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ANÁLISE DO CONTO “IDÉIAS DO CANÁRIO”, DE MACHADO DE ASSIS

The narrative in the Secondary School: a study about the importance of working the

5. ANÁLISE DO CONTO “IDÉIAS DO CANÁRIO”, DE MACHADO DE ASSIS

Em Idéias do Canário, o narrador inicial não recebe identifi- cação, mas, após introduzir as características do personagem cen- tral, passa a ele a palavra da narrativa:

UM HOMEM dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordiná- rio que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração3.

A partir desse momento, Macedo torna-se o narrador e co- meça a contar a história do dia em que, após quase ser atropelado por um tílburi (carro de duas rodas puxado por um só animal), é obrigado a entrar numa loja de belchior (estabelecimento que vende objetos usados) (HOUAISS, 2009). Ao entrar na loja, o narrador depara-se com a imagem do dono da loja:

Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a ca- beça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vi- das que foram vidas.

Notamos a indiferença de Macedo em relação ao proprietário, pois este chega a dizer que os objetos usados tiveram ao menos uma história, ao contrário do dono da loja. Ao olhar para o estabeleci- mento, nota um mundo escuro, sujo e cheio de objetos amontoados:

A loja era escura, atulhada das cousas velhas, tortas, ro- tas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dous cabides, um bodo- que, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imedia- ções da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.

3 Os trechos em análise foram extraídos do conto “Idéias do Canário”, de Machado de Assis. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000224.pdf>. Acesso em: 2 maio 2014.

Esse ambiente entra em disparidade com o mundo em que Macedo vive, organizado e claro, em que há a luz do “conhecimen- to e da ciência”. Até mesmo na forma como descreve o local, iden- tificamos a minúcia do narrador ao lidar com aquilo que examina, de modo que ele menciona cada objeto que enxerga.

Em meio àquele amontoado de objetos, ele percebe um feixe de luz entrando em contraste com aquela atmosfera mórbida: um canário.

Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada na porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desola- ção geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do pas- sarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes.

Para Ribeiro (2008), Macedo não vê o canário como perten- cente àquele ambiente, sendo um ser do seu mundo que acabou, por alguma infeliz eventualidade, indo parar naquele lugar. Esse autor, inclusive, compara a atitude de Macedo à da aristocracia, pois os aristocratas “não perdem a mania de ver e legitimar apenas e exclu- sivamente o seu próprio mundo”.

Macedo pensa logo em como tirar o pássaro da loja, chega próximo à gaiola e começa a refletir sobre o que um ser tão ilumi- nado estaria fazendo num lugar daquele:

– Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse compa- nheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?

Diante desse monólogo, o inesperado acontece, o pássaro su- bitamente responde a Macedo que ele só pode estar louco, pois não foi de modo algum deixado ali. Assim como o próprio narrador afirma que Macedo é tomado como louco por seus amigos, despres- tigiando-o, o canário também se indigna com a sua forma de pensar. O canário inicia um diálogo com Macedo, que insiste que, de alguma forma, o pássaro deve ter chegado àquele lugar, a menos que tenha vivido toda sua vida ali, sendo o velho da loja seu dono;

o canário responde a ele que não possui dono e que aquele senhor é, na verdade, seu criado, que o serve regularmente todos os dias, e, se tivesse de pagá-lo, não o faria com pouco, apresentando-nos o va- lor daquele que foi desqualificado por Macedo até o momento. No entanto, sendo o mundo dos canários, afirma a ave, não há porque pagar por algo que esteja dentro de sua propriedade. O pássaro, des- sa forma, deixa de compartilhar com a ideia que estávamos fazendo de Macedo e divide com ele sua concepção de que o mundo é dos proprietários, que as coisas têm donos (RIBEIRO, 2008).

Macedo, impressionado com o fato de poder entender o que diz o pássaro e com a argumentação dele, pergunta-o, ainda, o que seria o mundo para ele, no que o canário lhe responde que:

[...] o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é o senhor da gaiola que habita e da loja que o cer- ca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

Percebemos que o pássaro enxerga o mundo de forma meto- nímica (o todo pela parte), mas será isso um aspecto positivo? O canário não admite controvérsias sobre sua visão de mundo, tor- nando-a verdade absoluta, assim como o pensamento dominante no Brasil do século XIX.

O velho, que dormia em um canto da loja, acordou e foi até Macedo, perguntou-lhe se queria comprar o pássaro. O narrador adquire o pássaro, coloca-o em uma gaiola melhor, assim como o ambiente, que agora é mais climatizado e com vista para o jardim e o céu. Começa, então, a entrevistar o canário, estudando sua lin- guagem e questionando-o sobre as Ilhas Canárias, sua etnia etc. No desenrolar da conversa, indaga-o novamente sobre o que seria o mundo para ele, ao que o pássaro responde:

[...] é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.

O narrador agora encontra outro ponto de vista do pássaro, pois a visão agora é de sua casa, desse modo, essa metonímia acaba

sendo tolerável na concepção de Macedo, pois o ambiente que o narrador habita pode, sim, ser chamado de “mundo” (RIBEIRO, 2008). Para nós, o pensamento do pássaro sobre o mundo passa também a adquirir um aspecto libertador, pois ele muda seu con- ceito de mundo de acordo com o lugar onde vive; mas se adapta facilmente e aceita a nova forma de vida que conhece. No entanto, ainda não é possível, para Macedo, concluir seus estudos e enviá- -los ao Museu Nacional e às universidades alemãs, pois faltam al- guns reparos.

Um criado de Macedo é encarregado de toda manhã limpar a gaiola e alimentar o canário; este, porém, nunca lhe disse nada, pois, como diz Macedo, é como se o pássaro soubesse que esse criado não possui preparo científico.

Nesse momento da história, deparamo-nos com um pensa- mento ainda encontrado atualmente, em que pessoas de “mais ins- trução” menosprezam aquelas de menor grau de estudo como se não fossem capazes de assimilar qualquer informação.

Num sábado, Macedo adoece e fica incapacitado de conti- nuar os estudos, e o pássaro foge da gaiola, quando o criado vai alimentá-lo. Mais tarde, Macedo procura pelo canário de todas as formas, mas não o encontra. Certo dia, sai a fim de visitar um co- lega possuidor de uma chácara nos arrebaldes. Passeando entre as árvores com o amigo, Macedo ouve um trinado a lhe chamar, que é do canário: “– Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que de- sapareceu?”. Macedo começa a falar com o pássaro, porém, seu colega não entende o que acontece (para ele, Macedo está falando sozinho), pensando, assim, que ele tenha enlouquecido.

Macedo não se importa com o que o seu amigo pensa, sobre o quanto é estranho o que está acontecendo, e “implora” ao pássaro que volte para a sua casa, onde diz ser o seu mundo, mas o pássa- ro responde: “– Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima”.

Macedo, indignado com a resposta do pássaro, diz que, se lhe der crédito, o mundo é tudo, até mesmo já foi uma loja de belchior. Após essa afirmação, o canário ainda completa: “– De belchior?

Trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de bel- chior?”

Assim, presenciamos a gargalhada do canário, pois ele “trila às bandeiras despregadas”, ri abertamente, de uma pergunta sobre algo que ficou no passado; agora há outro mundo, novo, amplo e azul. O canário nem sequer se lembra daquele “mundo” a que Ma- cedo se refere e ainda cita seus maus hábitos de professor, que mui- tas vezes se acha esclarecido por suas definições cristalizadas sobre algo, fechando-se para novos horizontes. De acordo com Ribeiro (2008), o pássaro, ao contrário de Macedo, tem um pensamento iluminado por compreender o mundo sem se apegar a “verdades feitas e tidas como eternas”.

Assim, Macedo pode ser considerado o homem comum, ab- sorvido pelo pensamento de sua época, pelo seu mundo de verda- des inabaláveis, enquanto o pássaro não poderia ser uma pessoa, pois Machado coloca-o acima dos valores humanos encontrados no texto (poderíamos até dizer que o “pássaro” se iguala ao autor do conto). Aqui encontramos a história oculta do texto, citada por Piglia (2004).

Percebemos que, assim como é defendido por Poe e Machado de Assis em nosso breve histórico do conto, o tamanho da obra não lhe retira valor, pelo contrário, atribui-lhe. Um conto como esse pode de forma simples fazer o aluno refletir sobre questões sociais e sua própria maneira de encarar a vida.

As características do conto, como sua curta extensão e sua unidade de efeito, podem ser encontradas nas Idéias do Canário, pois é um conto até mais curto que o normal, cuja narrativa con- verge para uma única direção que envolve Macedo e o Canário, na qual encontramos a superioridade do canário quanto à concepção que se tem do mundo.

Fizemos uma análise com base na literariedade do texto, cap- tando elementos que poderiam ser analisados e assimilados pelos alunos do Ensino Fundamental II, assim como seriam esclareci- das as construções hipotéticas feitas pelo autor, inclusive a história oculta proposta por Piglia, mesmo que, para isso, houvesse o auxí- lio do professor.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, embora tenhamos feito uma abordagem his- tórica do conto para demonstrar a sua permanência na atividade li- terária, percebemos que, quando se tratar da análise do conto, deve ser realizada uma interpretação a partir do próprio texto, sem que haja referência ao contexto histórico, à biografia do autor, sua esco- la literária etc. Assim, o professor, ao introduzir o conto no universo do aluno, pode conduzi-lo a uma análise voltada para o texto em si, ensinando-o a encontrar nele referências do próprio mundo, em vez de aludir à biografia do autor, por exemplo.

Vimos que o ato de narrar é próprio de todo ser humano, pois o indivíduo de qualquer camada social pode contar anedotas, vis- lumbrar-se com algo que viu na TV e relatar aos amigos ou sim- plesmente se encantar com algo contado por outra pessoa. Assim, deve ser proporcionado a todos o ensino e a ampliação do senso de estética literária, pois todos nós temos a capacidade de entendê-la e apreciá-la progressivamente.

Pudemos notar que a fruição literária é o propósito da aula de literatura na escola, de acordo com os PCNs e as obras pesquisa- das. Essa fruição não visa tornar o aluno uma pessoa moralmente melhor, mas, sim, libertá-lo de modelos impostos pelas camadas da sociedade, tornando-o um indivíduo de pensamento crítico.

No conto Idéias do Canário, conseguimos realizar a maior parte da análise voltada para o texto; embora tenhamos abordado a forma de pensar do homem do século XIX, podemos compará-la à do homem contemporâneo, que ainda chama de “mundo” aquilo que é determinado pela sociedade em que vive e exclui dele aqueles que não possuem condições de manter o mesmo padrão de vida.

Pudemos perceber que a extensão do conto nos permite rea- lizar uma gama muito maior de leituras do que as que seriam feitas com romances. Assim, o professor pode trabalhar muito mais vezes esse exercício de interpretação e análise textual sem torná-la cansa- tiva, pois o aluno possivelmente realizará essa leitura num espaço de tempo muito menor. Não podemos dizer que é possível efetuar a leitura na sala de aula, pois isso dependeria da classe e do conto, e

nosso estudo é baseado somente em bibliografias; porém, é notável a diminuição no tempo dessa leitura.

Podemos entender a literatura assim como o canário do conto entende o mundo: de forma diferente a cada dia, não permitindo que sejamos submissos a nenhuma ideia nem conceito, fazendo-nos enxergar além do espaço infinito e azul com o sol por cima.

REFERÊNCIAS

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