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3. A ANÁLISE DE LUZIA-HOMEM NA PERSPECTIVA ACTORIAL

3.5 Teresinha

O ator Teresinha exerce predominantemente o papel actancial de adjuvante com relação ao programa de Luzia e vice-versa. É também esse ator que sofre as maiores mudanças que podemos presenciar ao longo da narrativa. Entretanto, elas só serão nosso foco neste trabalho na medida em que forem relevantes para a descrição do simulacro de Luzia.

Inicialmente, Teresinha está situada no ambiente temático-figurativo da degradação moral, pois se encontra em situação semelhante àquela vivenciada pelas moças infamadas pela miséria: uma vez que Teresinha abandonou o lar para viver com seu par romântico e, depois da sua morte, submeteu-se a um modo de vida degradante para sobreviver. Teresinha, mediante uma debreagem enunciativa, conta um pouco de si no fragmento a seguir:

Ah! também eu já tive muito de meu e agora vivo nesta miséria. Quando saí de casa com o Cazuza, meus pais, graças a Deus, ainda possuíam muita farinha, muito milho e muito arroz, na despensa, não falando nas matalotagens. Depois, andamos vagando pelo sertão como casados, até que o perdi. Morreu de bexigas, o pobre ... Eu saíra de casa com a roupa do corpo. Vi-me sozinha no mundo, sem ter com que comprar uma tigela de feijão... Fiz então, o que me mandou a minha ruim cabeça... E por aqui ando como um molambo, sem uma criatura que se doa de mim... Ainda hei de contar-lhe a minha vida. (OLÍMPIO, 2003, p. 32).

A partir da citação acima, percebemos inicialmente que o tema da degradação moral surge em virtude de sucessivos e progressivos estados de disjunção: com a família, com o par romântico e com o poder econômico, que representa a possibilidade de sobrevivência. Diante

dessa situação disjuntiva, Teresinha realizou aquilo que acreditava poder fazer e assim agravou ainda mais seu estado juntivo.

Em virtude do seu percurso, decorrente do seu acentuado estado disjuntivo com a dignidade humana, figurativizado nas figuras que remetem à família, ao poder constituir família e ao poder (sobre)viver, Terezinha, adquiriu um saber, o qual parece ser tematizado pelo tema do conhecimento empírico, oriundo da sua própria experiência, cuja vivência a fez conhecer a maldade e a esperteza do mundo e as crenças do povo sertanejo, tendo, consequentemente, como papel-temático figurativo, o papel da mulher vivida.

Dessa maneira, enquanto o francês Paul tem como tema subjacente o conhecimento científico, Teresinha parece figurativizar o tema do conhecimento empírico, obtido a partir da sua própria experiência, ao mesmo tempo em que representa também um elo com a sabedoria popular, conforme podemos depreender da debreagem enunciativa a seguir, que demonstra a relação dela com a sabedoria popular:

Diz-me o coração – atalhou Teresinha – que ele está penando injustamente... Mas... deixem estar que vou farejar o ladrão... Conheço uma velha que faz a adivinhação da urupema e sabe rezar o respônsio de Santo Antônio. Não há furto que não descubra. Uma coisa é ver, outra é dizer. Parece que tem parte com o cão... Meu Deus, perdoai- me... (OLÍMPIO, 2003, p. 55).

Acerca das crenças populares, segue outro trecho denotando seu conhecimento: “E,

acendendo fogo num cigarro de papel amarelo, continuou contando casos maravilhosos da feitiçaria de Rosa Veado que, além dessa habilidade, era insigne parteira, muito cuidadosa,

muito feliz” (p. 55).

O próximo trecho, debreado enuncivamente, mostra o conhecimento mundano tematizado por Teresinha: “Sabia quanto custava a privação súbita da companhia afetuosa de um ente querido; tinha a dolorosa experiência do abandono e das fatais consequências da

orfandade do coração.” (p. 55).

Ratificando que o ator em questão possui esse tipo de saber, temos ainda o seguinte trecho:

Arguta rapariga, afeita ao contato do vício e do crime, a percebê-los por intuição, estava convencida da inocência de Alexandre, e julgava obra de malvados, a infamante imputação.

- Ele não tem cara de ladrão – dizia – Conheço pela pinta quem pega no alheio; e nunca me enganei... Não se me dava de apostar... Enfim, não quero condenar a minha alma, levantando falso a ninguém; mas... deixem estar que hei de desmascarar os safados, que não têm consciência para fazerem sofrer um pobre... (OLÍMPIO, 2003, pp. 55 e 56).

Como pode ser verificado acima, além do narrador, criado pela debreagem enunciva, o próprio ator reconhece possuir essa espécie de conhecimento intuitivo acerca da maldade.

Outro tema que podemos atribuir a ela é o tema da beleza feminina e da

sensualidade, figurativizado na delicadeza de suas formas, como na passagem “loura, delgada

e grácil, de olhar petulante e irônico, toda ela requebrada em movimentos suaves de gata

amorosa” (p. 21).

Dado o universo temático-figurativo de Teresinha, partiremos agora para a descrição de sua relação com Luzia, bem como para a descrição do(s) processo(s) indentitário(s) que permeia(m) esta relação.

Para analisarmos a relação entre esse ator e Luzia, ao longo da narrativa, partiremos do exame do universo passional que ronda essa relação. A paixão que norteia e que acaba por permitir a aproximação de Luzia-Homem e Teresinha é a da admiração. A admiração é tomada no sentido do espanto, cujo efeito, conforme Greimas e Fontanille (1993), é incoativo e intenso, uma vez que Teresinha, ao se deparar com Luzia tomando banho, olhava-a em “estado de êxtase

de admirativa curiosidade” (OLÍMPIO, 2003, p.31). Nessa mesma direção, em sua obra Elementos de Semiótica Tensiva (2011), Zilberberg atribui à admiração ao caráter do

inesperado, ao mesmo tempo em que a opõe à percepção, cujo sujeito estaria exposto ao esperado, às coisas comuns. Dessa maneira, o simulacro de Luzia manifestado para esse ator é

da ordem do inesperado, do extraordinário, o que provoca o “êxtase de admirativa curiosidade”.

A outra face da admiração de Teresinha por Luzia é a que remete ao conceito de admiração presente no Dicionário Eletrônico Houaiss (2009), definido da seguinte maneira:

“disposição emocional que traduz respeito, consideração, veneração”, como podemos

depreender do trecho debreado enunciativamente, transcrito a seguir:

Não diga isso que é uma blasfémia – atalhou Teresinha, loura, delgada e grácil, de olhar petulante e irônico, toda ela requebrada em movimentos suaves de gata amorosa. - Por ela eu puno; meto a mão no fogo...

- Havia de sair torrada. Isso de mulher, hoje em dia, é mesmo uma desgraceira... - Mas você não pode negar que ela viva no seu canto sossegada sem se importar com a vida dos outros e fazendo pela sua, como uma moira de trabalho. Vocês, suas invejosas, não a poupam; não tendo para dizer dela um tico assim, vivem a maldar, a inventar intrigas e suspeitas. Nem que ela fosse uma despencada do mundo... - Tu a defendes, porque és parceira dela...

- Antes fosse!... Outros galos me cantariam. Não andaria aqui, sem eira nem beira, metida nesta canalhada de retirantes. Quem me dera ser como Luzia, moça de respeito e de vergonha... (OLÍMPIO, 2003, p. 21).

Por outro lado, a outra face da admiração de Teresinha por Luzia, caracterizada por

(2009), decorre de uma sanção positiva destinada a um determinado sujeito (Luzia), em virtude de seu estado ou da realização de uma determinada performance, e tem como consequência a configuração de outro estado passional, a configuração do zelo, que é essencialmente durativo e definido da seguinte maneira por Greimas e Fontanille (1993, p. 184): “um vivo ardor em servir a uma pessoa ou a uma causa à qual nos consagramos sinceramente”. Assim, o zelo é

discursivizado na narrativa pelo seguinte trecho “Hei de punir por você em toda parte” (p. 31),

cuja passagem do texto completa encontra-se mais adiante.

Dessa paixão, bem como do referido trecho, podemos observar que o universo axiológico de Luzia e Teresinha são semelhantes. Entretanto, percebemos que, para esta última, o estado daquela é eufórico, enquanto que seu próprio estado é disfórico. Desse modo, percebe- se que há, latente em Teresinha, um quererestar associada ao que Luzia representa: “Quem me

dera ser como Luzia, moça de respeito e de vergonha...” (p. 21)

Explicamos, então, o motivo pelo qual este ator não está incluído inteiramente no universo temático daquele a que denominamos moças infamadas pela miséria. Embora Teresinha se encontre, no início da narrativa, em um estado degradante e disfórico, não partilha o mesmo universo axiológico com as demais. Essa diferença existente entre o universo axiológico das moças infamadas pela miséria e o de Teresinha fica evidente no momento em que esta resolve defender Luzia daquelas e acaba sendo também por elas sancionada como próxima de Luzia, fato este que marca o distanciamento existente entre ela, Teresinha, e as

moças infamadas pela miséria.

Quanto ao processo indentitário, há pelo menos dois processos identitários que marcam a relação entre Luzia e Teresinha e que constituem um percurso. No início da narrativa, quando elas ainda não haviam se aproximado fisicamente, há o processo de admissão, uma vez que o movimento do qual falamos é de aproximação, que evolui para o de assimilação.

O fragmento que desencadeia transformação e marca a passagem do processo de admissão para o de assimilação encontra-se transcrito abaixo:

Uma vez, estando ela a banhar-se, depois de cheio o grande pote, na cacimba aberta no leito de areia do rio, em sítio distante dos caminhos e aguadas mais frequentadas, surpreendeu-a Teresinha, a rapariga branca e alourada, bem parecida de cara e bem feita de corpo, que era flexível como um junco, de sóbrias carnações e contornos graciosos.

Estava ainda longe o dia. As barras apenas despontavam no levante em pálido clarão e alguns farrapos de nuvens rubescentes. Exposta à bafagem da madrugada, Luzia de pé, em plena nudez, entornava sobre a cabeça cuias d'água que lhe escorria pelo corpo reluzente, um primor de linhas vigorosas, como pintava a superstição do povo o das mães-d'água lendárias, estremecendo em arrepios à líquida carícia, e abrigado em manto da espessa cabeleira anelada que lhe tocava os finos tornozelos. Ao perceber desenhar-se no lusco-fusco da neblina matinal, já perto, o vulto da moça a contemplá- la, soltou um grito de espanto e agachou-se, cruzando os braços sobre os seios.

- Não tenha receio, sa Luzia. Sou eu – disse Teresinha, atirando o pote sobre a areia. – Vim também lavar-me com a fresca. É tão bom, neste tempo de calor, poder molhar o corpo...

- Dê-me a camisa por favor – suplicou Luzia, transida de pejo, apontando para a roupa amontoada.

Teresinha não despregava dela os olhos, em êxtase de admirativa curiosidade. Deu- lhe a roupa, e, despindo-se sem o menor resguarde, banhou-se rapidamente.

- Você tem vergonha de outra mulher, Luzia? Eu, não. Não sou torta, nem aleijada, graças a Deus...

Vestida a camisa que se lhe amoldou ao corpo molhado, como leve túnica de estátua, Luzia não ousava erguer os olhos, tão confusa e perturbada estava.

- Agora sou sua defensora – continuou a outra torcendo os cabelos ensopados – Hei de punir por você em toda parte, porque vi com os meus olhos que é uma mulher como eu, e que mulherão!... Sabe? Outro dia estava numa roda conversando sobre moças que não há nenhuma honrada para aquelas línguas danadas, Falou-se de você e o Crapiúna, que estava ouvindo, disse que, por bem ou por mal, lhe havia de tirar a teima. (OLÍMPIO, 2003, p. 31).

Ao flagrar o banho de Luzia, Teresinha vislumbra no estatuto do parecer aquilo que até então estava no âmbito do ser, isto é, um segredo se revela: a feminilidade de Luzia. Desse modo, esse ator passa do não-saber ao saber. Por isso, a partir do momento em que ela identifica Luzia como mulher e, portanto, biologicamente igual a si, o processo de assimilação é

instaurado: “Hei de punir por você em toda parte, porque vi com os meus olhos que é uma mulher como eu, e que mulherão!...” (p. 31) Paralelamente, reconhecendo-a semelhante a si,

esse ator se reconhece como adjuvante de Luzia, ao se dizer sua defensora.

Entretanto, o processo de assimilação só se efetiva mais adiante, quando o estatuto disfórico de Teresinha não mais atua, separando-as, na medida em que, até então, seu ser encontra-se moralmente degradado:

- Olhe para mim, Luzia; mire-se no meu espelho. Eu já lhe quero bem, como parente minha, por isso falo-lhe assim. Veja como estou pagando os meus pecados; veja a minha desgraça e a quanto estou sujeita...

- É pena, você, uma moça branca, andar assim na vida... (OLÍMPIO, 2003, p. 34).

A partir da análise dos fragmentos acima, podemos perceber um estatuto distinto para duas características presentes na descrição de Luzia: a sua virtude moral e as marcas de sua feminilidade, que identificam a personagem-título como mulher.

Desse modo, o estatuto identitário das virtudes morais de Luzia são daordem do parecer para Teresinha, desde o início da narrativa, e confirmam o seu pertencimento à ordem do ser, adquirindo portanto o estatuto de verdade. Por sua vez, o estatuto veridictório das características biológicas concernentes ao aspecto da feminilidade da protagonista seria o de segredo, que por sua vez, no momento do banho, fora revelado à Teresinha.

Embora num dos fragmentos acima ela demonstre não ter certeza da feminilidade de Luzia, Teresinha não lhe atribui figuras concernentes à masculinidade e se refere à força de Luzia de modo neutro: “Tivera eu a sua força, não precisaria de arma: quebrava-lhe a cara

safada que ficaria a panos de vinagre. Quando ele me dissesse alguma liberdade, dava-lhe

tamanho tabefe...” (p. 34). Por outro lado, depois de revelada a feminilidade de Luzia, esse ator convoca a figura “mulherão” para atestá-la.

Considerando o que dissemos acima, segue a descrição sucinta das relações entre Teresinha e Luzia.

Quadro 11 – Síntese descritiva: Teresinha

Papel actancial de

Teresinha: Destinador-julgador e Adjuvante

Papel temático-figurativo

Teresinha: Mulher vivida

Paixão(ões) de Teresinha: Admiração (querer ser) -> zelo (querer fazer) Processo identitário de

Teresinha: Admissão -> assimilação

Figuras que definem Luzia

para Teresinha: “mulher de respeito e de vergonha”, “mulherão” Temas que definem Luzia

para Teresinha:

Forma física (feminilidade), força física (neutro), integridade moral

Simulacro de Luzia para

Teresinha: Mulher honrada e forte

Estatuto fórico do

simulacro de Luzia para o ator:

Eufórico Estatuto veridictório de

Luzia para o ator:

Segredo -> verdade (atributos físicos); Verdade (atributos morais)

Percebemos que aqui Luzia não se constitui mais enquanto termo complexo, que carrega marcas de ambos os termos contrários. Teresinha a vê como a mulher que é, em que o mais relevante fator de identificação é a virtude, ou seja, a integridade moral de Luzia.