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Relembramos, a propósito da análise efectuada no capítulo anterior acerca do devir-cavalo do pequeno Hans, como o fenómeno do devir se refere à experiência da criança. Trata–se, agora, de continuar a pesquisar sobre outros fenómenos relacionados com a Infância, a partir dos estudos de Stern, que não procedem por Imitação. No seu livro Le Monde Interpersonnel du bébé, a concordância afectiva é apresentada como sendo um fenómeno que perpassa a dimensão da imitação. Por volta dos nove meses, o bebé passa a conseguir partilhar estados afectivos, sem imitar, tornando-se um verdadeiro parceiro da intersubjetividade. Verifica-se, por exemplo, que o bebé consegue atrair a atenção da sua mãe para um brinquedo afim de partilhar com ela o quão divertido e encantador ele é.

Em primeiro lugar, tal como Stern o descreve, o comportamento de concordância difere dos outros:

35 STERN, D. (1989): p.16. Trad.: “Esta revolução dá-se, em parte, a partir do momento em que

aprendemos a colocar questões ao bebé para as quais ele está verdadeiramente capaz de responder. Assim que descobrimos quais as respostas possíveis, podemos colocar as questões certas.”

43 “Ce qui rend différent le nourrisson n´est pas seulement un nouvel ensemble de comportements et d´aptitudes. Le bébé a soudain une plus grande «présence» et manifeste une qualité du «ressenti» social différente qui est plus que la somme des nombreux comportements et aptitudes récemment acquis36.”

Não basta ter em conta os novos comportamentos adquiridos para explicar as modificações que estão em jogo. Ao surgir esse novo domínio no qual a concordância afectiva se inscreve, o domínio de si, o bebé faz notar uma diferença que afecta toda a sua existência. Como Stern afirma, é a maneira como o bebé passa a apreender o mundo e os outros que se altera. Neste sentido, a concordância afectiva está para além da aquisição de uma nova habilidade ou aptidão por parte do bebé.

Vejamos melhor em que consiste essa diferença. O bebé passa a conseguir comunicar e partilhar afectos com a sua mãe, mesmo sem saber falar. Se essa partilha tivesse origem num comportamento que procede por imitação, então, as interacções sociais entre a mãe e o bebé ficariam reduzidas a mímicas, imitação de gestos e diálogos, nos quais o mesmo seria repetido vezes sem conta. Isso poderia levar-nos a considerar a interacção humana precoce uma espécie de comunicação entre robots. Mas, aquilo que Stern descreve acerca dos diálogos entre as mães e os bebés, mesmo antes dos nove meses, é precisamente o contrário. De acordo com os resultados das suas experiências científicas, os sons que as mães vocalizam a partir dos sons dos seus bebés não se reduzem a uma sucessão de repetições porque, de cada vez que elas intervêm, introduzem ligeiras modificações. Daí deduz–se que algo distinto da imitação interfere nesses diálogos que refletem as primeiras interacções.

Stern confere à concordância afectiva outros nomes, tais como, “resposta em espelho” ou “resposta em eco” que sugerem claramente a ideia de um retorno. Segundo Stern, a segunda designação é aquela que mais se aproxima do fenómeno da concordância na medida em que evita a ideia de uma sincronia temporal pressuposta na primeira designação. De facto, a “resposta em espelho” pode fazer-nos pensar que basta observar e imitar os comportamentos do outro, como se fôssemos um espelho, para posteriormente os partilhar. Nos estudos de Stern verifica-se que não é disso que se trata: quando um bebé se entusiasma com um brinquedo e tem uma experiência de prazer e de excitação, não basta

36 STERN, D. (1989) p. 20. « O que torna diferente o bebé não é apenas um novo conjunto de

comportamentos e aptidões. O bebé tem subitamente uma maior “presença”, manifesta uma qualidade do “sentir” social diferente que é mais do que a soma de um conjunto de comportamentos e aptidões recentemente adquiridos. »

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que a sua mãe imite os seus comportamentos externos, mimetizando os seus gestos, para ele perceber que ela partilha os seus afectos. Nesse caso, o bebé apenas poderia deduzir que a sua mãe o compreendeu, mas não que ela partilha a sua experiência:

“Le nourrisson doit être en mesure de comprendre que la réaction parentale correspondante a un rapport avec sa propre expérience émotionnelle et pas seulement avec l´imitation de son comportement37.”

Como vem descrito na citação, a partilha dos afectos implica que a mãe os experiencie na sua individualidade.

O facto da mãe reproduzir os mesmo comportamentos exteriores não significa que ela ressinta as mesma experiências internas. A designação “resposta em eco” é mais precisa porque evita o problema da fidelidade ao original que se encontra pressuposto num comportamento de imitação. Na “resposta em eco”, também se evita a sincronia temporal que existe na resposta em espelho. Não se trata de produzir uma imagem como acontece quando olhamos para um espelho. Mesmo assim, há uma questão que permanece: como é que a mãe pode ressentir as experiências internas do seu bebé se, por um lado, se tratam de dois indivíduos distintos e, por outro, se o bebé ainda não sabe expressar–se verbalmente? Como nos indica Daniel Stern, no processo de concordância afectiva, a mãe desliza para dentro do bebé com a finalidade de capturar o seu estado interno ou afetivo do seu bebé:

“La mère se glisse à l´intérieur de l´état émotionnel du nourrisson, suffisamment profondément pour le saisir.38”.

Constata-se, assim, que na concordância afectiva a mãe procede por captura, fazendo sentido perguntar até que ponto podemos aproximar o fenómeno da concordância afectiva do devir – considerando que o devir é captação. Para verificar essa hipótese é necessário demonstrar a ocorrência de um movimento nos dois sentidos, uma reciprocidade entre a mãe e o bebé, de tal forma que entre os dois algo aconteça, criando- se uma zona de indiscernibilidade. Assim, a existir uma resposta em eco para que este retorno se possa distinguir de um comportamento de imitação, é necessário que reenvie

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STERN, D. (1989) p. 182. Trad.: “O bebé deve ser capaz de compreender que a resposta parental correspondente tem uma relação com a sua própria experiência emocional e não apenas com a imitação do seu comportamento. ”

38 STERN, D. (1989): p. 193. Trad.: “A mãe insinua-se no interior do estado emocional do bebé o

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para algo novo que ainda não existia antes. Portanto, depois da mãe capturar o estado emocional do bebé, deve poder devolvê-lo ao seu bebé introduzindo uma diferença. Esta é a única forma de podermos afirmar que na concordância afectiva dá-se uma dupla captura da mesma ordem que o fenómeno do devir. Trata-se, portanto, de perceber o que é que acontece ao nível das interacções entre a mãe e o bebé que difere da imitação para, em seguida, analisar a possibilidade dessa diferença ser idêntica à que está em jogo no devir.

Comecemos por olhar para alguns dos exemplos de concordância afectiva referidos nos estudos de Stern. O primeiro exemplo descreve uma bebé muito excitada com um brinquedo que quando finalmente o consegue alcançar, solta um grito exuberante “Aaaah!”, olhando para a sua mãe. Nesse mesmo instante, a mãe devolve-lhe o olhar e começa a dançar com toda a parte superior do seu corpo, fazendo mexer os seus ombros, com a mesma intensidade e alegria com que a sua filha gritou. Neste primeiro exemplo verifica-se que a resposta da mãe não se baseia na imitação dos comportamentos da sua filha. Pelo contrário, aquilo que a mãe parece apreender do comportamento da sua filha não é a sua forma exterior, mas algo relacionado com a sua expressão.

Num segundo exemplo referido por Stern, um bebé começa por bater com a mão num brinquedo mole, muito zangado e, aos poucos, vai batendo mais alegremente e num ritmo regular. Em retorno, a sua mãe vocaliza os seguintes sons, “kaaaaaaaaaaaaa-bam, kaaaaaaaa-bam”, seguindo o mesmo ritmo e fazendo corresponder bam ao momento em que o seu bebé bate no brinquedo, e kaaaaaaaaa, ao momento em que está com o braço levantado. De novo, aquilo que acontece não se pode reduzir à mimetização de um comportamento observável. Enquanto o bebé age batendo num brinquedo, a sua mãe, vocaliza sons. Por outro lado, é possível estabelecer uma correspondência entre os ritmos dos batimentos do bebé e os ritmos dos sons vocalizados pela mãe. Se é o ritmo que estabelece uma conexão entre as interacções de um e de outro, então, temos novamente que admitir que aquilo que a mãe capta é distinto da forma externa de um comportamento, tornando-se necessário definir um estatuto quer para o ritmo, como para a intensidade.

Num terceiro exemplo, um rapazinho encontra-se sentado à frente da sua mãe agitando um guizo de cima para baixo com bastante interesse e algum divertimento. A sua mãe observa–o, movimentando a sua cabeça para cima e para baixo, seguindo o mesmo ritmo dos movimentos do braço do seu filho. Neste último caso, o que a mãe parece extrair do comportamento do seu bebé, é a forma dada pelo movimento.

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Seguindo estes três exemplos, podemos concluir que aquilo que está em jogo na concordância afectiva difere da mera reprodução de um comportamento externo. Pretende- se partir dessa verificação para tentar perceber mais concretamente o que é que está em jogo quando a mãe responde ao seu bebé, ou ainda em que é que ela se baseia para emitir uma reposta. Seguindo a ordem dos exemplos apresentados, o que a mãe parece ter apreendido dos comportamentos do seu bebé, é a sua intensidade, o seu ritmo e a sua forma. Mas, como definir estas três características associadas aos comportamentos? Se não são da ordem da imitação, então a que domínio pertencem? Por outro lado, de acordo com aquilo que foi enunciado anteriormente, a concordância afectiva reúne várias condições entre as quais, a necessidade da mãe experienciar na sua individualidade os mesmos estados afectivos que o seu bebé. Consequentemente, a mãe deve poder basear-se nesses mesmos estados afectivos que o seu bebé para comunicar com ele. Nesse caso, a intensidade, o ritmo e a forma seriam passíveis de expressar o estado interno ou emocional do bebé.

Vejamos como é que Stern identifica o referente sob o qual se baseia a resposta da mãe:

“Ce qui est rendu, ce n´est pas en soi le comportement de l´autre personne, mais plutôt un certain aspect du comportement qui reflète l´état émotionnel (déduit ou directement appréhendé), non le comportement extérieur. Ainsi l´appariement paraît survenir entre les expressions d´états internes.39

De facto, segundo os estudos do cientista, aquilo que está em jogo não são os comportamentos externos, mas os estados internos. Através desta citação, podemos igualmente perceber algo sobre a maneira como esse estado interno é apreendido pela mãe: directamente e sem mediações. Ora, através destas indicações precisas, percebemos a forma como Stern remete o fenómeno da concordância afectiva para o campo da experiência directa, fora da consciência, que nos ajuda a aproximá-lo do fenómeno do devir.

Revisitando os três exemplos apresentados, voltamos a identificar os referentes que permitiram às mães entrar em concordância afectiva. No primeiro, o bebé grita com uma

39 STERN, D. (1989) p. 185. Trad.: “O que é devolvido não é em si o comportamento da outra

pessoa, mas um certo aspecto do comportamento que reflete o estado emocional directamente apreendido e não o comportamento exterior. Assim, a associação parece ocorrer entre as expressões de estados interiores. »

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determinada intensidade e a sua mãe responde-lhe de acordo com essa característica. O referente parece ter sido a intensidade. No segundo exemplo, o bebé expressa–se com alegria e exuberância, movimentando o seu braço num ritmo regular, enquanto que a sua mãe vocaliza alguns sons segundo o mesmo ritmo dos movimentos do seu filho. Neste caso, além da intensidade, o referente interno terá sido também o ritmo. No último exemplo, a mãe dá conta da mesma forma vertical dos movimentos do braço do bebé, mas fá-lo através de movimentos do seu do corpo. Neste caso, o referente teria sido a forma.

“Par contre, le comportement d´accordage reconstruit l´évènement, et déplace l´attention vers ce qui sous–tend le comportement, vers le caractère de la sensation en train d´être partagée. (...) L´imitation traduit la forme, l´accordage traduit la sensation40.”

Ficamos, assim, com a certeza que para Stern o domínio do processo de concordância afectiva difere da imitação, pois aquilo que a mãe apreende é da ordem da sensação e não da forma. Quando a mãe entra em concordância afectiva, não reproduz o comportamento externo do seu filho, mas capta o seu estado interno. Como tal, deduz-se que a intensidade, o ritmo e a forma, enquanto características dos comportamentos dos bebés apreendidas pela mãe, são do domínio da sensação. Ora é certo que a intensidade e o ritmo, não sendo representáveis, nem conceptualizáveis, não se podem imitar. Enquanto que a imitação pressupõe uma forma, o devir, por exemplo, contempla partículas sem forma nem função. O problema está em perceber como é que a forma não é do domínio da imitação porque então teremos que admitir uma forma que não seja a forma da figura.

Neste sentido, iremos prosseguir com o objectivo de compreender como é que Stern define a forma como algo que está para lá da imitação.