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Entre os vários estudos científicos de Daniel Stern dedicados às mais recentes e inovadoras descobertas acerca dos bebés, em particular, “O Mundo Interpessoal do Bebé”, Stern refere-se à experiência subjetiva dos bebés durante o período pré-verbal. De modo geral, podemos afirmar que antes de Stern, os psicólogos do desenvolvimento limitaram-se a emitir hipóteses baseadas na mera observação dos comportamentos dos bebés, excluindo todas as hipóteses relacionadas com o aspecto mais subjetivo da sua experiência. Por sua vez, os psicanalistas construíram algumas teorias clínicas sobre o mundo interno do bebé à luz de conceções muito ultrapassadas. Foi Daniel Stern, juntamente com outros investigadores da sua equipa, o responsável pela descoberta da existência de vários domínios de si pré-verbais que permitem ao bebé uma interacção social muito precoce. Esses domínios pré-verbais explicam a maneira como o bebé experiencia o próprio surgimento desses sentidos, enquanto processo. Para conseguir chegar a estes resultados, Stern baseou as suas experiências na observação das interacções sociais quotidianas do bebé que são, para o investigador, limitadas à sua interacção com a mãe – e não com o mundo inanimado dos objetos, tal como foi estabelecido por Piaget. Por sentido de si, Stern entende uma consciência elementar, não reflexiva, que existe fora da consciência, tal como a respiração. Stern refere–se, assim, à experiência directa. Em consequência, esses sentidos de si não fazem parte do domínio do conceito ou daquilo que se pode conceptualizar. Ao contrário dos seus antecessores no campo da psicologia, Stern considerou a existência de sentidos de si antes da aparição da linguagem, revolucionando a ideia até então partilhada de que só num estado de desenvolvimento mais avançado da

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criança – com a aparição da linguagem e da consciência reflexiva – é que se poderia deduzir sobre a experiência de uma subjetividade. Eis algumas perguntas que o livro coloca: Como é que os bebés se experienciam e percebem os outros? Como é que eles vivem a experiência da troca e da partilha com outra pessoa? Que género de mundo ou de mundos interpessoais é que o bebé cria?

É importante compreender o modo como Stern utilizou a sua intuição para começar a colocar algumas hipóteses, baseando–se também na observação dos comportamentos dos bebés. Por que razão terá procedido dessa forma? No primeiro capítulo do referido livro, Stern descreve que ao reconhecermos que o adulto não pode conhecer o mundo subjetivo do bebé senão deduzindo–o a partir da sua própria vida subjetiva, parece estarmos perante uma certa circularidade, pois se o bebé não fala, como podemos traduzir para palavras a sua experiência subjetiva, aquilo que este pressente? A experiência não-verbal parece escapar completamente à conceptualização e à definição segundo as nossas categorias de adulto. Como tal, existem duas hipóteses: i) considerar que apenas podemos deduzir algo da experiência dos bebés a partir da nossa própria subjetividade, o que evidentemente torna limitado o nosso acesso à mesma; ii) concluir que só a partir do momento em que a criança se torna capaz de reconhecer-se enquanto entidade objectiva e de pronunciar as palavras “eu”, “meu”, etc., referindo–se a si mesmo enquanto categoria externa, é que se torna possível apreender uma subjetividade.

Podemos afirmar que deste livro emana uma nova possibilidade, pois Stern contorna a dificuldade assinalada considerando, à partida, uma hipótese diferente, segundo a qual, seria possível captar precisamente o mundo interno do bebé. Embora essa hipótese parta de uma intuição ou de uma invenção, como o próprio refere, ela é comprovada cientificamente, ao longo dos estudos, mediante o recurso a várias experiências e observações levadas a cabo.

“Comme nous ne pouvons pas connaître le monde subjectif qu´habitent les nourrissons, nous devons l´inventer afin d´avoir une origine qui permette l´élaborations d´hypothèses. Ce livre est une telle invention. Il est une hypothèse de travail sur la manière dont les nourrissons font l´expérience de leur propre vie sociale34.”

Interessa-nos considerar a maneira como Stern apresenta o problema relativo ao

34 STERN, D. (1989): p. 14. Trad.: “Uma vez que não podemos conhecer o mundo subjetivo em

que os bebês vivem, precisamos de inventá-lo, de modo a ter um ponto de partida que permita a elaboração de hipóteses. Este livro é essa invenção. É uma hipótese de trabalho sobre a maneira como os bebés fazem a experiência da sua própria vida social”

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acesso à experiência subjetiva dos bebés, assim como assinalar a forma como o resolve - questão transversal a todo este trabalho.

Recapitulando, se olharmos para a criança como um ser que se irá tornar num adulto e a compreendermos à luz dessa evolução, situando–a numa linha de tempo horizontal, como se a infância fosse somente uma etapa da vida, não conseguiremos apreendê-la enquanto um ser único e singular. Aquilo que se pretende é, contrariamente, tornar possível o acesso à experiência da Infância na sua diferença, i. e., sem recorrer a algum tipo de comparação com o adulto. Trata–se de tentar pesquisar sobre os processos que escapam à esfera da Imitação para, a partir daí, perceber se existe uma relação com a própria Infância. Torna-se, assim, evidente a importância de considerar os estudos de Stern para a presente pesquisa. Além disso, a sua análise debruça-se sobre o domínio do não-verbal, um terreno onde o adulto já não habita mais. Talvez, desta forma, seja possível vir a delinear uma nova acepção do que é criança, independentemente das nossas categorias do adulto.

Retomando a citação anterior, parece-nos essential estabelecer uma distinção entre o termo “invenção”, empregue por Stern e o uso que lhe foi atribuído pelos psicólogos clínicos, o qual foi acima referido. Enquanto que estes se debruçam sobre o passado de pacientes adultos, fazendo referência à sua infância com base nas memórias para recriar a sua história vivida enquanto bebé, Stern parte justamente da observação de bebés. Assim, a hipótese segundo a qual os bebés são, à partida, seres sociais dotados de uma certa interacção com o mundo e outros seres humanos, é ao mesmo tempo uma invenção, nesse sentido – i. e., resulta também de uma observação. Isso conduz-nos a apreender a forma intuitiva como Stern captou o mundo interno dos bebés, mesmo sem conseguir falar com eles e, consequentemente, faz-nos pensar na intuição, não como algo menor, mas como uma possibilidade de acesso a esse mundo. Talvez os outros psicólogos, como os que referimos anteriormente, não tenham conseguido apreender a experiência subjetiva dos bebés, porque não souberam sair da sua perspectiva de adulto, a qual inclui obviamente as mediações cognitivas relacionadas com a sua forma de conhecer e pensar. Talvez Stern tivesse descoberto o acesso ao mundo subjetivo do bebé, tendo o próprio aprendido a situar–se, desde já, num campo para lá do verbo, da representação e do conceito. Mas, como pode Stern tê-lo feito se isso implica sair da própria consciência?

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No capítulo precedente, foram referidas várias condições para o processo do devir entre as quais, a dissolução do sujeito e a criação de uma zona de indiscernibilidade onde já não se sabe quem é quem. Iremos verificar, mais adiante, o que acontece entre a mãe e o bebé, para perceber se é algo da ordem do devir.

Continuando a explicar alguns termos relativos à citação precedente, podemos ainda afirmar que a “observação” dos comportamentos, levada a cabo por Stern, difere radicalmente daquela descrita pelos psicólogos do desenvolvimento. Stern tomou de antemão alguns comportamentos do bebé como portas de acesso ao seu mundo interno e não como fenómenos objectivos desprovidos de subjetividade. Desta maneira, aliando a intuição à observação, Stern conseguiu não só romper com uma certa acepção mais tradicional da pequena infância, a qual se situa num período pré-social, pré–cognitivo e pré–organizado, como ainda descobrir uma grande atividade inerente à vida subjetiva e interpessoal dos bebés. A título de curiosidade, passamos a referir alguns exemplos dessas descobertas, através da referência a um outro livro, O Diário do Bebé, no qual Stern descreve o interesse de uma criança com menos de dois meses por acontecimentos reais que se passam no exterior, como um raio do sol refletido na parede do seu quarto. Embora a criança não apresente nenhum conhecimento do sol ou do seu reflexo enquanto representação ou conceito, mostra–se sensível aos movimentos e à intensidade da luz desse reflexo. Ambos esses estímulos sensoriais captam inteiramente a sua atenção, deixando–o fascinado, como se tratasse de um espetáculo de dança! Noutra passagem, Stern relata a maneira como as seguintes palavras, “Meu querido!”, ditas pela mãe de um menino, afectam o seu bebé. Embora não possa ainda compreender o seu significado, o bebé capta as sensações de ternura apaziguadoras e doces, associadas ao som da voz da sua mãe! Ainda que sejam da ordem da sensação, Stern afirma que estas experiências, longe de denotarem uma falta ou uma ausência vêm, pelo contrário, revelar a existência de uma forma de ressentir o mundo e a si próprio muito singular, aquilo a que podemos chamar experiência subjetiva nos bebés.

Antes de terminar esta breve apresentação dos trabalhos de Stern e de passar à análise do um sentido de si muito específico, o si-subjetivo, resta-nos somente ainda referir uma citação acerca do acesso ao mundo interno do bebé:

42 “Cette révolution s´est en partie produite lorsqu´on a appris à poser au bébé des questions auxquelles il était vraiment capable de répondre. Des qu´on a découvert quelles réponses étaient possibles, on a pu poser les bonnes questions35.”

De facto, trata–se, primeiramente, de conseguir identificar um comportamento passível de ser tomado como uma boa resposta para, de seguida, fazer uma pergunta. Por exemplo, considerando como boa resposta o comportamento de virar a cabeça para um lado e para outro, tão habitual no bebé, Stern faz a seguinte pergunta: será que um bebé com apenas dois dias consegue reconhecer o cheiro da sua mãe? Afim de obter uma resposta, Stern colocou duas almofadas, do lado esquerdo e direito da cabeça do bebé, uma das quais com cheiro a leite materno. Ao observar que o bebé virava a cabeça para o lado da almofada com cheiro, deduziu sobre o facto do bebé estar apto apenas com dois dias a reconhecer o leito materno, através do seu cheiro. Esta demonstração resulta num acesso ao mundo subjetivo do bebé a partir dos seus comportamentos habituais, algo que os outros psicólogos, tal como já foi descrito, presos na sua forma adulta não foram capazes de fazer.