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As moças infamadas pela miséria

3. A ANÁLISE DE LUZIA-HOMEM NA PERSPECTIVA ACTORIAL

3.2 As moças infamadas pela miséria

Como podemos perceber mediante a observação do modo pelo qual foi designado este ator, trata-se de um ator coletivo, cuja voz aparece individualizada em certos personagens. O critério que utilizamos para agrupá-los foi a relação identitária estabelecida entre eles, os quais partilham os mesmos valores, e a consequente relação identitária referente à Luzia, possibilitando estabelecermos uma unidade temático-figurativa para a configuração deste ator. Essa denominação foi retirada do próprio romance, quando o narrador, após delegar a voz para esse ator, mediante uma debreagem enunciativa, esclarece ao leitor o universo

axiológico a partir do qual o enunciado faz sentido: “- É de uma soberbia desmarcada – diziam

as moças da mesma idade, na grande maioria desenvoltas ou deprimidas e infamadas pela

miséria.” (OLÍMPIO, 2003, p.21).

Dessa maneira, este ator – qualificado com “infamadas”, adjetivo que remete à

infamação, a qual consiste, segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss, na “ação ou efeito de

infamar(-se); desonra, difamação” – representa a desonra, tendo como papel temático- figurativo a degradação moral daquela sociedade representada por esse ator.

Entretanto, lembramos que, embora a designação desse ator faça referência às mulheres, por conveniência, e em função de sua pouca expressividade no romance, estão contemplados aqui os rapazes cujo ponto de vista – quanto à soberba – é semelhante ao das moças a que esta nomenclatura se refere. Em contrapartida, a constatação da soberba, por parte dos rapazes, se fez mediante o reconhecimento de sua feminilidade, ao se sentirem ressentidos por sua recusa, quando das suas investidas.

Por sua vez, também enquanto Destinador-julgador, este ator define Luzia,

inicialmente, pelo sintagma “soberbia desmarcada”, denotando aí, desde a primeira aparição no

discurso, o distanciamento de Luzia com relação a este ator.

Do ponto de vista da oposição feminilidade vs masculinidade, essa primeira aparição no discurso sobre Luzia é considerada neutra, na medida em que não traz consigo nenhuma referência ao universo temático-figurativo relacionado a qualquer um dos termos complementares. Por outro lado, já se percebe, levando-se em consideração ou não o distanciamento entre esses dois atores, uma marca da disforia que este ator atribui ao estatuto de Luzia, qualquer que seja ele.

Para este ator, a figura de Luzia-Homem também vai-se configurando como um termo complexo, na medida em que lhe são atribuídas figuras concernentes a ambos os universos semânticos, o da feminilidade e o da masculinidade. Entretanto, as figuras evocadas aqui diferem daquelas que vimos na análise anterior. Para verificarmos a construção desse simulacro, segue o fragmento abaixo:

- A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse uma senhora dona - murmuravam os rapazes remordidos pelo despeito da invencível recusa, impassível às suas insinuações galantes.

- Aquilo nem parece mulher fêmea - observava uma velha alcoveta e curandeira de profissão. Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece bigode de homem...

- Qual, tia Catirina! O Lixande que o diga! - mandou uma cabocla roliça e bronzeada, de dentes de piranha, toda adornada de joias de pechisbeque e fios de miçanga, muito besuntada de óleos cheirosos. (OLÍMPIO, 2003, p.21).

Primeiramente, observamos que o tema relacionado à feminilidade é o do desejo

sexual, marcado pela expressão “insinuações galantes”, uma vez que Luzia é objeto de desejo

do sexo oposto. A partir dessa constatação, percebemos a presença de outro tema, mais abrangente, que é o da forma física, uma vez que ser desejada enquanto mulher decorre do fato de que Luzia manifesta os atributos que possibilitam ser ela reconhecida nessa condição.

Ao mesmo tempo em que se ressentem pela recusa de Luzia, tal recusa faz com que ela, Luzia, se constitua cada vez mais enquanto objeto de desejo masculino, uma vez que o fato de não sucumbir às investidas masculinas é também índice da moralidade de Luzia, cujo universo de valores é distinto daquele que define as relações estabelecidas entre as moças infamadas pela miséria e os rapazes ressentidos pela recusa de Luzia.

Dessa maneira, a feminilidade de Luzia é (re)conhecida por parte dessas mulheres em virtude do olhar, do desejo masculino em relação à Luzia, especialmente pelo olhar de outro ator, Alexandre, conforme observamos na passagem acima.

Quanto à masculinidade, as figuras apreendidas por meio da observação da debreagem enunciativa transcrita acima remetem também ao tema da forma física, só que agora,

masculina: “cabelos nos braços”, “buço que parece bigode de homem”, sendo também da ordem

da manifestação. Tais características acabam por valorar esse simulacro disforicamente, segundo a axiologia das moças infamadas pela miséria.

Por outro lado, o fato de Luzia ser cobiçada pelos homens, a sua recusa em sucumbir ao assédio masculino e o seu distanciamento espacial – descrito também pelo narrador no

fragmento “vivia em tímido recato” (OLÍMPIO, 2003, p.21) – e moral, marcados pela aparente

soberba, despertam nessas mulheres o sentimento de inveja, que faz com que a posição de Luzia na narrativa, paradoxalmente, seja euforizada, uma vez que elas também querem se constituir como objeto de desejo e como referência de moralidade, conforme observa Teresinha (ator do qual trataremos mais tarde):

- Mas você não pode negar que ela viva no seu canto sossegada sem se importar com a vida dos outros e fazendo pela sua, como uma moira de trabalho. Vocês, suas invejosas, não a poupam; não tendo para dizer dela um tico assim, vivem a maldar, a inventar intrigas e suspeitas. Nem que ela fosse uma despencada do mundo... (OLÍMPIO, 2003, p.21).

Segundo Greimas e Fontanille (p. 176, 1993), a inveja, considerada em suas duas acepções – conforme o Dicionário Eletrônico Houaiss, a de “desgosto provocado pela felicidade

ou prosperidade alheia” e a de “desejo irrefreável de possuir ou gozar o que é de outrem” –

possui duas configurações distintas.

A primeira configuração remete à relação entre sujeito e objeto e a segunda remete à relação polêmica estabelecida entre sujeitos. No caso ora analisado, entendemos que a configuração da inveja atualizada nesta narrativa é a que privilegia a dimensão polêmica, segundo a qual o papel de mediação seria realizado pelo objeto, tomado como honra. Dado que o objeto posto em jogo aqui é a honra, a integridade moral, o qual faz Luzia se constituir também como objeto de desejo masculino, e dada a impossibilidade de esse objeto ser alcançado pelas

moças infamadas pela miséria, na medida em que este ator aproxima Luzia da condição de degradação moral, opera a disjunção de Luzia em relação ao seu respectivo objeto de valor, que é a integridade moral. Assim, ao incidir diretamente sobre a estrutura polêmica da narrativa, temos que o alvo não é o objeto em si, mas sim o sujeito e seu estado juntivo com o objeto, uma vez que o objeto deixa de se constituir enquanto objeto de valor para as moças infamadas pela miséria, na exata medida em que a relação conjuntiva de Luzia com o objeto fora desfeita.

Ao tentar operar a disjunção de Luzia com o seu objeto de valor, as mulheres infamadas pela miséria questionam, primeiramente, o parecer feminino de Luzia, atribuindo-

lhe características masculinas, e, em seguida, colocam em dúvida o ser moral de Luzia, conferindo-lhe a qualidade de “sonsa”:

- Tu a defendes, porque és parceira dela...

- Antes fosse! ... Outros galos me cantariam. Não andaria aqui, sem eira nem beira, metida nesta canalhada de retirantes...Quem me dera ser como Luzia, moça de respeito e de vergonha...

- Quem perdeu tudo isso para ela achar?... – obtemperou numa rasgada gargalhada de sarcasmo brutal, a roliça cabocla de agudos dentes.

- Qual? ... Vão atrás da sonsa!... (OLÍMPIO, 2003, p.21).

Ao atribuir a Luzia a qualidade de sonsa (aquele que é, mas não parece) – consoante o que diz o dicionário Houaiss: “sonso é que ou aquele que finge não ter defeitos ou se faz de simplório, palerma, inocente, mas faz coisas reprováveis dissimuladamente ou pelas costas; manhoso, dissimulado, santo do pau oco” –, o ator realiza um movimento de aproximação de Luzia em relação a ele, operando, ao mesmo tempo, em Luzia uma alteração identitária que, por sua vez, aproxima-a da degradação moral da qual esse ator participa.

Dessa maneira, observando o modo como se configuram estas relações, consideramos que o processo identitário que as define seria o de admissão, na medida em que, embora seja realizado um movimento de aproximação, o simulacro de Luzia traz consigo

marcas, como se pode constatar pela própria designação “Luzia-Homem”, que o impede de ser

totalmente assimilado por este grupo.

Nesse sentido, para definir o processo identitário que aqui ocorre, é preciso considerar que, segundo as moças infamadas pela miséria, Luzia-Homem pertence ao mesmo grupo que elas, ou seja, este ator atribui ao ser de Luzia a degradação moral que caracteriza o grupo, embora ela pareça não pertencer a ele. De fato, o simulacro de Luzia assim construído assume, quanto à degradação moral, o estatuto de segredo, uma vez que Luzia manifesta algo na direção oposta, o que justifica atribuir a ela a figura sonsa. Desse modo, embora considerem que as manifestações de Luzia a distanciem da degradação moral que elas representam, as mulheres infamadas pela miséria realizam um processo identitário que tende ao de assimilação em relação a Luzia, na medida em que creem na semelhança conjuntiva que as reúnem em um só grupo, o da degradação moral, atributo este que estaria supostamente imanente na identidade da personagem-título do romance de Domingos Olímpio. Porém, ao mesmo tempo, as marcas masculinas de Luzia a impedem de ser assimilada por esse grupo, o que acaba por realizar um processo de admissão em relação à protagonista.

Por sua vez, quanto ao tema da forma física, o simulacro de Luzia se configura enquanto termo complexo, na medida em que é caracterizado por figuras relativas tanto à

enunciativa, em que o narrador delega a voz para uma das moças infamadas pela miséria, que

aparece pela primeira vez na narrativa o termo “Luzia-Homem”, para se referir à Luzia: “Vão

ver que você, seu Crapiúna, também está fazendo roda a Luzia-Homem?!...” (OLÍMPIO, 2003, p.22).

Dessa maneira, o quadro síntese desse ator se configura do seguinte modo:

Quadro 8 – Síntese descritiva: moças infamadas pela miséria Papel actancial das moças

infamadas pela miséria: Destinador-julgador Papel temático-figurativo

das moças infamadas pela miséria:

Mulheres degradadas moralmente. Paixão(ões) das moças

infamadas pela miséria: Inveja (querer ser + saber não ser) Processo identitário das

moças infamadas pela miséria:

Admissão Figuras que definem Luzia

para as moças infamadas pela miséria:

Masculinidade: “pelos” e “buço”; Feminilidade: “mulher”;

“Sonsa”, “soberba” Temas que definem Luzia

para as moças infamadas pela miséria:

Forma física (tanto para a masculinidade quanto para a feminilidade); integridade moral

Simulacro identitário de Luzia para as moças infamadas pela miséria:

Termo complexo: mulher, com características masculinas; - objeto de desejo masculino, que parece ser honrada

Estatuto fórico do

simulacro de Luzia para o ator:

Disfórico Estatuto veridictório de

Luzia para o ator: Segredo

É importante observar que para as moças infamadas pela miséria a caracterização de Luzia como termo complexo é disfórica, uma vez que as características masculinas que estão atribuídas a ela constroem um simulacro que poderia ser considerado semelhante ao de um hermafrodita, fato este que pode ser constatado quando convocamos a seguinte debreagem

enunciativa: “Aquilo nem parece mulher fêmea” (OLÍMPIO, 2003, p.21).

Por outro lado, o processo de admissão realizado por este ator em relação a Luzia baseia-se no tema da degradação moral, em que o ator considera que Luzia pertence ao grupo por também partilhar de tal degradação, embora essa degradação não esteja aparente. Se considerássemos as características físicas manifestas por Luzia, ficaria difícil estabelecer um único processo, pois as mulheres enxergam como relevantes as características masculinas, ao ponto de conflitar com a feminilidade.

Analisado o simulacro construído pelo ator designado moças infamadas pela miséria, passamos agora para a observação do simulacro de Luzia a ser constituído pela antítese daquelas, isto é, as moças ainda não infamadas pela miséria.