamento de outros atores no decorrer da narrativa. Entretanto, ao longo da narrativa, verifica-se uma mudança, ou até mesmo uma oscilação, no(s) simulacro(s) que ela constrói de si, sendo o estado passional do ciúme, que se instaura ao longo do romance, um fator decisivo para operar tal oscilação verificada: uma vez tomada pelo ciúme, Luzia submete Alexandre à mesma dor a que aquela sociedade a submete e passa a conhecer os seus mais ocultos instintos. Cometido o erro, a base de julgamento de Luzia sobre si mesma passa a ser também o senso comum, incidindo não sobre sua sexualidade, cuja feminilidade só se intensifica, mas sobre sua moralidade, causa de seu julgamento errôneo sobre Alexandre. Dessa maneira, os simulacros de si construídos pela protagonista ora são situados no âmbito do primeiro macrossimulacro e ora do segundo macrossimulacro.

A configuração patêmica e os processos identitários dos atores analisados são aqui considerados de modo complementar. Do ponto de vista dos processos identitários, podemos verificar que aqueles atores os quais a julgaram sob o ponto de vista do senso comum mantiveram com Luzia relações de maior distanciamento, cujas marcas incidiam inclusive sobre as paixões sofridas, em suas configurações predominantemente disfóricas.

Do mesmo modo, aqueles associados ao conhecimento científico e jurídico também tem suas relações marcadas pelo distanciamento, porém trata-se de um distanciamento objetivante o qual permitiria um julgamento mais imparcial, ou mesmo “justo”. O sema do distanciamento, conforme foi demonstrado individualmente em cada seção, está presente tanto na configuração passional da curiosidade quanto da piedade.

Já aqueles que se identificaram com Luzia, cujo conhecimento do seu ser ocorreu mediante respectivas experiências, todas elas a partir de uma revelação inesperada, seja no banho de Luzia, descrito anteriormente, ou no salvamento de Raulino, guardam marcas em sua configuração patêmica do processo de assimilação.

Dessa forma, guardadas as particularidades de cada relação, podemos verificar essencialmente a existência dos seguintes simulacros no âmbito do enunciado: o primeiro é referente à configuração de uma Luzia feminina e bonita, extraordinariamente forte (poderosa),

sem “pechas” no corpo e na alma, porém soberba. Já o segundo simulacro compõe a figura de

uma mulher masculinizada pela força, manifestada inclusive por seus músculos, cujo distanciamento físico não decorre do seu distanciamento moral, mas sim de sua soberba, uma vez que é semelhante àqueles que a julgam.

Quanto a Paul, verifica-se uma ocorrência interessante, uma vez que não há uma reiteração do seu ponto de vista ao longo da narrativa, e porque o simulacro de Luzia construído se configura apenas como a aparição de uma forma (a forma de mulher) extraordinária, marcada pela força, a qual serviria de base para as subjetivações posteriores.

Por fim, o simulacro de Luzia construído segundo ela mesma sofre alteração, partindo do primeiro simulacro síntese, exemplo de virtude, ao segundo simulacro síntese mencionado anteriormente. A este último simulacro síntese, acrescentamos a questão da fraqueza e da impotência, figurativizadas, respectivamente, pelo julgamento errôneo de Alexandre e pela derrota de Luzia diante de Crapiúna (que teve o olho arrancado por ela) e a mata quando ela sai em defesa de Teresinha.

4 A ANÁLISE DE LUZIA-HOMEM NA PERSPECTIVA DA ENUNCIAÇÃO