• Nenhum resultado encontrado

A INFÂNCIA DAS CRIANÇAS Uma análise da ideia de Infância segundo o processo do devir e o fenómeno da concordância afectiva Rita Pedro

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2019

Share "A INFÂNCIA DAS CRIANÇAS Uma análise da ideia de Infância segundo o processo do devir e o fenómeno da concordância afectiva Rita Pedro"

Copied!
108
0
0

Texto

(1)

(2)

Para o Omar

(3)

A INFÂNCIA DAS CRIANÇAS

Uma análise da ideia de Infância segundo o processo do devir e o

fenómeno da concordância afectiva

(4)

Resumo

Esta pesquisa procura reunir as condições de possibilidade para se poder pensar na ideia Infância enquanto diferente, i.e., para lá da esfera da Imitação, mediante a busca e a análise de conceitos adequados. Segundo uma análise do processos de devir em Deleuze e do fenómeno da concordância afectiva em Daniel Stern, deduzir-se-á sobre o estatuto ontológico da Infância. A análise do conceito de devir, nomeadamente, o devir-cavalo do pequeno Hans (interpretado por Freud) estabelece uma distinção entre a infância e o domínio da representação. Segundo a descrição de Deleuze, a maneira como a criança lida com o cavalo, não resulta de uma representação, mas da construção de um plano de composição, onde os afectos do cavalo se irão conectar com os da criança, segundo um agenciamento. Como tal, deduzir-se-á sobre o processo de devir como reenviando para a diferença. Por sua vez, os estudos de Stern em torno do fenómeno da concordância afectiva, mostram-nos como certos comportamentos dos bebés não resultam da mera Imitação, mas da experiencia directa, situada num campo pré-verbal e pré-cognitivo. Os bebés estão predispostos a traduzir de um sentido para o outro aquilo que ressentem e, desta forma, poderem partilhar com a sua mãe aquilo que ressentem. A partir desses resultados sobre o fenómeno da concordância afectiva, irá deduzir-se sobre a necessidade de o situar no domínio das forças, o qual também reenvia para a diferença. Em terceiro lugar, com base na descrição de José Gil a respeito do processo de devir-criança em Caeiro, será estabelecida, por um lado, uma distinção entre o processo de devir-criança e a memória e, por outro, entre o tempo Cronos e o tempo Aîon. Não se trata da criança evoluir na direcção do adulto, mas de devir-criança independentemente da idade, o que obriga a uma transformação do tempo cronológico. Desta maneira, serão igualmente reunidas as condições que permitem fazer coexistir a criança e o adulto num mesmo plano, o plano de Infância, apesar destes se constituírem como seres heterógenos. A última parte deste trabalho pretende efectuar uma abordagem filosófica às perguntas das crianças partindo dos resultados das análises anteriores. Seguindo a análise das perguntas-máquina, em Mille Plateaux, de Deleuze, será estabelecida uma distinção entre uma interpretação (daquilo que as crianças dizem) segundo as teorias da psicanálise e uma experimentação. Por último, partindo de um texto filosófico da autoria de uma criança de oito anos, deduziremos sobre a necessidade de entrar num movimento de devir-criança, para se poder aceder à compreensão das perguntas inerentes ao texto da Mariana. Em jeito de conclusão, será distinguido o estatuto ontológico da Infância, da criança tomada a partir das fases ou das etapas do desenvolvimento e enquanto estado psicológico.

(5)

Abstract

This research seeks to gather the conditions of possibility to conceive the idea of Childhood as different, i.e., beyond the sphere of Imitation, by searching and surveying the appropriate concepts. Following an examination of the processes of becoming in Deleuze and the phenomenon of affective agreement in Daniel Stern, conclusions will be drawn as to the ontological status of Childhood. The analysis of the concept of becoming, namely, little Hans’ becoming-horse (interpreted by Freud), establishes a distinction between childhood and the domain of representation. On Deleuze’s account, the way in which the child deals with the horse does not issue from a representation but from the making of a plan of composition, where the horses’ affects will connect with those of the child, according to an assemblage. Thus, a conclusion will be arrived at concerning the process of becoming as pointing towards difference. In turn, Stern’s studies on the phenomenon of affective agreement show us how certain infant behaviours are not the result of mere Imitation but rather of direct experience, placed within a pre-verbal and sub-cognitive field. Babies are predisposed to translate from one sense into another what they refeel and are thus able to share it with their mothers. We will argue from those results on the phenomenon of affective agreement to the need of placing it within the domain of forces, which also points towards difference. Thirdly, based on José Gil’s description of the process of becoming-child in Caeiro, it will be drawn, on the one hand, a distinction between the process of becoming-child and memory and, on the other hand, between Chronos time and Aion time. It is not a matter of the child evolving towards adulthood, but rather of its becoming-child regardless of age, which compels a transformation of chronological time. In this way, we will also gather the conditions allowing the coexistence of child and adult within a same plane, the plane of Childhood, despite their both being constituted as heterogeneous beings. The final part of this work attempts a philosophical approach to questions posed by children, drawing on the results of previous analyses. Following the analysis of the machine-questions in Deleuze’s Mille Plateaux, a distinction will be made between an interpretation (of what children say) according to psychoanalytical theories and an experimentation. Finally, from a philosophical text written by an eight year old, we shall draw conclusions as to the need of going into a movement of becoming-child, in order to achieve understanding of the questions inherent to Mariana’s text. In guise of conclusion, we will distinguish between the ontological status of Childhood, of the child taken from the stages or steps of development and as a psychological state.

(6)

Índice


Lista de Abreviaturas e Siglas ... 8

Introdução ... 10

1.1O devir-animal ... 15

1.2 O devir-molecular e o devir-mulher ... 26

1.3 O devir-cavalo do pequeno Hans ... 31

2º CAPÍTULO: A CONCORDÂNCIA AFECTIVA ... 38

2.1 O estudos de Daniel Stern ... 38

2.2 Análise do fenómeno da concordância afectiva ... 42

2.3 A percepção amodal nos bebés ... 47

3º CAPÍTULO: O DEVIR–CRIANÇA ... 54

3.1 Aproximação da Visão de Caeiro à criança segundo José Gil ... 54

3.2O devir-criança em Deleuze e o devir-criança de Caeiro ... 62

3.3 O devir-criança da criança ... 66

CAPÍTULO 4 – AS PERGUNTAS DAS CRIANÇAS ... 77

4.1 As perguntas–máquina segundo Gilles Deleuze ... 77

4.2 O que pode uma pergunta de uma criança? ... 89

CONCLUSÃO ... 100

ANEXOS ... 104

(7)
(8)

Lista de Abreviaturas e Siglas

Nesta tese foram utilizadas, por uma questão de simplificação da escrita, as seguintes abreviaturas:

FpC – Filosofia para Crianças i. e. – isto é.

por ex. – por exemplo. trad. – tradução

(9)

Le peintre vit dans la fascination. Ses actions les plus propres (...) il lui semble qu´ils émanent des choses mêmes, comme le dessin des constellations. Entre lui et le visible, les rôles inévitablement s´inversent. C´est pourquoi tant de peintres ont dit que les choses les regardent, et André Marchand après Klee : « Dans une forêt, j´ai senti à plusieurs reprises que ce n´était pas moi qui regardais la forêt. J´ai senti, certains jours, que c´étaient les arbres qui me regardaient, qui me parlaient… Moi j´étais là, écoutant… Je crois que le peintre doit être transpercé par l´univers et non vouloir le transpercer… J´attends d´ être intérieurement submergé, enseveli. Je peins peut être pour surgir. »1

1

(10)

10

Introdução

O que é a infância? Ao colocarmos esta questão, somos imediatamente confrontados com um novo problema, pois ao considerarmos a criança do ponto de vista do adulto, i. e., segundo uma relação ao adulto tomado como modelo, dificilmente conseguiremos apreendê-la na sua diferença. Um adulto aprende a dar significados às coisas desde o momento em que nasce, porém, enquanto criança ainda não adquiriu tais conteúdos ou sentidos. Devido a esse estado de coisas, somos inevitavelmente conduzidos a pensar na infância como a primeira etapa da vida, como um estado anterior à vida adulta. Em consequência, somos incitados a deduzir uma ideia de infância sempre a partir de uma incompletude. Tendo por base essa perspectiva, a criança acaba reduzida à ideia de um “adulto em miniatura”, o qual não pode evoluir senão na direcção de um estado final, o da vida adulta.

Entendemos que esta forma de conceber a infância e de perspectivar a criança a partir de uma falta ou incompletude, escapa à sua captação enquanto singularidade. Pretende-se, através deste trabalho, definir um novo estatuto da criança que permita afirmar o que ela já é, independentemente do facto de vir a tornar-se num adulto. Esta abordagem não pretende, contudo, negar o adulto, como se as crianças não tivessem com ele qualquer relação, mas de tentar perceber essa mesma relação como um encontro entre dois seres distintos e não como seres que se assemelham. O segundo propósito deste trabalho consiste na análise das perguntas que as crianças colocam, cujos problemas se aproximam de questões de natureza filosófica. Esta análise pretende descortinar a “chave” do acesso à sua compreensão recorrendo, para isso, à descrição de Deleuze sobre as perguntas -máquina, e, em seguida, a um texto da autoria de uma criança de oito anos.

(11)

11 torna diferente de todas as outras2.” Ao considerar esta ideia do filósofo, deduzimos que para apreender a criança na sua singularidade, é necessário estabelecer primeiramente as condições de possibilidade de se pensar a diferença como primeira.

O capítulo inicial sobre o conceito de Devir em Deleuze, especificamente, sobre a análise descrita pelo filósofo em Mille Plateaux acerca do devir-animal, o devir-mulher, o devir-molecular e o devir-cavalo do pequeno Hans (Hans, o caso clínico referido na obra de Freud), consiste justamente na abordagem desse problema. Depois de reunidas essas condições e de se justificar as razões que levam o conceito de devir a escapar à esfera da Imitação, é que será possível começar a analisar o processo através do qual uma criança se pode diferenciar. Assim, ainda no primeiro capítulo, a propósito da descrição do devir-cavalo do pequeno Hans, a qual se reporta ao modo como uma criança lida com um animal, tentaremos perceber, por um lado, o que é que faz com que a experiência desta criança se distingue do plano da representação e, por outro, como é que essa distinção implica a criação de um novo plano onde o corpo da criança, designado por Deleuze como corpo sem órgãos, entra em jogo.

No segundo capítulo, é apresentado e analisado o fenómeno de concordância afectiva. Segundo o psicólogo Stern, os estudos que partiram da observação das interacções precoces entre a mãe e o bebé revelam que os bebés já nascem predispostos a realizar um determinado comportamento designado, nas palavras de Stern, por concordância afectiva e que não pode ser equiparado a um comportamento de Imitação. Quando a mãe entra em concordância afectiva com o seu bebé, capta o seu estado interno e devolve-o imediatamente para ele segundo uma nova expressão comportamental. Por sua vez, o bebé faz o mesmo com a sua mãe. Desta forma, o bebé consegue partilhar com a mãe aquilo que ressente, mesmo sem recorrer à linguagem. Depois de ilustrar este novo comportamento, recorrendo à apresentação de vários exemplos que são exibidos nos estudos de Stern, tentar-se-á perceber concretamente em que consiste a natureza dos caracteres (intensidade, ritmo, forma) a partir dos quais o comportamento opera ou, dito de outro modo, as propriedades segundo os quais se dá a concordância ou o espelhamento. Apenas desta forma, ou seja, só ao determinar o que os distingue da mera forma (forma da representação) é que se poderá entender como é que a concordância afectiva reenvia para diferença. A partir dos estudos de Stern tentaremos apreender ainda uma certa experiência

(12)

12 da criança, relacionada com a experiência directa, i. e., a experiência não mediada por operações cognitivas, uma experiência situada fora da consciência, num domínio não-verbal. Estes resultados serão posteriormente considerados para se estabelecer uma aproximação entre o processo do devir e o fenómeno da concordância afectiva e, por fim, averiguar a possibilidade de partirmos da sua análise para se definir uma nova ideia de Infância, para lá da Imitação.

O terceiro capítulo estende-se à análise do conceito de devir e ao conceito de devir-criança, não apenas segundo a descrição levada a cabo por Deleuze, em Mille Plateaux, mas também segundo uma análise de José
 Gil
 em
 torno
 do
 poeta
 Alberto
 Caeiro.
 Este
 capítulo
 acaba,
 de
 certa
 forma,
 por
 prolongar
 o
 primeiro
 e
 segundo
 capítulo,
 englobando
 os
 resultados
 obtidos
 em
 ambos.
 Trata‐se
 fundamentalmente
 de
 partir
 dos
conceitos
anteriores
para
começar
a
traçar
uma
nova
ideia
de
infância.
Durante
 esse
 processo,
 colocam‐se
 diversas
 questões,
 nomeadamente:
 como
é
 que
 se
 irá
 poder
pensar
nessa
ideia
tendo
em
conta
que
o
devir
implica
não
só
uma
dissolução
 do
sujeito,
como
a
criação
de
uma
zona
de
indiscernibilidade
na
qual
já
não
se
sabe
 quem
é
quem?
Se
não
se
trata
da
criança
evoluir
na
direcção
ao
adulto,

tão
pouco
se
 irá
 poder
 defini‐la
 a
 partir
 da
 sua
 idade
 ou
 classificá‐la
 segundo
 as
 etapas
 do
 desenvolvimento.
 Mas,
 não
 será
 um
 contrassenso
 tentar
 definir
 a
 criança
 independentemente
da
sua
idade?
Por
outro
lado,
ao
adotarmos
o
conceito
de
devir,
 é
 a
 própria
 criança
 enquanto
 sujeito
 que
 desaparece.
 A
 partir
 daí,
 como
 podemos
 continuar
a
apreender
aquilo
que
a
diferencia
se,
paradoxalmente,
segundo
um
devir,
 a
 criança
 não
 só
 deixa
 de
 existir
 como
 sujeito,
 como
 ainda
 se
 torna
 indiscernível
 daquilo
 que
 devém?
 Como
 torná‐la
 diferente
 sem
 correr
 o
 risco
 de
 a
 anular
 completamente
ou
de
a
fusionar
com
um
outro?
O
que
é
que
leva
Caeiro
a
sonhar,
a
 brincar
 a
 ser
 outro
 e
 a
 criar
à
 sua
 volta
 
 múltiplos
 personagens
 como
 quando
 era
 criança?
 Será
 que
 se
 trata
 de
 uma
 imitação
 ou
 de
 uma
 recordação
 de
 quando
 era
 criança?
Segundo
a
análise
de
José
Gil,
está
em
jogo
um
devir‐criança.



(13)

13 recordação
 de
 quando
 era
 criança.
 Em
 consequência,
 seremos
 conduzidos
 a
 distinguir
 criança
 de
 infância.
 O
 devir‐criança
 do
 poeta
 funda
 todos
 os
 seus
 outros
 devires.
Nele
subjaz
uma
ideia
de
infância
desconectada
do
tempo
cronológico.
Num
 primeiro
 momento,
 seremos
 conduzidos
 a
 pensar
 na
 operação
 segundo
 a
 qual
 o
 tempo
 se
 abre
 a
 uma
 nova
 dimensão
 na
 qual
 o
 poeta
 pode
 sonhar
 e
 sentir
 tudo
 de
 todas
as
maneiras.
Num
segundo
momento,
partindo
dessa
diferença
entre
criança
e
 Infância
seremos
encaminhados
a
considerar
as
condições
que
possibilitam
à
criança
 entrar
num
devir‐criança.



No
último capítulo, pretende-se abordar as perguntas das crianças segundo os resultados que foram obtidos anteriormente. De acordo com Deleuze, as perguntas das crianças não serão bem compreendidas enquanto não forem consideradas como perguntas-máquina. Segundo o filósofo, estas últimas remetem para a um agenciamento que obedece, por sua vez, a um devir. Ora, para que as perguntas das crianças possam remeter para um devir, é necessário que as palavras empregues nessas questões possam situar-se para lá do plano da representação e da significação. Como continuar a usar a linguagem se, o significado que é dado pelos nomes, por exemplo, deixa de importar? Não seria melhor encontrar uma outra forma de expressão que não usasse a linguagem para comunicar como, por exemplo, a expressão artística? Como continuar a fazer perguntas sem correr o risco de entrar numa espécie de caos de sentido? Em último reduto, que perguntas colocar, se já nem sequer se referem a um eu?

(14)

14 palavras3”) realizam-se a partir do corpo. Porém, como podemos definir um tal corpo? Se for um corpo físico situado num plano empírico, um corpo tomado na oposição entre corpo e alma ou, ainda, um corpo pensado segundo a dicotomia sensação-pensamento, então como podemos justificar o facto de Caeiro conseguir comunicar sem precisar de um corredor do pensamento para usar as palavras? Deste modo, serão deduzidas as condições de possibilidade do corpo apresentar propriedades que permitem não só ao poeta, como à criança, entrarem em devir. Por último, será considerado como charneira um texto da autoria de Mariana, uma criança de oito anos, para se tentar conduzir à prática os conceitos que permitiram delinear um acesso à singularidade da criança e, deste modo, definir uma ideia da Infância enquanto diferente. Com este empreendimento, quer-se experimentar realmente entrar num devir-criança para poder aceder à compreensão do que está em jogo nas interrogações colocadas pela Mariana. O que pode uma pergunta de uma criança? Como é que nós, adultos, podemos captar as forças e as potências que percorrem as suas interrogações deixando, assim, de as interpretar para passarmos a deixar-nos surpreender e afectar por elas?

Em jeito de síntese, aquilo que esta produção pretende não é tanto confirmar aquilo que já se sabe acerca da infância, mas abrir o nosso pensamento para o que a infância pode trazer de novo, de imprevisível e de surpreendente que nos faça pensar diferentemente. De alguma forma, a presente investigação pretende, ainda, contribuir para que a partir das perguntas das crianças novos encontros entre os adultos e as crianças possam surgir.

Se bem que recorrendo amiúde a exemplos e teorias psicológicas, a nossa análise não se situa nesse plano. A ideia de infância que procuramos esboçar resulta de uma reflexão filosófica (recorrendo a autores-filósofos) sobre material científico relativo à infância. É, no fundo, de um certo estatuto ontológico da criança que esta análise trata.

(15)

15 1º CAPÍTULO: O DEVIR

O objectivo deste capítulo consiste na análise de novos conceitos que nos permitam, por um lado, apreender a Infância na sua diferença, e, por outro, ultrapassar o problema delineado na introdução, a saber, o do acesso à experiência das crianças segundo as nossas categorias de adulto. Iniciaremos essa busca considerando o conceito de devir segundo Deleuze. Partindo da leitura do décimo capítulo do livro Mille Plateaux, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, nomeadamente da descrição que o filósofo faz acerca do devir-animal, tentaremos perceber não apenas em que consiste esse devir em particular, como as condições de todo e qualquer devir. Em primeiro lugar, tendo em conta o devir– cavalo do pequeno Hans, referido no mesmo capítulo, tentaremos perceber o que está em causa quando uma criança se relaciona com um animal ou mesmo com outro ser, como é que ela os pensa e os trata – será somente uma questão de representação ou será que algo de significativamente diferente acontece? Questionemos: “O que pode uma criança?”, para lá da esfera da Imitação.

1.1 O devir-animal

Devir nunca é imitar, nem fazer como, nem uma sujeição a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de que se parte, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deverá chegar. Também não há dois termos que se trocam. (...) Os devires não são fenómenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois reinos1.”

Começamos com a citação de Deleuze que distingue o devir da imitação – justamente o domínio do qual nos quereremos distanciar. Segundo Deleuze, os devires são entendidos como fenómenos de dupla captura; mas, o que é que significa capturar? E, por que razão o filósofo se refere à captura como sendo dupla? Antes de tentar responder a estas perguntas, consideremos um instante o seguinte: quando nos deparamos com a possibilidade de sair da esfera da Imitação, surge um novo problema. Se o devir nada imita, se não existe um modelo a partir do qual se copia, se tenta assemelhar ou fazer

(16)

16 corresponder, então deixa-se de poder pensar em termos de uma Unidade ou de uma Identidade, segundo a qual essa imitação seria possível. Pensando na criança como o foco deste trabalho, como podemos apreendê-la sem partir de um Sujeito Uno? E, mesmo que considerássemos o Múltiplo, ele próprio não se refere também a uma Unidade? Então, será que o conceito de devir nos leva a pensar na criança como um pré–sujeito, um pré-individuo, alguém que ainda não é? Nesse caso, teríamos de a conceber segundo uma falta, como sendo um ser em evolução, na direcção a um modelo adulto. Neste caso, resultaria o mesmo impasse sobre a impossibilidade de captarmos, enquanto adultos, a experiência da criança na sua diferença, a não ser que fosse possível pensar em algo diferente fora do âmbito da Imitação, situação que implicaria pensar o Diferente em Si. Porém, como pensar na diferença sem a reenviar para a semelhança? Deixamos, por enquanto, este difícil problema ontológico (suscitado pelo nosso primeiro encontro com o conceito de devir) agir a seu tempo sobre o nosso pensamento e, retomemos os textos de Deleuze.

Em Mille Plateaux, no décimo capítulo, Devir-Intenso, Devir- Animal, Devir -, Deleuze refere–se constantemente a devires-animais. Seguindo o raciocínio de Deleuze, tentaremos não só compreender em que consiste o devir–animal, como partir dessa análise para deduzir quais são as condições de todo e qualquer devir, sem descurar a questão de saber o que significa a dupla captura do devir. A propósito dos devires-animais, Deleuze começa por esclarecer a forma como a história natural e o evolucionismo trataram as relações dos animais entre si e, da relação entre os animais e os homens. O que Deleuze quer apreender é o ponto em que o homem lida com o animal. Nessa apreensão, o filósofo encontra o devir-animal do homem em simultâneo com o devir-outra coisa do animal, devires esses que não passam pela semelhança, a identificação ou a parecença. Assim, por exemplo, devir–cão não significaria imitar o cão, fazer de cão ou tornar-se parecido com ele.

(17)

17 superior divino, i. e., um modelo através da semelhança. Os animais, como refere Deleuze, podem ser estudados enquanto objetos científicos, porém, o seu estudo não se esgota neste domínio. Existem outras perspectivas a considerar como, por exemplo, a da arte ou a de Jung na interpretação dos sonhos e, ainda, a de Claude Levis Strauss. Deleuze mostra–nos, assim, que a ciência não é o único domínio que pode apreender os animais, referindo-se a outras possibilidades. O filósofo decreta, inclusive, uma nova possibilidade de apreensão através do conceito de devir–animal, justificando que em todas as outras (nomeadamente a da ciência), estaria ainda subjacente uma representação do animal no domínio da Imitação. Desta forma, este ser seria limitado a uma assunção por relação a um modelo superior, uma instância máxima, ou um termo final, uma perfeição a ser alcançada. Tomemos em consideração seguinte excerto de Deleuze:

“Rien de ce qui précède ne nous satisfait, du point de vue restreint qui nous occupe. Nous croyons à l´existence de devenirs–animaux très spéciaux qui traversent et emportent l´homme, et qui n´affectent pas moins l´animal que l´homme (…) l´homme devient animal en même temps que l´animal devient … (mais devient quoi ? devient homme ou devient autre chose ?)”1

Salientando os verbos utilizados pelo filósofo a propósito dos devires–animais, tais como, atravessam, levam, afectam (o homem), poderíamos pensar no devir como sendo da ordem do afecto. Mas que afecto considerar? O afecto relativo às emoções de um sujeito? Considerando a citação precedente de Deleuze, fica-se apenas a saber que esse afecto é tal que não recai apenas sobre aquele que devém, pois esse afecto não se dá num único sentido – pelo contrário, é recíproco. Assim, no devir-animal do homem, quer o homem como o animal seriam afectados e entrariam em devir. Confirmemos nas palavras de Deleuze:

“Há devires animais do homem que não consistem em fazer de cão ou de gato, uma vez que o animal e o homem só se encontram no percurso de uma desterritorialização comum mas assimétrica. É como os pássaros de Mozart: há um devir–pássaro nessa música, mas apanhado num devir-música do pássaro, dos dois formando um único devir (...)4.”

A música de Mozart devém-pássaro ao mesmo tempo que o pássaro devém outra coisa, sendo neste encontro que se dá o devir. Mas, então, se ambos são afectados, ou seja, se o devir é duplo, se o devir–pássaro da música é apanhado num devir-música do pássaro, se há reciprocidade do devir, é porque algo acontece nos dois sentidos. Assim

1 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1980): p. 290; DELEUZE, G.; GUATTARI, F (1997): p.14. Trad.:“Nada do que precede nos satisfaz, do ponto de vista restrito que nos ocupa aqui. Acreditamos na existência de devires-animais muito especiais que atravessam e arrastam o homem, e que afectam não menos o animal do que o homem.”

(18)

18 sendo, o devir não se pode reduzir à imaginação como se tudo se passasse na cabeça do homem que devém.

Para que o devir se dê nos dois sentidos, ou seja, para que o seu movimento seja recíproco, é necessário admitir que algo acontece realmente. Porém, qual é o estatuto dessa realidade? Será possível considerarmos uma realidade diferente, fora do binómio de oposição entre real e não real? Se os dois movimentos formam um único devir, então estamos diante de uma mistura. Mas, considerando que os pássaros e os homens são de espécies diferentes (i.e., à partida, não se podem misturar, a não ser em sonho ou fantasia), como podemos definir uma mistura entre estes seres? A acrescentar a esta última questão, haveria ainda outra a resolver, pois se o devir não parte de um termo para chegar a outro, tal como vem anunciado na primeira citação, é legítimo perguntar: mas, então, o que é que o devir produz? Um parênteses para descrever aquilo que acontece quando se trata de perceber o devir em Deleuze. À medida que nos vamos debruçando sobre o conceito de devir, vão surgindo várias questões que forçam o nosso pensamento a tentar perceber as coisas de uma nova maneira, tornando-o mais plástico. Por exemplo, poder-se-ia dar o caso de pensarmos na definição dos animais dada pela ciêncpoder-se-ia como sendo a única verdadeira maneira de os apreendermos. É como se este conceito tivesse uma força própria e conseguisse colocar em movimento algumas das nossas ideias, arrancando-as de uma certa estagnação. Deste modo, poderíamos considerar o conceito de devir não tanto como pertencendo à ordem da representação mas, antes, como uma ideia que nos pode remeter imediatamente para um outro domínio, o da ação concreta, dos acontecimentos e da experiência.

“Les devenirs–animaux ne sont pas des rêves ni des fantasmes. Ils sont parfaitement réels. Mais de quelle réalité s´agit-il ? Car si devenir-animal ne consiste pas à faire l´animal ou à l´imiter, il reste évident aussi que l´homme ne devient pas « réellement » autre chose. Le devenir ne produit pas autre chose que lui-même. C´est une fausse alternative qui nous fait dire ou bien l´on imite, ou bien l´ont est. Ce qui est réel, c´est le devenir lui–même, le bloc de devenir, et non pas les termes supposés fixes dans lesquels passerait celui qui devient. Le devenir peut et doit être qualifié comme devenir–animal sans avoir un terme qui serait l´animal devenu5. »

Contrariamente ao que acontece na evolução, o devir não resultaria numa produção

(19)

19 de A a X, pois nada mais produziria senão a si mesmo. Um devir levaria a outro devir, o qual levaria a outro devir e, assim, incessantemente. De acordo com o enunciado, fica claro que o devir–animal do homem não se passa a nível da imaginação porque o que é real é o devir e não os termos entre os quais ele passa. Apesar de ser mais fácil pensarmos na alternativa “ou se é ou se imita” e de julgarmos que apenas é real aquilo que é (verbo ser), afim de apreender o conceito do devir, seria necessário admitir uma realidade para lá das oposições da metafísica tradicional, tais como Ser-Imitação, Real-Imaginação. Mas, como é podemos conceber uma realidade fora desse âmbito? Por fim, tal como é descrito pelo filósofo, não se trata de devir alguma coisa, de alcançar um termo final. Segundo o exemplo do devir-pássaro, Mozart entraria nesse devir sem ter uma finalidade, ao passo que na Imitação, existe sempre uma figura ou uma forma pré–determinada, um modelo que se quer atingir.

Espera–se que as questões que vão sendo levantadas se clarifiquem à medida que a análise prossegue. Por enquanto, podemos enumerar pelo menos duas que ainda ficaram por esclarecer. A primeira diz respeito ao afecto do devir, a saber, em que é que ele consiste; a outra, incide sobre a captura, essencialmente sobre o seu significado. O afecto deveria pressupor um sujeito. Ora no caso do devir-animal do homem, não sendo reais os termos pelos quais passa o devir (homem e animal) e, considerando que o devir produz-se a si próprio não se percebe em que medida pode haver afecto:

“Le devenir–animal de l´homme est réel, sans que soit réel l´animal qu´il devient; et simultanément, le devenir autre de l´animal est réel sans que cet autre soit réel. C´est sur ce point qu´il faudra expliquer: comment un devenir n´a pas de sujet distinct de lui-même6.”

Esta citação permite-nos clarificar o primeiro problema: como entender um afecto do devir sem sujeito? Ainda em referência a uma questão colocada anteriormente, relacionada com o facto do devir ser uma captura, trata–se ainda de perceber o que é que o devir capta e como é que ele opera essa captação. Para tal, prosseguimos com os textos do capítulo décimo de Mille Plateaux.

Para Deleuze, alguns filósofos traçam linhas feiticeiras, encontrando devires onde mais ninguém os vê, nem mesmo Jung ou Lévi-Strauss (apesar de se terem debruçado sobre os animais diferentemente da ciência). Segundo um estudo científico

(20)

20 levado a cabo por David Abram, ecologista e filósofo, intitulado A magia do sensível, aquilo que define um feiticeiro ou, tal como o designa, xamã, é a sua capacidade de sair facilmente das fronteiras perceptuais que demarcam a sua cultura particular (fronteiras essas que são reforçadas pelos costumes sociais, pelos tabus e também pela fala ou pela linguagem) com o objectivo de contactar e aprender com os outros poderes da sua terra:

“O mágico tradicional cultiva uma capacidade de sair do seu estado comum de consciência precisamente com o intuito de tomar contacto com as outras formas orgânicas de sensibilidade e de percepção com que a existência humana está entrelaçada7.”

De acordo com este filósofo, é possível perceber a razão pela qual Deleuze quer aproximar a figura do filósofo à figura do feiticeiro: ambos apresentam a capacidade para percepcionar o que habitualmente é considerado imperceptível. No mesmo estudo, Abram refere que o local onde os feiticeiros podem ser encontrados é um lugar fora da aldeia ou da zona de residência da comunidade a que pertence:

“(...) em vez disso, as suas residências são comummente na periferia espacial da comunidade ou, mais frequentemente, para lá dos limites da aldeia (...). Poderia facilmente atribuir isto à necessidade de privacidade, mas para o mágico numa cultura tradicional, parece servir também para outro fim: fornecer uma expressão espacial da sua posição simbólica em relação à comunidade8.”

Segundo este filósofo, a posição do feiticeiro traduz uma relação simbólica com a comunidade em que se inscreve. Na medida em que o feiticeiro atua como intermediário entre a comunidade humana e um campo não humano, esta localização faz todo o sentido. Como refere o estudo, só assim é que o feiticeiro consegue curar as doenças que ocorrem no interior da comunidade, i. e., estabelecendo uma relação com as forças animadas que habitam do outro lado da comunidade humana.

Na citação que se segue Deleuze refere-se à posição dos feiticeiros como estando localizada entre duas aldeias ou, então, sempre à margem (à beira de), tornando-se mais evidente à nossa compreensão:

“Les sorciers ont toujours eu la position anomale, à la frontière des champs ou des bois. Ils hantent les lisières. Ils sont en bordure du village, ou entre deux villages. L´important, c´est leur affinité avec l´alliance, avec le pacte, qui leur donne un statut opposé à celui de la filiation.9”

A aproximação do filósofo ao feiticeiro pretende justificar a diferença na forma

7

ABRAM, D. (2007): p. 7. 8

ABRAM, D. (2007): p. 4.

(21)

21 como os dois pensam e percepcionam o mundo à sua volta, nomeadamente, os animais. De acordo com o evolucionismo, tal como foi esclarecido anteriormente, as produções entre animais ocorrem por filiação ou descendência. O conceito de devir-animal, pretende, numa linha feiticeira, propor algo distinto dessa acepção. Para Abram, o facto da cultura ocidental ser incapaz de ver claramente seja o que for que esteja fora do reino da tecnologia humana, ou de ouvir como significado de qualquer coisa diferente da fala humana, explica também o facto dela ser incapaz de perceber claramente os animais.

Num parágrafo do mesmo capítulo intitulado Souvenirs d´un Bergsonien, Deleuze retém uma modificação levada a cabo pelo neoevolucionismo quanto à forma de entender os animais. Esta modificação interessa-lhe para continuar a traçar “a sua linha feiticeira”. Segundo esta corrente não são os caracteres, nem as produções por filiação que definem o animal, mas as populações e as comunicações entre populações heterogéneas. Tal como o devir não é imitar, nem identificar–se , ele também não se refere a árvores genealógicas. Nestas está implícito a ideia de imitação. Daí o interesse em destacar as diferenças do evolucionismo para o neoevolucionismo, da passagem da produção de seres que se assemelham para um outro tipo de evolução que se dá entre populações diferentes. Além disso, a classificação dos animais segundo caracteres, géneros, espécies, formas e funções relativa à primeira acepção é, segundo o filósofo, uma necessidade da História da natureza e da ciência, em classificar não só os animais como os próprios homens. Pensando com Deleuze, a definição dos animais através de classificações, remete-nos igualmente para uma determinada ideia do ser humano. A definição recorda–nos a máxima de Aristóteles, segundo a qual, o Homem é uma Animal Racional. Essa herança cultural que faz do animal um ser inferior ao Homem, parte justamente de uma classificação do homem como o termo final, o lógos supremo – único animal racional. Seguindo a mesma linha feiticeira traçada pelo o conceito de Devir, percebemos como a classificação dos seres se reporta ao domínio da Imitação: há sempre um modelo que se copia, um termo final que se pretende alcançar, ou a partir do qual se estabelece uma ordem segundo comparações, relações de correspondência e de analogia, enfim, tudo isso que o devir consegue esquivar.

Em Souvenirs d´un Sorcier, compreendemos a importância atribuída por Deleuze ao neoevolucionismo (uma evolução que se dá entre populações distintas) para poder definir o devir-animal.

(22)

22 nous nous intéressons aux modes d´expansion, de propagation, d´occupation, de contagion, de peuplement.10

Através de um extraordinário movimento de rutura e de diferenciação levado a cabo pelo filósofo, encontra-se algo comum entre os animais e os homens: a multiplicidade. O animal é, em primeiro lugar, um bando, uma multiplicidade e é nesse aspecto que o homem lida com o animal.. Deleuze dá o exemplo do lobo, designando–o por lupulamento - e não a partir de um conjunto de caracteres. O que seria um grito de lobo independentemente da matilha, da população que chama? A esta pergunta Deleuze responde que o fascínio do homem diante de vários lobos, o fascínio pela multiplicidade, encontra–se, à partida, relacionado com uma multiplicidade que nos habita.

Da definição do animal enquanto população, deriva uma acepção do animal diferente. Os devires–animais operam por contágio, desenvolvem–se contagiando–se. Os animais são bandos, multiplicidade, a sua transformação dá–se por contágio. Mas, como conceber um devir? Como operar essa transformação, sem ter em conta um antepassado comum, um referente último ou unidade primeira? Esta outra questão levantada pelo filósofo remete-nos para a mesma pergunta ontológica considerada num parágrafo mais acima: a questão da diferença em si mesmo. Pode a diferença ser primeira? Em que sentido a multiplicidade não seria referente a uma unidade?

“La propagation par épidémie, par contagion, n´a rien à voir avec la filiation par hérédité, même si les deux thèmes se mélangent et ont besoin l´un de l´autre. (…) La différence est que la contagion, l´épidémie met en jeu des termes tout à fait hétérogènes: par exemple, un homme, un animal, et une bactérie, un virus, une molécule, un micro-organisme. (...) L´univers ne fonctionne pas par filiation. (…) Ces multiplicités à termes hétérogènes, et à co-fonctionnement de contagion, entrent dans certains agencements, et c´est là que l´homme opère ses devenirs– animaux.11”.

O contágio, contrariamente à filiação, sugere termos heterogéneos que se misturam como, por exemplo, a vespa e a orquídea, o homem e o lobo, uma criança e um insecto, um escritor e um rato, etc. Extrai–se do animal a sua multiplicidade, animal como

10 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1980): p. 292. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1997): p. 16. Trad.: “Num devir-animal, estamos sempre a lidar com uma matilha, um bando, uma população, um povoamento, em suma, com uma multiplicidade. (…)Mas não nos interessamos pelas características; interessamo-nos pelos modos de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento.”

(23)

23 população, devém-se animal por contágio. O devir acontece na passagem entre dois seres totalmente distintos, sem nenhuma relação de filiação. Multiplicidade, contágio, devir reenviariam para a diferença e não para a semelhança, no sentido em que o contágio opera entre seres diferentes que não se assemelham, nem se imitam, pois o devir implicaria a diferença.

Por diversas vezes, Deleuze faz alusão ao sujeito do homem que devém, como um eu transtornado, que vacila. Numa dessas descrições, é referido o termo afecto, não como sendo relativo a um sujeito, mas enquanto potência:

“Car l´affect n´est pas un sentiment personnel, ce n´est pas non plus un caractère, c´est l´effectuation d´une puissance de meute, qui soulève et fait vaciller le moi12”.

Relembremos também o que vem referido numa citação já assinalada, segundo a qual, o devir não tem sujeito distinto de si próprio, produz-se a si mesmo. Ao encontrar–se com o animal, o homem seria contaminado por algo da ordem da multiplicidade, ao entrar em devir, nessa passagem entre dois heterogéneos, no meio, dar-se-ia uma mistura, criar-se-ia uma zona de indiscernibilidade, na qual já não se saberia quem é quem, qual é qual. Misturando–se o devir-animal do homem com o próprio devir–outra coisa do animal, o eu dissolver-se-ia. Começamos a perceber melhor como é que o devir não reenvia para a mesmidade, mas sim, para a diferença, uma diferença irredutível.

“L´homme de guerre a tout un devenir qui implique multiplicité, célérité, ubiquité, métamorphose et trahison, puissance d´affect.13

Através desta citação, percebemos como o afecto é relativo ao devir e não ao sujeito que entra em devir. Devir é potência de afecto, é ser contaminado, é criar agenciamentos.

Por outro lado, Deleuze refere que os devires-animais não envolvem sentimentos ou histórias pessoais de um sujeito. Para exemplificar, o filósofo cita o romance da Moby-Dick no qual um capitão vive fascinado por uma baleia e devém baleia. Segundo Deleuze, esse fascínio não resulta de nenhuma história pessoal com a baleia, nem de um sentimento do capitão pela baleia. Remeter os animais para um eu, dizendo “o meu

12 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1980): p. 294. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1997): p. 17. Trad.: “Pois o afecto não é um sentimento pessoal, tampouco uma característica, ele é a efetuação de uma potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu.”

(24)

24 cão, o meu gato”, é reduzi-los a uma subjetividade. Para Deleuze, isso é ocupação da psicanálise. O devir–animal não remete para nenhuma conceção edipiana, pelo contrário, é condição do devir e do afecto, o desaparecimento do eu e o surgimento da zona de indiscernibilidade.

Permanece, ainda, por clarificar em que sentido se pode dizer que o devir é um fenómeno de “dupla captura”. A este propósito, foram já analisados dois aspectos. O primeiro é que o devir é um processo que implica um duplo movimento, reciprocidade. Por outro, esse movimento, nos devires-animais, propaga–se e expande–se por contaminação. Porém, falta-nos ainda perceber melhor no concreto o que é que se captura. Para tentar entender o fenómeno da dupla captura, consideremos uma outra passagem de Deleuze que parece referir–se a um outro devir, o devir–mulher. De facto, o capítulo de Mille Plateaux, a partir do qual temos vindo a analisar o conceito de devir, não se cinge aos devires-animais, existem outros como o devir-mulher e o devir-criança que nos interessam particularmente:

“Nous savons qu´entre un homme et une femme beaucoup d´êtres passent, qui viennent d´autres mondes, apportés par le vent, qui font rhizome autour des racines, et ne se laissent pas comprendre en termes de production, mais seulement de devenir.14

Esta nova citação, leva-nos a colocar como hipótese a possibilidade de existirem seres que não se podem compreender em termos de produção, mas somente de devir. No entanto, se tomarmos as seguintes palavras do filosofo, seres trazidos pelo vento vindos de outros mundos e tentarmos atribuir-lhes um sentido, será um pouco como tentar decifrar um enigma misterioso.

Por essa razão, vamos tomar antes uma outra direcção para verificar no encontro entre uma mulher e um homem, em que consiste o duplo movimento do devir–mulher. Esse devir implica não apenas o devir-mulher do homem como também o devir-mulher da própria mulher. Se a própria mulher entra em devir-mulher, é porque ela se transforma noutra coisa diferente dela própria. De acordo com Deleuze, todo o devir é menor:

“C´est d´abord parce que l´homme est majoritaire par excellence, tandis que les devenirs sont minoritaires, tout devenir est un devenir minoritaire. (…) Même les Noirs, disaient les Black

(25)

25 Panthers, ont à devenir-noirs. Même les femmes, à devenir femme. Même les juifs à devenir–juifs (...) Le devenir-femme affecte nécessairement les hommes autant que les femmes (...)15

Assim, se a mulher devém–mulher, temos de admitir um devir minoritário que se extrai de uma maioridade. Seria necessário arrancar a mulher à mulher-standard, a mulher concebida a partir de uma escala molar, enquanto maioridade, por exemplo, a mulher segundo os ideais de uma determinada sociedade, cultura e moral para entrar em devir. Retomando as palavras enigmáticas citadas anteriormente, podemos agora tentar entender o que são esses seres vindos de outro mundo, à luz dessa outra escala menor, na qual se daria a tal captação.

“Nous voulons seulement dire que ces aspects inséparables du devenir–femme doivent d´abord se comprendre en fonction d´autre chose: ni imiter, ni prendre forme, mais émettre des particules qui entrent dans le rapport de mouvement et de repos, ou dans la zone de voisinage d´une micro féminité, c´est à dire produire en nous mêmes une femme moléculaire, créer la femme moléculaire16”.

Segundo esta citação, o devir–mulher produz uma mulher molecular através da emissão de partículas. Fica claro, desde já, como é que o devir–mulher difere da produção segundo a filiação e, a razão pela qual não se trata, de facto, de uma imitação. Haveria antes emissão e recepção de partículas moleculares. A mulher tem que devir-mulher para o homem devir-mulher. Nessa troca, ele aproximar-se-ia das partículas do devir-mulher da mulher e, a mulher, das partículas do devir-mulher do homem misturadas com as suas. A partir do devir-mulher, teríamos então encontrado os elementos necessários para começar a compreender o devir enquanto dupla captura, i. e., emissão e recepção de partículas numa escala macroscópica.

Tendo em conta o que foi dito sobre o devir-animal e o devir-mulher, podemos para já deduzir, por um lado, que o movimento do devir é recíproco e assimétrico. Além disso, o devir é que é real e não os termos envolvidos: no devir–lobo do homem, por exemplo, o homem não devém realmente lobo. No movimento do devir, também não se trata de chegar a um termo final, é o próprio devir que devém, sem haver um sujeito

15 DELEUZE, G. GUATTARI, F. (1980):p. 356-7. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1997): p. 77. Trad.: "É primeiro porque o homem é maioritário por excelência, enquanto que os devires são minoritários, todo devir é um devir-minoritário. (…)Até os negros, diziam os Black Panthers, terão que devir-negro. Até as mulheres terão que devir-mulher. Mesmo os judeus terão que devir-judeu (não basta certamente um estado). (…) O devir-mulher afecta necessariamente os homens tanto quanto as mulheres.”

(26)

26 distinto de si. O devir opera por contaminação, reenvia para a multiplicidade, criando uma zona de indiscernibilidade, na qual já não se sabe quem é quem, pura osmose entre termos distintos. Nesse sentido, a perca da Identidade ou do eu, também é condição do devir. O devir é captação, emissão e recepção de partículas, mistura de seres moleculares. Ele dá– se numa escala molecular e, por isso, todo o devir é menor. É segundo todas estas particularidades que podemos afirmar que o devir difere da Imitação e reenvia para a Diferença. No entanto, para perceber como é que todo e qualquer devir é um fenómeno de captura, i. e., emissão e recepção de partículas imperceptíveis, fica por explicar como é que os devires-animais também participam dessa escala molecular. Até agora, a ideia de que o devir se dá através de uma emissão de seres moleculares apenas foi demonstrada para o devir mulher em particular.

1.2 O devir-molecular e o devir-mulher

“Les meutes, les multiplicités ne cessent donc de se transformer les unes dans les autres, de passer les unes dans les autres. (...) Ce n´est pas étonnant, tant le devenir et la multiplicité sont une seule et même chose. (…) il revient au même de dire que chaque multiplicité est déjà composée de termes hétérogènes en symbiose, ou qu´elle ne cesse de se transformer en d´autres multiplicités en enfilade, suivant ses seuils et ses portes. (…) Une fibre va d´un homme à un animal, d´un homme ou d´un animal à des molécules, de molécules à des particules, jusqu´à l´imperceptible 17.”

Estes excertos retirados de Mille Plateaux, remetem-nos para uma ideia que foi apresentada anteriormente e, segundo a qual, nos devires-animais, o animal deve ser apreendido enquanto multiplicidade. Portanto, o devir é-o sempre de uma multiplicidade ou, dito de outra forma, é a multiplicidade que devém. Trata–se de uma multiplicidade diferencial que não reenvia para uma identidade primeira. Estes textos sugerem-nos ainda uma outra ideia, a da transformação dessas multiplicidades em outras multiplicidades, ou seja, a passagem de um devir para um outro devir e assim, incessantemente. Apesar de já termos referido que não é um sujeito que devém, trata–se agora de esclarecer em que consiste o processo incessante do devir. A ocorrência de uma passagem entre um homem e um animal, um homem e uma molécula, uma molécula e uma partícula, até ao

(27)

27 imperceptível, como se todos estes devires pudessem encadear–se uns aos outros, leva-nos a aproximar a ideia do devir-animal, da de um devir-molecular.

Retomando o exemplo do devir-pássaro da música de Mozart, Deleuze especifica como esse devir tende a ser cada vez mais molecular: “(...) non plus l´oiseau chanteur, mais la molécule sonore.18 » Além disso, nessa transformação de um devir-animal para algo imperceptível, o que não se podia ouvir passa a ser audível. A molécula sonora em vez do pássaro cantor. Trata-se de entrar, como diz o filósofo, num universo de micro-perceções no qual os devires-moleculares vêm tomar o lugar dos devires-animais. Parece-nos que esta nova apreensão do devir enquanto passagem de moléculas, de partículas e de elementos imperceptíveis, vem afectar uma outra questão, a saber, a da forma. Ao referir que os devires-animais se transformam em devires-moleculares, tendendo para algo imperceptível, levanta–se esse problema. Assim, o devir-cão não seria dado nem pela forma, nem pela figura do cão. Então, quando Deleuze explica que “não se trata de imitar o cão”, isso significaria que não se trata de o imitar segundo a forma do seu corpo, como se bastasse colocar-nos de gatas para devir-cão. O movimento do devir não se refere, portanto, a um sujeito ou a uma forma. Nesse sentido, podemos acrescentar que o devir se diz de uma multiplicidade diferencial e não de uma forma ou de uma unidade no sentido em que, estas últimas, dizem respeito à esfera da Representação. Se ele acontece numa escala molecular, tem de se dar num novo domínio, do que não se vê, do imperceptível, do que não tem forma e também do que é abstrato.

No movimento do devir ocorrem transformações, de uma fibra ao homem, do homem ao animal, do animal às moléculas, das moléculas ao imperceptível. Eis porque o devir tem de ser molecular. Não se trata de atingir um estado fixo ou pré-determinado, o qual implica uma escola molar, entidades maiores. Além disso, relativamente à emissão e à recepção de partículas moleculares que acontecem, por ex., num devir–mulher, parece-nos importante salientar uma outra questão apresentada por Deleuze sobre o Corpo:

“C´est que la question n´est pas, ou n´est pas seulement celle de l´organisme, de l´histoire et du sujet d´énonciation qui opposent le masculin et le féminin dans les grandes machines duelles. La question est d´abord celle du corps – le corps qu´on nous vole pour fabriquer des organismes

(28)

28 opposables. Or, c´est à la fille qu´on vole d´abord ce corps: cesse de te tenir comme ça, tu n´es pas un garçon manqué, etc. (...)19.”

De acordo com o filósofo, é à rapariga que se rouba o corpo em primeiro lugar para, em seguida, poder–se fabricar um organismo ou, ainda, para o fazer corresponder a um conjunto de órgãos. Isso aconteceria na infância sempre que um adulto impõe uma maneira de estar, de se comportar, de se vestir, de falar, etc. Estabelece-se, assim, uma distinção entre géneros (masculino e feminino) como dois grandes opostos e o estatuto de um sujeito com uma história. Tal como já analisámos, considerar um ser segundo o seu género ou caracteres remete-nos para a ideia de uma classificação e, em consequência, para a da evolução segundo a filiação, deixando-se de parte a possibilidade da ocorrência de qualquer devir. A citação apresentada conduz-nos, deste modo, à necessidade de admitir um corpo para o movimento do devir. É como se o movimento do devir, a circulação de partículas moleculares, só pudesse ocorrer a partir de um determinado corpo. Mesmo na ausência de uma classificação segundo o género e espécies e, sem o estabelecimento de órgãos e formas, existiria um corpo. Mas, de que forma? Como definir um corpo sem ter em consideração o seu género, a espécie a que pertence, os seus órgãos e as suas funções? A que corpo de rapariga se reporta o devir–mulher? Que corpo se diz de todo e qualquer devir?

“C´est pourquoi inversement, la reconstruction du corps comme Corps sans Organes, l´anorganisme du corps, est inséparable d´un devenir-femme ou de la production de la femme moléculaire20

Tal como descreve o filósofo, nem o devir–mulher, nem a produção da mulher molecular se podem distinguir da reconstrução de um corpo que antes fora roubado. O devir-mulher implicaria, assim, a reconstrução de um corpo, o corpo da rapariga, um corpo que estaria lá antes do estabelecimento de normas morais de como uma menina se deve comportar. Isto significa que no devir-mulher não se trata da rapariga se tornar uma mulher, pois isso seria, por um lado, conceber o devir segundo uma evolução em direcção a um termo fixo e, por outro, apreender a rapariga a partir de um tempo cronológico que

19

DELEUZE, G. GUATTARI, F. (1980): p. 339. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1997): p. 60. Trad.: “É que a questão não é, ou não é apenas, a do organismo, da história e do sujeito de enunciação que opõem o masculino e o feminino nas grandes máquinas duais. A questão é primeiro a do corpo — o corpo que nos roubam para fabricar organismos oponíveis. Ora, é à menina, primeiro, que se rouba esse corpo: páre de se comportar assim, você não é mais uma menininha, você não é um miúdo, etc.”

(29)

29 nos levaria a determiná-la segundo a sua idade. Em oposição, Deleuze define a rapariga como estando para lá da idade, do género. Qualquer uma destas determinações levariam a apreender a rapariga enquanto uma entidade molar e, por consequência, a opor a mulher ao homem e a criança ao adulto, e a designá-la segundo um sujeito e uma forma. O devir-mulher só se daria em função daquilo que o filósofo designa por rapariga universal:

“Aussi les jeunes filles n´appartiennent pas à un âge, à un sexe, à un ordre ou à un règne: elles se glissent plutôt, entre les ordres, les actes, les âges et le sexes; (...) La jeune fille est comme le bloc de devenir qui reste contemporain de chaque terme opposable, homme, femme, enfant, adulte. Ce n´est pas la jeune fille qui devient femme, c´est le devenir –femme qui fait la jeune fille universelle.21”

Desta forma, podemos definir a rapariga enquanto emissão de partículas moleculares e não como uma entidade molar. Como tal, ela seria condição de todo o devir-mulher. Mas, tal como se verificou, se todo o devir-mulher é molecular, não será então que todo o devir implica um devir-rapariga, uma emissão e recepção de partículas e, portanto, uma dupla captura? Como se pode verificar na seguinte passagem, esse parece ser o pensamento de Deleuze:

“Or, si tous les devenirs sont déjà moléculaires, y compris le devenir-femme, il faut dire aussi que tous les devenirs commencent et passent par le devenir-femme. C´est la clef des autres devenirs22.”

Segundo o filósofo, há um devir-mulher que atravessa todos os outros devires. “Mais il est sur aussi que les jeunes filles et les enfants ne tirent pas leur forces du statut molaire qui les dompte, ni de l´organisme et de la subjectivité qu´ils reçoivent; ils tirent toutes leurs forces du devenir moléculaire qu´ils font passer entre les sexes et les âges, devenir-enfant de l´adulte comme de l´enfant, devenir- femme de l´homme comme de la femme. La jeune fille et l´enfant ne deviennent pas, c´est le devenir lui même qui est enfant ou jeune fille23”.

Partindo desta citação, interessa-nos sublinhar o termo “força” empregue por Deleuze para designar as partículas moleculares que entram em jogo, em qualquer devir. A captação das forças num devir molecular é, segundo o Deleuze, aquilo que tornaria

21

DELEUZE, G. GUATTARI, F. (1980): p. 339. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1997): p. 60. Trad.: Por isso as moças não pertencem a uma idade, a um sexo, a uma ordem ou a um reino: elas antes deslizam entre as ordens, entre os actos, as idades, os sexos (…) A moça é como o bloco de devir que permanece contemporâneo de cada termo oponível, homem, mulher, criança, adulto. Não é a moça que se torna mulher, é o devir-mulher que faz a moça universal.”

22 DELEUZE, G. GUATTARI, F. (1980): p. 340. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1997): p. 61. Trad.: “Ora, se todos os devires já são moleculares, inclusive o devir-mulher, é preciso dizer também que todos os devires começam e passam pelo devir-mulher. É a chave dos outros devires.”

23

(30)

30 possível à criança e ao adulto entrarem num devir–criança, assim como à mulher e ao homem de entrarem num devir-mulher. Essas forças só seriam possíveis de ser extraídas sob uma condição: a rapariga e a criança têm de estar fora de qualquer determinação ou classificação segundo um órgão, caracteres, géneros, idade, etc. A força que advém de um corpo sem órgãos, sem formas nem funções, sem sujeito percebido à escala molecular é que permitiria o movimento do Devir.

Tendo em conta tudo o que foi esclarecido, incluindo a última análise que se reporta ao devir–mulher, é possível compreender melhor a ideia segundo a qual todo o devir é um devir–mulher, i. e., todo o devir é rapariga. Torna-se igualmente claro que todo o devir é molecular e não molar. Os devires-animais transformam–se noutros devires, devindo molécula, até ao imperceptível, sem atingir nenhum estado final. O devir–mulher é produção de seres moleculares. Não se trata de um sujeito que devem, mas sim de linhas de partículas imperceptíveis, microscópicas que se enrolam umas nas outras e se misturam. Essas partículas ou forças devem ser entendidas num outro domínio diferente do da forma ou do sujeito. Tratam-se de perceções ínfimas, cuja duração é demasiado curta para que qualquer forma de consciência as possa captar. Tratam-se de forças e partículas que circulam sob um regime de inconsciente. Haveria, portanto, necessidade em admitir um inconsciente do corpo.

No devir, não há apenas emissão de partículas. O outro não é um mero receptor, ele também reenvia partículas misturas. É nesse sentido que podemos dizer que o devir é um fenómeno de dupla captura, pois o movimento dá-se nos dois sentidos. Mais uma vez, não se trata do domínio da forma, nem da imitação, nem da representação, mas da força, do inconsciente e do corpo. Um corpo que, tal como vimos, não pode ser definido segundo um conjunto de órgãos, caracteres ou funções, mas despojado dessas determinações. Como Deleuze escreve, trata-se de um corpo sem órgãos.

(31)

31 1.3 O devir-cavalo do pequeno Hans

Deleuze intitulou “Souvenirs à un spinoziste, I”, o parágrafo em que é esclarecida uma definição relativa ao corpo muito diferente de todas as conceções tradicionais da filosofia. Partindo da forma extraordinária como Espinosa apreendeu o corpo, Deleuze extrai algumas noções para conceptualizar um corpo do devir. Nesse mesmo parágrafo estabelece-se um outro devir, o devir-cavalo do pequeno Hans, referindo–se a um caso bem conhecido da psicanálise segundo Freud. Assim, a partir de uma leitura deste parágrafo, iremos tentar não apenas responder às questões que foram levantadas acerca da condição de possibilidade de se definir um corpo sem sujeito, sem forma, sem órgãos e sem caracteres e de como nos podemos aproximar da noção de devir– criança.

Segundo Espinosa, importa considerar duas dimensões do corpo, por um lado, a sua longitude e a sua latitude, i. e., as relações de movimento e repouso, velocidade e lentidão entre elementos sem forma, moléculas e partículas e, por outro lado, os afectos ou o grau de potência. Vejamos melhor em que é que consiste cada uma destas dimensões e como se define um corpo que vai implicar a dissolução do sujeito e da forma.

“Mais Spinoza procède radicalement: arriver à des éléments qui n´ont plus de forme ni de fonction, qui sont parfaitement abstraits en ce sens, bien qu´ils soient parfaitement réels. Ils se distinguent seulement par le mouvement et le repos, la lenteur et la vitesse24. »

Nesta citação, Deleuze refere–se à apreensão levada a cabo por Espinosa, segundo a qual, os elementos só se distinguem pelo movimento e pela velocidade da qual decorre uma ideia do corpo que é diferente daquela que é dada pela determinação das suas funções e dos seus órgãos. Com efeito, a questão passa a ser a da velocidade, ou seja, a rapidez das partículas. Segundo o livro Ética, de Espinosa, não se trata de átomos nem de elementos finitos dotados de uma qualquer forma, mas de elementos procedendo sempre por infinidades, irredutíveis, situados num plano de composição ou plano de Imanência.

“Plan fixe, où les choses ne se distinguent que par la vitesse et la lenteur. Plan d´immanence ou d´univocité, qui s´oppose à l´analogie. L´Un se dit en un Seul et même sens, de tout le multiple, l´Être se dit en un Seul et même sens de tout ce qui diffère25.”

(32)

32 Nesse plano definido por Espinosa, o uno diz-se da multiplicidade e o ser diz–se da diferença. É o plano da diferença e do diferente em si no qual se vão operar individuações, tais como acontece no devir-mulher ou no devir-animal. A análise realizada anteriormente sobre o conceito de devir-animal em Deleuze, só faz sentido se for entendida nesse plano: o animal diz–se de uma multiplicidade, o homem devém-animal e não o imita. Eis que uma nova condição do devir se define mediante uma captação dos elementos segundo o movimento – movimentam-se com suficiente rapidez para operar um devir. Esta situação, abre-nos para uma nova definição do corpo.

Embora Espinosa não se refira ao conceito de devir, mas sim à latitude e à longitude de um corpo, podemos pensar que Deleuze encontra-se com Espinosa no ponto em que um corpo devém: é necessário anular os órgãos para libertar novos elementos que ao conectar–se suficientemente rápido com elementos vizinhos, operam um devir:

“La question est celle, des éléments et particules, qui arriveront assez vite pour opérer un passage, un devenir ou un saut sur un même plan d´immanence pure26”.

Assim sendo, podemos afirmar que o devir implica velocidade de passagem entre os extratos, maior e menor, homem e mulher, homem e animal, criança e animal, i. e., velocidade de passagem pelo meio. Simultaneamente, dizemos que o corpo do devir, ao contrário do corpo segundo um conjunto de órgãos e funções, reenvia para a diferença. Essa diferença é dada por uma variação constante, uma transformação constante dos órgãos.

“Les enfants sont spinozistes. Lorsque Hans parle d´un « fait–pipi », ce n´est pas un organe ni une fonction organique, c´est d´abord un matériau, c´est-à-dire un ensemble d´éléments qui varie d´après ses connexions, ses rapports de mouvement et de repos, les divers agencements individués où il entre27."

A variação dada pela relação do movimento dos elementos define, assim, uma certa plasticidade do corpo, i. e. a propriedade de se tornar incessantemente outro. Deste modo, deixa-se de percepcionar o corpo como um conjunto de órgãos com uma

25 DELEUZE, G. GUATTARI, F. (1980): p. 311. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1997): p. 33.

Trad.: “Plano fixo, onde as coisas não se distinguem senão pela velocidade e a lentidão. Plano de imanência ou de univocidade, que se impõe à analogia. O Uno se diz num só e mesmo sentido de todo o múltiplo, o Ser se diz num só e mesmo sentido de tudo o que difere.”

26 DELEUZE, G. GUATTARI, F. (1980): p. 312. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1997): p. 33. Trad.: “A questão é a dos elementos e partículas, que chegarão ou não rápido o bastante para operar uma passagem, um devir ou um salto sobre um mesmo plano de imanência pura.”

(33)

33 localização e uma identidade fixa, estanque, imutável. Para Deleuze, quando uma criança fala de um órgão, esta não se refere a uma função orgânica, mas a um devir, emissão e recepção de partículas moleculares – velocidade entre o meio.

“On a pu remarquer qu´un organe, pour les enfants, subissait milles vicissitudes, était mal localisable, mal identifiable, tantôt un os, un engin, un excrément, le bébé, une main, le cœur de papa..28.”

As crianças devêm constantemente outro: inseto, gafanhoto, pirata, baleia, gato, nuvem, árvore, etc. Nesses devires, extraem–se do seu corpo elementos que entram em conexão com partículas vizinhas do outro, num plano de composição, segundo diferentes relações de movimento. Deste modo, os órgãos sofrem uma transformação segundo cada um desses devires, tornando–se sempre diferentes até se apagarem.

Importa, assim, descrever resumidamente a acepção do corpo segundo Espinosa para compreender a descrição que Deleuze faz acerca do que acontece ao pequeno Hans, quando este sai da sua casa, atravessa a rua e se encontra com um cavalo. Que espetáculo poderá ser para uma criança “um cavalo orgulhoso, um cavalo de olhos tapados, um cavalo puxa uma carroçaria, um cavalo cai, um cavalo é espancado?” Ao contrário da interpretação psicanalítica, a relação da criança com o cavalo não derivaria de uma representação, nem da analogia com a imagem paterna, como Freud o pensou. As olheiras do cavalo não são os óculos do pai, o escuro em torno da sua boca não corresponde ao seus bigode, etc. A questão não é a dos órgãos, mas a da velocidade. Neste caso, a velocidade de passagem pelo meio, entre os dois extratos. Por outro lado, essa relação seria de tal ordem que não conceberia o cavalo como membro de uma espécie ou segundo o seu género – como é usual os animais serem classificados nos manuais escolares. A relação não seria mediada pela imagem de uma forma, identificável consoante a classificação do animal a partir dos seus caracteres. Em consequência, não estaria em causa uma imitação do cavalo, nem uma identificação da criança com o animal, algo aconteceria directamente, sem mediação entre a criança e o cavalo, no concreto, i. e., ao nível do campo da experiência sensível. Dar–se–ia uma mistura de partículas comuns à da criança e às do cavalo, a um nível molecular, em que estas se reenviariam umas às outras, fazendo a criança devir–cavalo ao mesmo tempo que o cavalo devém-outra coisa.

Referências

Documentos relacionados

Este estudo apresenta como tema central a análise sobre os processos de inclusão social de jovens e adultos com deficiência, alunos da APAE , assim, percorrendo

O objetivo do curso foi oportunizar aos participantes, um contato direto com as plantas nativas do Cerrado para identificação de espécies com potencial

Esse procedimento pode ser considerado válido, pois a perda de transmissão é um parâmetro que não deve variar para diferentes sinais de excitação, visto que

Ao fazer pesquisas referentes a história da Química, é comum encontrar como nomes de destaque quase exclusivamente nomes masculinos, ou de casais neste caso o nome de destaque

EXPERIMENTANDO E DESCOBRINDO: A CONTRIBUIÇÃO DE UMA OFICINA PARA DESPERTAR ALUNOS DE NÍVEL MÉDIO PARA AS DIMENSÕES DA ÓPTICA COMO DISCIPLINA E CAMPO DE PESQUISA..

Para entender o supermercado como possível espaço de exercício cidadão, ainda, é importante retomar alguns pontos tratados anteriormente: (a) as compras entendidas como

A democratização do acesso às tecnologias digitais permitiu uma significativa expansão na educação no Brasil, acontecimento decisivo no percurso de uma nação em

Nessa situação temos claramente a relação de tecnovívio apresentado por Dubatti (2012) operando, visto que nessa experiência ambos os atores tra- çam um diálogo que não se dá