• Nenhum resultado encontrado

Acerca do entendimento jurisprudencial, a possibilidade de alteração do prenome dos transexuais tem avançado, deixando de ser analisada sob um olhar tradicionalista e inflexível, estabelecendo uma interpretação menos rígida quanto à norma literal, perfazendo o entendimento de que o preponderante a se buscar é o bem-estar social e a garantia da dignidade da pessoa humana.

À vista disso, passar-se-á expor algumas considerações acerca das decisões jurisprudenciais quanto ao pedido de alteração do prenome e gênero do transexual no registro civil, seus conflitos e evoluções, utilizando-se acórdãos originários dos Tribunais de Justiça dos Estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, dos anos de 1981 (AI-AgR n. 82517/TJSP), 2009 (REsp n. 1.008.398/TJSP), 2017 (REsp n. 1626739/TJRS), respectivamente.

A respeito do acórdão paulista AI-AgR 82517/ TJSP, julgado em 1981, tem-se pedido de retificação do registro civil para alteração de prenome e gênero em decorrência de cirurgia de readequação sexual. O sentenciante julgou pela impossibilidade jurídica do pedido, asseverando ofensa ao princípio constitucional da legalidade, bem como ao art. 58 da Lei dos Registros Públicos, visto que predominava o entendimento que o ato cirúrgico não teria o condão de mudar o sexo da pessoa. Restou, portanto, indeferido o pleito, uma vez que, segundo os

julgadores, este seria juridicamente impossível, “posto que importa em modificação de qualidade essencial da pessoa humana, de natureza indisponível, [...]”. (BRASIL, 1981). Apelou o vencido.

Nesse diapasão, a Segunda Turma daquele tribunal, por unanimidade, manifestou-se pelo desprovimento do recurso, nos termos seguintes:

o v. acórdão impugnado reconheceu a impossibilidade jurídica do pedido, tendo em vista o sexo do autor, que não pode ser alterado por cirurgia plástica.

O prenome é imutável.

Assim, não houve negativa do princípio constitucional da legalidade, antes, estrita observância dele.

Nessa conformidade, incensurável é o bem lançado acórdão impugnado, que bem decidiu a espécie acolhendo lúcido parecer da ilustre Procuradoria Geral da Justiça.

Por esses fundamentos, nego seguimentos ao recurso. (f.76v). (BRASIL, 1981).

Nesse passo, o posicionamento adotado pelos julgadores para determinar o gênero do indivíduo foi tão somente o biológico, aquele que se estabelece nos primeiros tempos de gestação, sustentando que o fato de modificar o sexo por meio de cirurgia não faria de um homem uma mulher ou vice-versa. Verifica-se uma ótica extremamente endurecida quanto à análise da norma jurídica e quanto aos aspectos psicológicos e comportamentais do indivíduo, não considerando que ao portar um documento que não reflete a realidade perante a sociedade, o colocaria em situações extremamente vexatórias, ofendendo, sobretudo, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Outrossim, apresenta-se o caso do REsp n. 1.008.398/TJSP, de 2009, que trata de pedido onde o autor do sexo masculino pretende a alteração do prenome e do gênero no assento do registro civil, uma vez que é transexual, redesignado.

O autor aduziu que “conservar o ‘sexo masculino’ no assento de nascimento, em favor da realidade biológica e em detrimento da realidade psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente”. (BRASIL, 2009).

O pedido foi julgado procedente em primeira instância. No entanto, o Ministério Público apelou, pretendendo a reforma da sentença, alegando que a regra

é da imutabilidade dos dados, nome, prenome, sexo, filiação etc. Ainda, defendeu que há um interesse público pela não modificação dos dados, de modo que a verdade registral não reste prejudicada. Alegou, também, que quanto ao sexo (masculino ou feminino), este não tem a ver com a aparência, mas com o que reflete quando do nascimento, não podendo, segundo o MP, ser modificado por meio de cirurgia.

O REsp n. 1.008.398/TJSP foi admitido. A relatora do acórdão, Min. Nancy Andrighi, ao sustentar seu voto defendeu que “muito embora o recorrente se considere verdadeira mulher, é certo que o referido ato cirúrgico de redesignação sexual, por si só, não modifica o sexo de uma pessoa. A questão posta nos autos é delicada, merecendo análise aprofundada.” (BRASIL, 2009).

Relembra a Ministra que, quando iniciou a obrigatoriedade do registro civil, a distinção entre os dois sexos baseava-se na genitália que o indivíduo apresentava no nascimento. No entanto, com o desenvolvimento científico e tecnológico, existem vários outros elementos identificadores do sexo, de tal modo que a definição do gênero não pode mais ser restrita tão somente ao sexo aparente, visto que fatores tanto psicológicos quanto biológicos, culturais e familiares, devem ser ponderados. A Ministra ainda exemplifica que podem ser apontados para a caracterização sexual os critérios cromossomial, gonadal, cromatínico, da genitália interna, psíquico ou comportamental, médico-legal e jurídico. (BRASIL, 2009).

Nesse ponto, por oportuno, verifica-se grande diferença quanto ao AI-AgR n. 82517/TJSP de 1981, haja vista este nem ter cogitado a hipótese de aprofundar- se na análise do caso, ficando adstrita apenas à norma jurídica e declinando do pedido do autor sob o fundamento de pedido juridicamente impossível. (BRASIL, 1981).

Ao analisar o pedido do REsp n. 1.008.398/TJSP de 2009, a Terceira Turma, por unanimidade, votou no sentido de dar o provimento ao recurso, todos seguindo o voto da Min. Rel. Nancy Andrighi, que sustentou seu voto amparado no princípio da dignidade da pessoa humana. Veja-se:

sobretudo, assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos, garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado em sua integridade psicofísica. Poderá, dessa forma, o redesignado exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem restrições de cunho discriminatório ou de intolerância, alçando

sua autonomia privada em patamar de igualdade com os demais integrantes da vida civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos, constrangimentos, frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena e digna. (BRASIL, 2009).

Ademais, infere-se imprescindível destacar que acerca do art. 58 da Lei n. 6.015/73:

o pedido formulado pelo recorrente foi julgado procedente, ao entendimento de que a imutabilidade do prenome não é absoluta, comportando exceções, especialmente quando o registro civil não reflete a realidade do transexual que foi submetido a tratamento cirúrgico. (BRASIL, 2009).

Isso posto, inegável que, ao analisar os dois julgamentos, percebe-se a evolução de entendimento acerca do pedido de alteração de nome e gênero da pessoa transexual, ponderando os julgadores da época que não se deve analisar a norma jurídica de forma restrita, em detrimento da felicidade e vida digna da pessoa humana, havendo a necessidade de uma interpretação mais adequada a situação fática.

Contudo, corroborando ainda com a análise evolutiva dos julgados, busca-se avaliar o REsp n. 1.626.739/TJRS, de 2017.

A discussão no caso em exame é a possibilidade da alteração de gênero no assento de registro civil de pessoa transexual, independentemente da realização da cirurgia de transgenitalização.

No que tange à sentença, o pedido de alteração do gênero no registro civil foi rejeitado, restando autorizado apenas a mudança do prenome. Houve apelação e a Corte estadual, por maioria, manteve a sentença, sob o argumento de que o requerente não se submeteu à cirurgia de readequação de sexo e, portanto, não poderia ter o assento modificado quanto ao gênero. Fundamentou-se que com a realização da cirurgia ocorre a transgenitalização e, assim, o médico redefine o sexo e, portanto, atesta a inadequação do registro, autorizando o Poder Judiciário a corrigir o sexo no assento.

Nesse diapasão, cristalino que o princípio da imutabilidade do nome pode ser mitigado quando sobressair o interesse individual, admitindo-se a mudança do nome causador de situação vexatória ou passível de piadas de mal gosto. Todavia, em se tratando de pessoas transexuais, apenas a alteração do prenome não satisfaz a necessidade protetiva do indivíduo transexual, não concretizando o princípio

constitucional da dignidade da pessoa humana, isto porque a manutenção do sexo no registro civil continuará a incongruência entre os dados assentados, permitindo a exposição da pessoa a situações constrangedoras.

O julgado em exame, busca a jurisprudência do REsp 1.008.398/TJSP, julgado em 2009, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, antes analisado no presente trabalho, aduzindo que, ao apreciar casos de transexuais submetidos a cirurgias de readequação de sexo, este já vinha permitindo a alteração do nome e do gênero no registro civil e, portanto, deve o entendimento jurisprudencial avançar no sentido de abarcar as pessoas transexuais não submetidas a cirurgia de transgenitalização, garantindo o direito de tratamento social adequado a sua identidade de gênero, à liberdade de se auto determinar sem a intromissão do Estado.

Notadamente, o julgado busca amparo nos princípios fundamentais, visto que, inadequado impor aos transexuais à realização da cirurgia de transgenitalização para terem o direito à retificação do sexo no registro civil, o que para muitos é impossível financeiramente ou mesmo inviável do ponto de vista médico.

Ademais, o Min. Rel. Luís Felipe Salomão, ao avaliar a questão em foco, visualizou valiosa oportunidade para promover importante avanço na jurisprudência daquela Corte no que tange aos direitos humanos. No entanto, ressaltou que sobre o mesmo tema, a época se encontrava pendentes de julgamento, no Supremo Tribunal Federal a ADI n. 4.275/DF e o RE n. 670.422/RS, que serão confrontados logo a frente.

Destarte, o Relator aduz que em outros países já existe legislação que não condiciona a alteração do nome e gênero à realização da cirurgia de adequação sexual.

Colhe-se do julgado o exemplo citado pelo ilustre Relator, que destaca a legislação Argentina, que tem uma das lei mais avançadas do mundo quanto à identidade de gênero, uma vez que, sem a necessidade de diagnósticos médicos/psiquiátricos ou da readequação do sexo por meio de cirurgia, autoriza qualquer pessoa a retificar os dados (nome, sexo e imagem) nos documentos públicos, diretamente no "Registro Nacional de Pessoas". (BRASIL, 2017).

A decisão ainda fundamenta-se no sentido de que a recusa da alteração de gênero de transexual, baseada na falta de realização de cirurgia de

transgenitalização, ofende, segundo o Rel. Min. Salomão, a cláusula geral de proteção à dignidade da pessoa humana. (BRASIL, 2017).

Nesse ponto, infere-se a importante análise quanto à livre vontade da pessoa em querer ou não se submeter à cirurgia de readequação de sexo, o que, como bem fundamentado pelo Rel. Min. Salomão no REsp em exame, não deve ser um pressuposto ao direito da personalidade do transexual, para alcançar o direito de alteração do prenome e gênero no assento civil de acordo com a realidade por ele vivenciada. (BRASIL, 2017).

Nessa conjuntura, destaca-se o art. 21, da norma civilista, que dispõem:

art. 21 - A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma. (BRASIL, 2002).

Acerca disso, o Rel. Min. Salomão aduz no recurso analisado que “a proteção das escolhas de vida dos transexuais consagra a tutela constitucional da intimidade e da privacidade, que não podem sofrer ingerência do Estado.” (BRASIL, 2017).

Sendo assim, a obrigatoriedade da realização da cirurgia de adequação do sexo para que se possa alcançar o direito de alteração do prenome e gênero no RCPN configura violação à vida privada, à intimidade, bem como à saúde, uma vez que ao se submeter ao procedimento cirúrgico, ao indivíduo incorre vários riscos. (BRASIL, 2017).

Por oportuno, como bem definido pelo Min. Rel. Salomão:

o Estado não pode, portanto, adentrar a esfera da vida íntima da pessoa transexual, impondo-lhe a realização de uma cirurgia, que poderá trazer incomensuráveis prejuízos ao exercício de uma vida digna e plena, sendo muitas vezes inatingível em razão dos custos para sua realização. Tal exigência não encontra qualquer justificativa voltada ao bem comum, pois a identidade do ser é algo personalíssimo, não dizendo respeito a mais ninguém, ao passo que a falta de conformação registral com a realidade psicossocial implica flagrante violação ao direito do transexual de não explicitar a sua condição em uma sociedade ainda maculada pelo desrespeito às diferenças. (BRASIL, 2017).

Todos têm direito à felicidade, condicionar o seu alcance a realização de cirurgia de redesignação é violar a sua liberdade de escolha. Nessa senda, o voto do relator se ancora no art. 3º da CRFB. Veja-se:

art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

(...) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (BRASIL. 1988).

Retira-se do voto do relator que o registro civil deve refletir a identidade de gênero, independentemente da realidade biológica, uma vez que o registro civil deve espelhar a identidade psicossocial do transgênero, não podendo condicionar a realização da cirurgia de redesignação sexual como meio para gozo de um direito. (BRASIL, 2017).

Por fim, com inteligência concluiu o Rel. Min. Luis Felipe Salomão pelo provimento do recurso em análise, autorizando a alteração do registro civil da transexual mulher, devendo ser averbado o prenome e gênero feminino, sem qualquer menção no registro da razão da retificação, restando resguardada a publicidade e a intimidade da autora. (BRASIL, 2017). Aduziu-se:

em atenção à cláusula geral de dignidade da pessoa humana, a jurisprudência desta Corte deve avançar para autorizar a retificação do sexo do indivíduo transexual no registro civil, independentemente da realização da cirurgia de adequação sexual, desde que dos autos se extraia a comprovação da alteração no mundo fenomênico (como é o caso presente, atestado por laudo incontroverso), cuja averbação, nos termos do § 6º do artigo 109 da Lei de Registros Públicos, deve ser efetuada no assentamento de nascimento original, vedada a inclusão, ainda que sigilosa, da expressão transexual ou do sexo biológico. (BRASIL, 2017).

Nesse sentido, inegável a evolução dos julgados referentes ao pedido de retificação de prenome e gênero no registro civil da pessoa transgênero, saindo de fundamentações tradicionalistas que entendiam como juridicamente impossível o pedido (1981), passando pela aceitação da retificação do prenome e gênero após o procedimento cirúrgico (2009), chegando ao deferimento da alteração pretendida, mediante judicialização no registro civil, sem a necessidade de redesignação sexual (2017), consoante a busca pela garantia dos princípios fundamentais tais como dignidade, felicidade, saúde, liberdade, privacidade, autodeterminação, entre outros. Nesse ponto, chega-se à pertinente análise da ADI n. 4.275/DF e RE de repercussão geral n. 670.422. Impende gizar a ausência de publicação no sítio do STF acerca do voto do relator do RE n. 670.422, até a entrega deste trabalho.

Protocolada em 2009, a ADI n. 4.275/DF propôs que fosse dada a interpretação, conforme a Constituição da República, ao art. 58 da Lei n. 6.015/73,

no sentido de ser conferido aos transexuais o direito à substituição do prenome e gênero no registro civil, sem a necessidade de realização de cirurgia de redesignação sexual. (BRASIL, 2018b).

Sustentou a inicial que há duas abordagens quanto à transexualidade, a biomédica e a social, sendo que uma não exclui a outra. No que tange à questão biomédica, define a transexualidade como um distúrbio de identidade de gênero; já a abordagem social tem a ver com o direito à autodeterminação do indivíduo, que, amparado no direito à liberdade, à privacidade, à igualdade e, sobretudo, no princípio da dignidade da pessoa humana, permitiria ao transexual, livremente e sem imposição, afirmar sua identidade de gênero. (BRASIL, 2018b).

Nesse contexto, em 1º de março de 2018, o STF, por meio da maioria dos ministros, entendeu pela procedência do pedido vazado na referida ADI e, consequentemente, pela possibilidade de alteração de nome e gênero no registro civil, independentemente da realização de cirurgia de redesignação sexual e de autorização judicial. (BRASIL, 2018b).

No ponto que tratava da necessidade de autorização judicial para promover a alteração do nome e do sexo houve dissonância de entendimentos, sendo os ministros Edson Fachin, Luiz Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia favoráveis à alteração diretamente por meio do Registrador Civil de Pessoas Naturais. (BRASIL, 2018b).

No entanto, o Ministro Relator Marco Aurélio defendeu a necessidade do procedimento de jurisdição voluntária. Também entenderam pela necessidade de autorização judicial para a devida alteração os ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. (BRASIL, 2018b).

Nessa perspectiva, destaca-se o dispositivo da decisão da ADI n 4.275/DF:

o Tribunal, por maioria, vencidos, em parte, os Ministros Marco Aurélio e, em menor extensão, os Ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, julgou procedente a ação para dar interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei 6.015/73, de modo a reconhecer aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil. Impedido o Ministro Dias Toffoli. Redator para o acórdão o Ministro Edson Fachin. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 1º.3.2018. (grifos nossos). (BRASIL, 2018b).

Cabe aclarar que, até o momento de entrega da presente monografia, não houve a publicação do acórdão referente ao julgamento em comento, sendo disponibilizado no sítio do Supremo Tribunal Federal tão somente o voto do relator.

O voto condutor sob exame foi lavrado a partir de três premissas, as quais em essência, parte do direito à igualdade e não discriminação, incluindo-se aí a identidade ou expressão de gênero como manifestação da própria personalidade do indivíduo, circunstância que bastaria para o reconhecimento da mudança perseguida no registro público, independente de qualquer condição ou procedimento. (BRASIL, 2018e).

Confira-se:

primeira: O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero.

Segunda: A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la.

Terceira: A pessoa não deve provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental. (BRASIL, 2018e).

Por oportuno, destacam-se as bases jurídicas que propiciaram a interpretação conforme a Constituição da República.

1.2. Base constitucional: o direito à dignidade (art. 1º, III, da CRFB), o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem (art. 5º, X, da CRFB); e base convencional (art. 5º, § 2º, da CRFB): o direito ao nome (artigo 18 do Pacto de São José da Costa Rica); o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica (artigo 3 do Pacto); o direito à liberdade pessoal (artigo 7.1 do Pacto); e o direito à honra e à dignidade (artigo 11.2 do Pacto).

1.3. Base doutrinária. O voto se assenta no pensamento dos diversos autores nele citados; mencionam-se aqui especialmente os seguintes Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk em “Princípio da Dignidade Humana (no Direito Civil)”; Carlos Santigao Nino em “Ética y Derechos Humanos”; Stéfano Rodotà; e Álvaro Ricardo de Souza Cruz em “(O) Outro (e) (o) Direito”.

1.4. Base em precedentes. o voto se estriba em precedentes que formam jurisprudência deste Tribunal e, especialmente, da Corte Interamericana de Direitos Humanos; especificamente citam-se os seguintes: o RE 670.422, Rel. Ministro Dias Toffoli; a ADPF 54, Rel Ministro Marco Aurélio; Opinião Consultiva 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre Identidade de Gênero e Igualdade e Não-Discriminação. 1.5. Conclusão do voto: julgo procedente a presente ação direta para dar interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei 6.015/73, de modo a reconhecer aos trangêneros, que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à

substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil. (BRASIL, 2018e).

Relativamente ao RE n. 670.422/RS, traz em seu bojo a pretensão de uma mulher (S.T.C) que, sem se submeter à transgenitalização, pleiteava a alteração do gênero no assento de nascimento. Segundo informado pelo sítio do Supremo Tribunal Federal, S.T.C questionava o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), que manteve decisão de primeiro grau que havia deferido a mudança do nome, mas condicionando a alteração de gênero à realização de cirurgia de transgenitalização, ou seja, de mudança do sexo feminino para o masculino. Aquele Tribunal de Justiça ainda determinou a anotação do termo “transexual” no registro de nascimento, fundamentando-se nos princípios da publicidade e da veracidade dos registros públicos. (BRASIL, 2018c).

A recorrente sustentou que a exigência contrariava “o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à intimidade”, além de criar empecilho à concretização do objetivo fundamental da República de promover “o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. “Entre outros argumentos, sustentou também violação do direito à saúde, tendo em vista o caráter experimental da cirurgia (neofaloplastia), de alto risco para o paciente e baixa probabilidade de êxito.” (BRASIL, 2018c).

A partir disso, o Min. Rel. Dias Toffoli manifestou-se pela existência de repercussão geral, visto que:

[...] as questões postas apresentam nítida densidade constitucional e

Documentos relacionados