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3. TRÊS TRADUÇÕES DE ALICE PARA O PORTUGUÊS – ASPECTOS

3.3 As três tradutoras – uma apresentação

3.3.4 Ana Maria Machado – Editora Ática

Ana Maria Machado nasceu no dia 24 de dezembro de 1941 em Santa Tereza, Rio de Janeiro. Foi a tradutora de “Alice no país das maravilhas”, uma publicação da Editora Ática. No entanto, seu maior reconhecimento tem sido como escritora – Machado publicou mais de 100 livros203 no país e no exterior.

Seus 33 anos de carreira tiveram início no Rio de Janeiro. Nesta cidade, cursou Letras na Universidade Federal, enquanto estudava no Museu de Arte Moderna – a tradutora/autora também é pintora. Participou de exposições individuais e coletivas no Brasil e outros países. Depois, começou a lecionar em escolas e faculdades, e a escrever artigos para a revista “Realidade”. Foi por volta dessa época que surgiram suas primeiras traduções. Desde então, Machado não parou de traduzir. Ela enfatiza:

203 Alguns dos títulos de suas obras para adultos e crianças aparecem no site oficial da autora,

tenho experiência de tradução (sobretudo do inglês) há muitos anos, traduzo profissionalmente desde a década de 60, com dezenas de trabalhos publicados, primeiro com nome de solteira (Ana Maria de Souza Martins ou Ana Maria Martins) e depois já com sobrenome de casada (MACHADO, 2009)204.

A tradutora também ressalva sua interação com as línguas com as quais trabalha:

meu conhecimento do inglês não vem só de ter estudado 7 anos na Cultura Inglesa (tenho o diploma de Proficiency da Universidade de Cambridge), ter dado aula de inglês durante anos, mas também de ter morado na Inglaterra três anos, trabalhado na BBC, dado aula em Oxford. Meu domínio do português, língua para a qual traduzo? E de nossa literatura? Bom, sou membro da Academia Brasileira de Letras. Dei aulas de português em vários colégios e de Literatura Brasileira e de Teoria Literária na Faculdade de Letras da UFRJ. Dei aulas de língua portuguesa na Sorbonne (MACHADO, 2009).

Grande parte dessas experiências foi fruto de uma mudança radical em sua vida. Com a chegada da ditadura militar, precisou se exilar do país. Machado e seu filho foram morar na Europa. Lá atuou como jornalista da revista “Elle” e na BBC de Londres, continuando suas atividades como professora. Fora do Brasil, concluiu sua tese de doutorado, que havia começado com Afrânio Coutinho na URFJ, em “Lingüística e Semiologia”, sob orientação de Roland Barthes205(MACHADO, 2009). Apesar de todas essas atividades, continuou escrevendo. Sempre que possível enviava histórias infantis para a Editora Abril.

Em 1972, Machado retornou ao seu país natal. De volta, começou a trabalhar no Jornal do Brasil e na Rádio JB. Sob um pseudônimo, escreveu o livro “História meio ao contrário” pela qual ganhou o prêmio João de Barro206 em 1977. A seguir, no ano de 1979, cria um espaço para as crianças poderem ler e ter acesso a bons livros: a Livraria Malasartes – a primeira no país especializada em livros infantis segundo o site207 da Academia Brasileira de Letras.

204 Conforme entrevista à autora desta dissertação, vide Anexo E. 205 Escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês.

206 O site da Prefeitura de Belo Horizonte, <http://www.pbh.gov.br/cultura/joaodebarro/>, que apresenta

um artigo relacionado ao concurso nacional de literatura João de Barro explica esse prêmio: “promovido desde 1974 pela Prefeitura de Belo Horizonte, por intermédio da Secretaria de Cultura, o Concurso Nacional de Literatura João-de-Barro é dedicado à literatura infantil e juvenil, premiando textos inéditos produzidos em todo o país”.

207 Segundo biografia da autora Ana Maria Machado no site,

Um ano mais tarde, Machado optou por se dedicar apenas a escrever seus livros para crianças e adultos porque, segundo ela, escrever é da sua “natureza” como “dar palavra, história, idéia”208. Como escritora, teve suas obras reconhecidas em diversas ocasiões: foi homenageada pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil; ganhou o prêmio Machado de Assis209 da Academia Brasileira de Letras e o prêmio Hans Christian Anderson210. Dois anos depois, em 2003, tornou-se ocupante da cadeira número um da Academia Brasileira de Letras.

3.3.4.1 Machado e a tradução de “Alice no país das maravilhas”

A tradutora escolhida pela Editora Ática para traduzir “Alice no país das maravilhas” foi Ana Maria Machado. Em entrevista à autora desta dissertação211, Machado assinala que aceitou o convite porque: “Alice é um livro fascinante, um de meus preferidos e há muito tempo eu o leio e releio. Tenho em minha casa uma prateleira cheia de diferentes edições comentadas do mesmo, livros de e sobre Carroll, etc.” (MACHADO, 2009). Também ressalta que considerou essa uma boa oportunidade de apresentar uma nova tradução da história para receptores brasileiros, que incluísse “as questões de lógica e linguagem levantadas pelo autor”, tão vitais para a narrativa como a “própria Alice” (MACHADO, 2009). Conforme a tradutora, as outras traduções212 existentes na época então não a satisfaziam porque deixam de lado esse importante aspecto (MACHADO, 2009).

Entretanto, apesar dessa iniciativa, nem a editora, nem a tradutora consideram essa tradução “nada definitivo” (MACHADO, 2009),

muito pelo contrário, só quisemos oferecer ao leitor um aperitivo, um gostinho das maravilhas que pode haver num texto como esse. Por enquanto, explorando as belezas e sorrisos ao seu alcance. Em seguida, deixando uma indicação de que um livro desses é tão rico que merece revisitas – a serem feitas mais adiante, em outras leituras, outras traduções ou até no [texto de partida] por quem puder, quem sabe? (MACHADO, 2009).

208 Conforme artigo “Obra de Ana Maria Machado surpreende a própria autora”,

<http://www.atica.com.br/materias/?m=93>, no site da Editora Ática.

209 Principal prêmio literário brasileiro oferecido pela Academia Brasileira de Letras. 210 O prêmio internacional mais importante da literatura infanto-juvenil.

211 Vide Anexo E.

212 A própria Ana Maria Machado publicou “um estudo no suplemento literário do Jornal do Brasil [...]

intitulado ‘Alice traduzida: do nonsense à insensatez’, em que analisava as traduções existentes” na época (MACHADO, 2009).

Machado recorda que, ao traduzir, seu objetivo era

compartilhar com o primeiro leitor brasileiro uma amostra de como existe tanta coisa nesse livro, tanto a descobrir, de maneira divertida. E evitar os riscos de uma tradução que se limitasse a contar literalmente uma história – o que, nesse caso, a deixa sem sentido em muitos casos, transformando-a numa coisa meio angustiante e aflitiva, o que tem afastado tantos leitores brasileiros dessa experiência estética incomparável que é sacar uma obra desse porte (MACHADO, 2009).

Com esse intuito, para que os jovens leitores brasileiros compreendessem melhor os trocadilhos e paródias presentes na história de Alice, os poemas e canções citados pela personagem foram substituídos por outros conhecidos no contexto de chegada. Machado aponta como foi feita a escolha desses poemas:

procurei trabalhar sobre poemas e canções que fazem parte de um acervo mínimo comum da infância brasileira, seja do folclore, seja do repertório escolar – como era o caso do original, em relação a um acervo vitoriano. Coisas que as crianças sabiam de cor ou, pelo menos, reconheciam com facilidade (MACHADO, 2009).

A tradutora explicita, também, como lidou com o texto traduzido. Afirma que teve “liberdade total e prazo ilimitado” para entregar a tradução (MACHADO, 2009), enfatizando que “não queria ter de me submeter a nada, nem mesmo ao calendário de um programa de publicações, com data para entregar etc. Não lembro quanto tempo levei, mas foi o necessário” (MACHADO, 2009). Também destaca que a editora “não interferiu em nada” (MACHADO, 2009). Se alguma vez se desagradou de determinadas escolhas tradutórias, não se manifestou, segundo Machado (2009).

Por isso, todas as decisões de tradução foram de total responsabilidade da tradutora. Quanto aos nomes de personagens, Machado (2009) recorda que esse é um dos aspectos mais difíceis da tradução literária, principalmente quando alguns nomes já foram consagrados pela “cultura de massa”. Nesses casos, fica complicado modificar um nome, a não ser que haja um excelente motivo para isso (MACHADO, 2009). Especificamente em relação à obra de Carroll, a tradutora indica que

não havia motivo para procurar alternativas para o Coelho Branco, o Chapeleiro Maluco ou a Lebre de Março. Mas achei que um camundongo dorminhoco e sonolento chamado Dormouse, que nem tinha nome no filme [da Disney], bem podia virar Dormundongo (MACHADO, 2009).

Continuando a tratar sobre esse assunto, elucida que na tradução de nomes “certas perdas são inevitáveis”, como no caso do nome Dodo que “deixa de aludir à gagueira do [...] Charles Dodgson” que pronunciava seu último nome como Do-Dodgson (MACHADO, 2009).

Quanto aos jogos de palavras, procurou se “guiar muito pelos sons” (CARROLL, 2006:134). A frase, por exemplo, Do cats eat bats? (“Gatos comem morcegos?”), tornou-se um trocadilho entre “morcego” e “amor cego” – expressão diferente do contexto de partida, mas que rima com o substantivo anterior. Essa decisão baseou-se na sua visão em relação à história de Carroll. Machado destaca que o enredo não é o mais importante, mas sim a maneira em que a história é contada, incluindo todos os jogos do autor com as palavras.

Já em relação às paródias, indica a estratégia geral adotada por ela: “nos casos em que Carroll parodiava o som dos versos, fiz o mesmo [...] Quando o jogo dele era mais com conceitos, segui suas linhas mestras [...] Mas na maioria das vezes, acompanhei seus passos misturando os dois procedimentos [...]” (MACHADO, 2009). Nesse processo, a tradutora recorreu ao “acervo de referências de um leitor brasileiro infanto-juvenil médio, na segunda metade do século XX” (MACHADO, 2009) para decidir quais poemas e canções nacionais parodiaria.

A tradutora ainda ressalta que, ao longo de sua tradução, tentou não usar notas de rodapé para explicar situações ou vocabulário culturalmente marcados. A única nota que optou por incluir foi a do Gato de Cheshire e seu sorriso porque, segundo ela:

[…] não dava para entender bem o sorriso do gato da Alice sem ela [nota de rodapé] – e, mesmo assim, não quis me estender, lembrando que era comum na época [Era Vitoriana] a expressão […] “sorrir de dentes arreganhados, como um gato de Cheshire” (MACHADO, 2006:135).

Machado também esclarece que a editora não indicou um público previsto, mas que isso na verdade não era necessário porque sabia que a história seria publicada como

parte de uma coleção chamada “Eu Leio”, “destinada a dar ao público escolar o primeiro contato com grandes escritores, por meio da versão integral de uma de suas obras” (MACHADO, 2009). Por esse motivo, “não era uma tradução destinada ao deleite erudito de estudiosos adultos, com espaço para montes de comentários, anotações e notas ao pé de página. Destinava-se a uma leitura fluente” (MACHADO, 2009). Considerando essa característica do texto traduzido, a tradutora optou pelo que “faltava entre nós”, isto é,

uma versão integral que tentasse preservar o ludismo lógico e lingüístico do original, num tom algo coloquial e oralizante como o de Carroll para seus leitores ingleses de sua época, e procurasse trazer essa experiência de leitura, de uma forma acessível, a crianças e adolescentes brasileiros de hoje, escolarizados, com alguma fluência leitora. Ou seja, desde o início resolvi trabalhar com trocadilhos, paródias, alusões e outros recursos desse tipo, abundantes no [texto de partida], e, na quase totalidade dos casos, inexistentes nas traduções brasileiras então encontradas e destinadas às crianças (MACHADO, 2009).

3.4 Três traduções selecionadas – uma visão panorâmica segundo Lambert e