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SEGUNDA PARTE

IV. A interpretação Pianística – a execução no piano moderno.

IV.3. Alguns aspetos técnicos para a execução 1 Introdução.

IV.3.3.1. Andamento e ritmo nas sonatas inspiradas em danças populares.

Algumas sonatas de carácter brilhante inspiram-se em movimentos de dança da tradição popular espanhola e têm, no seu interior, movimentos mais lentos e cantabile. Outras sonatas de Scarlatti, como por exemplo a K.24 são inteiramente de carácter espanhol. Se imaginarmos que estamos a acompanhar bailarinos espanhóis nalgumas das danças típicas populares, iremos seguir os movimentos e os ritmos dos pés, ora accelerando ou rallentando, efetuando mesmo, por vezes, uma pausa temporária, outras vezes mudando os ritmos de binário para ternário. Unidade rítmica não significa, por isso, manter rigorosamente, durante a execução, o mesmo andamento ao longo de toda a sonata.

Ao longo dos últimos anos, muitos investigadores dedicaram-se ao estudo da influência que a música popular ibérica exerceu na linguagem das sonatas de Scarlatti42.

É interessante o ponto de vista de Emilia Fadini (2008), no que se refere à integração entre o estilo andaluz e o estilo italiano, que afirma que nalgumas sonatas os elementos de música popular ibérica só aparecem emå determinados episódios ou curtas secções, coexistindo assim no interior da mesma sonata o estilo italiano e o espanhol, o estilo erudito e o popular, frases virtuosísticas tipicamente instrumentais interrompidas pela entrada das frases melódicas, líricas, passionais, de inspiração espanhola. “Um verdadeiro milagre, do ponto de vista estilístico, é o de Scarlatti conseguir juntar um desregrado elemento do folclore de tradição ibérica e as mais frequentes locuções musicais do mundo centro-europeu e internacional” (Pestelli, 1967, p. 191, tradução livre). Segundo Jane Clark (1986) a música de Scarlatti indicia que ele tenha ouvido música cigana, já que esta usava o modo frígio alterado da seguinte forma:

Modo frígio:

Modo gitano:

Fadini aprofunda assim o estudo sobre o flamenco, cuja denominação, para os músicos espanhóis, se estende a todo o repertório musical popular da Andaluzia. A sonata K.116 representa o flamenco puro e podemos verificar o que foi já enunciado.

Figura 42. Sonata K.116, cc. 37-42.

42 Kirkpatrick, (1984, pp. 206, 295 e 310); Sheveloff, (1970, pp. 70, 658); Boyd, (1986, pp. 15-22);

Manuel Granados, no seu manual Teoria Musical de la Guitarra Flamenca:

fundamentos de armonía y princios de composición, apoia a teoria de que se

mantiveram inalterados os princípios do sistema grego fundado sobre os tetracórdios descendentes (dois tons e meio a partir do agudo até ao grave). O tetracórdio dórico descendente tem o meio-tom entre o terceiro e o quarto grau da escala (lá-sol-fá-mi). O flamenco puro, tal como os Espanhóis o chamam, utiliza o tetracórdio dórico descendente como base harmónica nas obras musicais. A cadência harmónica conclusiva, típica do flamenco, prevê a sucessão de quatro acordes de terceira e quinta cada um, do qual três com a terceira maior. (Figura 43)

I VII VI V

Figura 43. Típica cadência andaluza.

Estes quatro acordes em sucessão de quintas paralelas formam a típica

cadência andaluza e são chamados acordes principais. Um perfeito exemplo da

utilização desta cadência encontra-se na sonata K.203, nos compassos 19-26 e 50- 53. (Figuras 44 e 45)

Figura 44. Sonata K.203, cc. 19-26.

Outra sonata que contém escalas e cadências dóricas é a sonata K.6, nos compassos 18-25.

Figura 46. Sonata K.6, cc. 18-25.

Encontramos também um tipo de modulação entre escalas dóricas de diferentes alturas. Como no sistema tonal, também no sistema flamenco um mesmo acorde, comum a duas escalas diferentes, permite desviar o percurso harmónico de uma a outra escala, permitindo, nalguns casos, alterações às notas que os compõem. A K.24, nos compassos 7-13, é um exemplo de utilização do mecanismo da modulação entre escalas dóricas flamencas. (Figura 47)

Figura 47. Sonata K.24, cc. 7-14.

“Esta sonata é um milagre de eficácia sonora incomparável, na qual o instrumento de tecla é chamado a imitar uma orquestra inteira de uma feira popular espanhola” (Kirkpatrick, 1984, p. 163, tradução livre).

A expressão mais antiga do flamenco é o Cante Jondo, que significa “canto profundo” ou canto que se gera da profunda dor, que se desenvolveu na região da Andaluzia e Múrcia.

Manuel de Falla junta ao seu livro Escritos sobre música y músicos o opúsculo intitulado El cante jondo. Sus origens, sus valores, su influencia en el arte

musical europeo. Segundo o autor,

para além das influências, antes bizantinas e depois árabes, o Cante

Jondo nasce da fusão das tradições musicais andaluzas com as dos

ciganos que vieram do oriente e que se misturaram com o povo. Falla descreve os cinco elementos principais que caracterizam o Cante Jondo e que o associam à música oriental (Falla, 1950, Apendice pp. 123-147).

A sonata K.135, nos compassos 19-21, 25-29 e 32-37 (Figuras 48 e 49), cuja análise harmónico-estrutural se encontra no capítulo da análise, parece possuir o

ritmo do oitavado43, comparando estes ritmos com os da K.255, respetivamente

nos compassos 37- 63. (Figuras 48 e 49)

Figura 48. Sonata K.135, cc. 19-21.

Figura 49. Sonata K.135, cc. 33-37.

Um exemplo de integração na qual Scarlatti funde o estilo flamenco, profundo e apaixonante, com o gosto requintado italiano, galante e teatral, encontra-se na sonata K.175. (Figura 50)

43 Sutcliffe (2003, p. 83, como citado em Luigi Fernando Tagliavini (edition by Lock Hautus in L’organo VIII, 1970, pp. 111-114) o qual supõe que a palavra Oytabado deriva da palavra português

oitavado, uma típica dança popular portuguesa do século XVIII. Este assunto foi tratado também por Malcolm Boyd, (1986, p. 178) e por Sheveloff, (1986, pp. 98-99) e no prefacio de Kenneth Gilbert (1983, p. iv).

Figura 50. Sonata K.175, cc. 1-26.

Continuando a pesquisa de outras sonatas com elementos populares, evidenciamos a sonata K.26, com muitos pedais (cc. 30-42 e 43-68), que parecem

reproduzir as cordas soltas da guitarra espanhola; a K.215 parece imitar, com os seus acordes selvagens, o rasgueado da guitarra, nos cc. 43-45.

A sonata K.54 (ver análise harmónico-estrutural no capítulo VI.6.4), embora seja um Allegro em movimento de tarantella em 12/8, deverá ser executada considerando as mudanças das harmonias ao longo dos compassos, os seus ritmos internos, com as suas respirações entre as frases. Se consideramos estes elementos, interpretar esta sonata “a tempo” e com uma rapidez excessiva impede a declamação das características típicas da tarantela. Segundo os movimentos mais rápidos ou mais lentos da harmonia e segundo as mudanças dos valores das notas, poder-se-á acelerar ou abrandar a frase. Por isso, é preciso analisar ao pormenor o ritmo do tecido harmónico sem ficar preso às linhas que delimitam os compassos e pensar em blocos rítmicos criados pela organização dos valores das notas. “Scarlatti não é escravo dos compassos: o ritmo é, por vezes, o ponto de partida que gera os movimentos independentes das linhas melódicas (vozes) que estabelecem os próprios esquemas rítmicos irregulares, independentes entre eles” (Kirkpatrick, 1984, p. 298, tradução livre).

A sonata K.135 (ver análise harmónico-estrutural no capítulo VI.6.15) é um exemplo de dança cuja inexorável precisão do ritmo de base é pouco importante. Tocar rigorosamente “a tempo” toda a sonata afasta-a do caráter da dança. Segundo Pestelli, “esta sonata, ultrapassando o modelo de um simples movimento de dança, entra com plena maturidade no género do Scherzo em 6/8” (Pestelli, 1967, p. 212, tradução livre).

A sonata K.96 (ver análise harmónico-estrutural no capítulo VI.6.6) inicia com o tema de caça, imitando as trompas e as trompetes. “Esta sonata oscila entre dois fogos sentimentais: o francês, todo exterioridade e estridência, e o íntimo, meditativo e colorido dos quentes matizes da música popular espanhola”44

(Pestelli, 1967, p.213, tradução livre). Embora seja mantida uma proporção entre os valores das notas, o andamento oscilaria segundo o significado das frases. Do

44 Pestelli, Giorgio, 1967, p. 213. Giorgio Pestelli, denomina esta sonata como a mais ”francesa”

das sonatas de Scarlatti, na qual o compositor revela o prazer de compor esta sonata com infinitas peças do puzzle, cheia de pequenas e brilhantes ideias temáticas; um ato de obséquio ao género da chasse, ou melhor da victoire.

mesmo modo, poder-se-ão prolongar as respirações entre as frases e enfatizar a suspensãocomo nos compassos 10 e 137.

Outra característica dos movimentos de dança é a independência rítmica das vozes e os acentos que não caem simultaneamente na mão esquerda e direita. Como se pode averiguar nos compassos 83-103 da sonata K.124, (ver análise harmónico-estrutural no capítulo VI.6.14) toda esta frase tem um ritmo de colcheias regulares na mão esquerda, enquanto na mão direita o acento cai sempre no segundo tempo, com a exceção do compasso 102. Esta frase é feita quase inteiramente de síncopes na mão direita, que desloca a sua acentuação num jogo rítmico com a mão esquerda. Também é em contínuo crescendo que, chegando ao seu clímax no compasso 102, será evidenciada com um ligeiro

accelerando, até à chegada do clímax. Tocar a tempo iria destruir (bloquear) o

impulso da dança.

Após uma análise destas sonatas, podemos concluir que Scarlatti encontra na dança espanhola uma grande fonte de inspiração: mistura a dança, o vocal, o instrumental e o virtuosista muitas vezes na mesma sonata, o que gera, por vezes, efeitos extraordinariamente contrastantes e insólitos. Muitas frases inspiradas nas danças espanholas podem ser conduzidas por uma continuidade de gestos, tal como no movimento do corpo durante o ato da dança.